Por baixo da ponte Vasco da Gama não se ouve nada. O ruído dos carros não passa do tabuleiro e pinga no chão, os motores que passam pelo Passeio Heróis do Mar, uma estrada que leva Moscavide a encontrar-se com o Parque Tejo e o rio com o mesmo nome, contam-se por uma mão durante mais de trinta minutos da hora de ponta de um dia de semana. Para quem ali costuma passar, o silêncio é um lugar estranho sem o barulho de fundo das brincadeiras das mais de 100 crianças da creche Saídos da Casca, localizada ali, naquele pequeno oásis da capital onde o céu não parece ser de alcatrão.

A instituição, fechada desde meados de março, vai reabrir esta segunda-feira. Da centena de crianças inscritas, pouco mais de 20 irão regressar a este mundo novo, que já conhecem, mas onde as regras mudaram ligeiramente. A primeira grande mudança começa logo à entrada, num pequeno retângulo delimitado a fita vermelha. É a ‘zona suja’. Dali só passam funcionários da creche e as crianças, os primeiros desinfetam as mãos e colocam proteções para o calçado para irem até à zona de troca de vestuário, as segundas trocam ali os sapatos, com o calçado que vem da rua a ser arrumado num saco. A primeira grande mudança acontece ali onde, para além de todos os ritos a cumprir, os pais deixam de poder entrar.

“Vai ser uma mudança grande. As crianças estão há dois meses em casa. Já quando regressam das férias do verão ou até do fim de semana há sempre um período de adaptação de regresso à escola, agora depois de dois meses em que passaram o dia todo com os pais e ainda por cima sem os pais poderem entrar na escola... Vai ser um momento mais complicado. Mas nós também temos esta parte da entrada e do corredor envidraçada que pode ajudar a deixar os pais mais tranquilos caso a criança fique, por exemplo, a chorar. À janela já os vão poder ver mais calmos. Isso facilita um bocadinho”, explica-nos Ana Costa, diretora técnica do Saídos da Casca.

A creche é grande, sob o comprido e ladeada por uma zona ao ar livre de recreio. “Ao fim ao cabo, também acabamos por ter instalações que se apropriam e que vão facilitar um bocadinho o cumprimento de algumas regras. Temos as salas a dar para o recreio, ou seja, podemos desdobrar os grupos, uns ficam dentro e outros fora, conseguir o tal alargamento do espaço. Se possível, pedem [a Direção-Geral da Saúde] que haja a distância entre as crianças. Isso não é possível, mas vamos tentar que estejam mais afastadas. Também as medidas se alteraram um bocadinho”, sublinha Susana Dias, diretora da escola, referindo-se à discussão que tomou de assalto a última semana, quando se colocou em cima da mesa um afastamento social de dois metros entre as crianças.

“Não era por aí, não era o impor à criança não estar junto É criar o espaço para que elas não estejam muito juntas na mesma área”, explica Susana.

A creche está devidamente preparada, da sala foram removidos parte dos brinquedos, a desinfeção dos mesmos já era prática diária pela instituição e por isso não se apresenta como uma novidade, em cada sala há um dispensador de álcool gel, as espreguiçadeiras para sesta, assim como os berços estão devidamente afastados, e são fixos para cada criança. Há uma sala isolada e preparada para o caso de um funcionário ou uma criança poder estar infetada, a disposição das mesas e das cadeiras mudou de forma a promover o afastamento, as paredes estão brancas, atípicas, garante-nos Ana, afirmando que o branco só é cor dominante devido à desinfeção que teve lugar na última sexta-feira antes da reabertura. O plano está montado e preparado para entrar em ação e ser ajustado com o que também irão aprender com a prática.

Segunda-feira, dia 18 de maio, das cerca de 100 crianças inscritas na creche - a instituição também dispõe de jardim de infância, um serviço que só reabrirá em junho -, apenas 22 crianças vão voltar.

Susana explica-nos que há algum receio por parte dos pais, um sentimento que com a discussão das medidas de prevenção na última semana deram lugar à expectativa “para ver como é que a escola vai funcionar com as novas regras”. Além disso, com muitos pais em casa, pelos mais diversos motivos, preferem continuar a ficar com os filhos e evitar possíveis riscos. “São estes aspetos que fazem com que de facto as pessoas adiem as suas respostas”, diz.

O Afonso ainda não vai voltar à creche

Pedro Monteiro e Mariana Colaço são pais do pequeno Afonso. “Ele começou na creche em janeiro, portanto esteve lá muito pouco tempo. Janeiro, fevereiro, meio de março e entretanto está com a gente em casa porque ficámos logo em teletrabalho os dois”.

O desafio entre estar com o olho no computador e outro no bebé tem os seus prós e os seus contras. A ginástica a que o Afonso obriga permitiu que o jovem casal conseguisse acompanhar uma fase de desenvolvimento em que a criança começou a gatinhar e “já está quase a andar”. “A parte de gerir o trabalho em si é mais complexa, temos de fazer uns turnos, um trabalha de manhã, o outro à tarde. Vamos gerindo com as reuniões que temos”, confessa Pedro.

Na segunda-feira o Afonso ainda não vai voltar à creche. “Como nós ainda conseguimos ficar em casa pelo menos até junho vamos adiar a ida do Afonso, sobretudo para perceber como é que as coisas vão funcionar. Nós temos estado em contacto com a creche e eles têm sido impecáveis, têm falado connosco todas as semanas para saber se está tudo bem e mais recentemente para saber com o que é que contam da nossa parte para nós sabermos com o que é que contamos da parte deles, mas a verdade é que eles também ainda não sabem dizer muito, porque as educadoras e as auxiliares também têm filhos em idade escolar, dos que não vão ter escola presencial. Mesmo nessa parte eles ainda estão a perceber como é que vão ter o pessoal disponível, além de saber quantos miúdos é que têm. Existe essa essa logística toda para tratar. Da nossa parte, como temos a possibilidade de adiar a ida do Afonso, dá pelo menos para perceber como é que as coisas vão funcionar, o impacto que vão ter”, explica o pai.

“Por um lado o risco continua exatamente igual a quando ele saiu da creche, portanto em termos de risco de infeção preocupa-nos igualmente, o que já é muito, ao ponto de pensarmos se vale ou não a pena voltarmos à creche quando for possível. Por outro lado, começam a pesar outras dúvidas, por um lado falta a socialização com crianças da mesma idade e mesmo com especialistas da educação, por outro lado, para além do risco da infeção, o facto de ficar connosco em casa e receber uma data de outras coisas que essas pessoas não lhe vão poder dar por causa destas barreiras todas, esta questão do afeto, coisas da proximidade, coisas que ele não vai perceber. Em casa, e mesmo nós não sendo crianças da idade dele, ele tem um afeto e uma interação que não vai ter na cresce por causa destas limitações todas”, diz, mostrando-se dividido.

A máscara, entre a proteção do vírus e a barreira afetiva

A máscara é uma das maiores barreiras para o regresso das crianças às creches. Todos os funcionários das instituições são obrigados a utilizar uma e todos estão conscientes de que isso será um problema para com os mais pequenos, porque, por um lado, pode ser intimidador para a criança e por outro não permite que transpareçam as expressões faciais do educador ou do auxiliar.

No Saídos da Casca, esta foi uma questão que mereceu um trabalho adicional, feito à distância entre a creche e os alunos. “A questão da máscara é uma questão com que vamos ter de lidar no nosso dia a dia e é complicado para quem está a lidar com crianças. Há o abraço, há o beijinho, há o sorriso, há uma série de coisas, até mesmo o primeiro impacto de quem chega e que nos vê com máscara. Tentámos trabalhar isso um bocadinho com as famílias em casa com Zooms e vídeos. Temos tido esse contacto diário com as famílias, em que as educadoras apareceram com a máscara, em que incentivavam também a colocação da máscara aos pais para as crianças estarem habituadas e houve pais, por exemplo, que já agradeceram em relação a isso. Por exemplo, as auxiliares ou as educadoras que contam histórias via vídeo, passaram a fazê-lo com máscara. É nesse tipo de coisas que nós nos estamos a preparar para esta nova fase”, explica Susana.

A Laura também não vai para a creche

Na verdade, a Laura nunca andou na creche. Antes da pandemia provocada pelo novo coronavírus obrigar a uma redefinição das regras de socialização, a bebé de 21 meses estava a cargo dos avós maternos. “Nós sabemos que há muitas vantagens de eles estarem na creche, mas achámos que até aos 2/3 anos que seria uma boa altura para eles criarem relações com os avós”, explica a mãe.

Ana e João Vicente desde cedo foram obrigados a tomar medidas, uma vez que os avós, idosos, estavam dentro do grupo de risco. “Desde o dia 14 de março que, tendo eu já algum conhecimento de base, tendo percebido que as coisas não iam ser tão lineares, tirámos logo a Laura dos meus pais. Depois, o João conseguiu, na empresa dele, passar a teletrabalho e ela ficou com ele a partir desse dia, também para os meus pais poderem fazer o seu período de quarentena”, explica Ana, que é enfermeira num hospital em Lisboa.

A profissão da mãe obrigou a que a família se isolasse. Agora, passados mais de dois meses, e com o pai a deixar de poder ficar em teletrabalho é necessário tomar uma decisão: onde colocar a pequena Laura?

“Agora o que aconteceu é que nós chegámos uma altura em que o João vai deixar de estar em teletrabalho e nós ficámos na dúvida sobre o que iríamos fazer, se a poríamos na creche e continuávamos os três em isolamento, porque estando ela com outras crianças não ia poder ver os avós, ou se ela ficava com os meus pais, mesmo que existisse um risco acrescido, mesmo tendo nós todos os cuidados. Há várias formas de meter uma criança na creche. A criança pode ficar logo lá oito horas no primeiro dia ou, algumas creches e nesta altura acho que a grande maioria delas permite isso, vai-se fazendo uma integração progressiva, um dia fica uma hora e os pais ficam lá, no outro dia fica duas ou três, depois noutro dia a mãe ou o pai vão-se embora e ela fica lá sozinha. Era isto que nós, de alguma forma, tínhamos sonhado para a Laura. Se neste momento a creche tem bastantes condicionantes e também associado o facto de nós sabermos que quando a Laura for para a creche vai apanhar imensas doenças, porque é normal, é típico, vamos ter que associar às doenças comuns da infância, as preocupações do Covid”, explica Ana.

Ao lado, o pai, pergunta-se se é “uma boa ideia fazer uma coisa tão drástica como colocar a Laura na creche numa situação onde, objetivamente falando, as próprias creches ainda estão a aprender a lidar com o problema”.

Para a Ana o problema é a reabertura das creches com todas as limitações que são impostas: “Vai abrir, quase, na minha ótica, como um depositório de crianças porque existem 'n' coisas que eles não podem fazer e que seriam importantes para o seu desenvolvimento. Pensando nestas coisas todas, se calhar, e isto porque os meus pais, de alguma forma, também querem, e isso também é importante, os avós têm de ter um papel ativo nisto de ficar ou não com a criança e havendo uma série de cuidados que são essenciais, há uma grande possibilidade de optarmos por eles.”

O papel de uma creche "não é tomar conta de crianças"

O papel das creches foi largamente debatido na última semana, com vários profissionais a afirmar que o primeiro lote de medidas da DGS faziam transparecer que estas instituições eram mais um ‘depósito’ de crianças do que um local educativo.

“O que os educadores fazem é pedagogia para a infância, não é tomar conta de crianças”, diz ao SAPO24 Luís Ribeiro, presidente da Associação de Profissionais de Educação de Infância (APEI).

“Medidas como o afastamento de camas são medidas até desejáveis e dependem fundamentalmente do espaço que existe nas instituições. Há muitas creches que não têm nem de perto nem de longe capacidade para colocar as camas a dois metros uma das outras. Mas, isso, portanto, são condições de instalações, digamos assim, estão sujeitas aquilo que são as características de cada uma das creches. Não há forma de saber quais é correspondem ou não. Estamos a falar de 2600 creches no país e em 2600 a diversidade é enormíssima. Isso é um nível, o outro nível, é o impossível. Questões que envolvam o bem-estar das crianças, como, por exemplo, as medidas de distanciamento social, de as crianças terem de ficar afastadas dois metros, não poderem contactar ou brincar perto uma das outras, trocar brinquedos, etc. Não estarem perto dos adultos ou os adultos não poderem fazer carícias ou afetos, tudo isso são agressões imensas às crianças. Isso são coisas inaceitáveis. Nós temos de compreender que, do ponto de vista do desenvolvimento da criança, os primeiros anos de vida são marcados essencialmente pelas questões das relações. É exatamente da relação, da interrelação das crianças umas com as outras e com os adultos, essas interações, são o maior promotor do desenvolvimento da criança”, explica Luís Ribeiro.

O presidente da APEI, sublinhando que “os educadores de infância, em Portugal, são dos mais qualificados do mundo inteiro”, afirma que “não se pode pedir a um profissional altamente qualificado que sabe tudo aquilo que a investigação evidencia sobre o desenvolvimento da criança, que vá depois, de uma forma tão consciente, prejudicar as crianças, agredir as crianças, ao não deixá-las brincar ou contactar umas com as outras”. “Isso não é possível de acontecer”, diz.

“Na Dinamarca e na Suécia, as creches reabriram, mas não há distanciamento social entre as crianças. Isso não há. E isso é também percebermos que aquilo que nós sabemos do Covid-19 não é, propriamente, que afete as crianças, é mais pela questão de elas serem cadeias de transmissão, cadeias de contágio. Aquilo que a Dinamarca e a Suécia fizeram foi pensar: não podemos estar a pensar numa medida que pode estar a proteger as crianças quando o prejuízo para o bem das crianças é muito superior aos benefícios. E nós defendemos medidas semelhantes, não pode haver distanciamento social nas crianças em creche. Isso é impensável”, exemplifica.

Esta segunda-feira, as creches reabrem. As medidas — conhecidas a 13 de maio — já não são aquelas que outrora foram severamente criticadas. Não se fala de distanciamento social entre crianças durante as atividades, mas sim numa redução de alunos por sala, onde não entram sapatos nem brinquedos vindos de cada. Este é o documento, ponto por ponto, que, no fundo, apela a um reforço da higienização:

  • Antes da abertura, todos os espaços devem ativar e atualizar os seus Planos de Contingência, que devem contemplar os procedimentos a adotar perante um caso suspeito de COVID-19 e a definição de
    uma área de isolamento;
  • Deve ser garantida uma redução do número de crianças por sala de forma a que seja maximizado o distanciamento entre as mesmas, sem comprometer o normal funcionamento das atividades lúdico-pedagógicas;
  • Quando as crianças estão em mesas, berços ou espreguiçadeiras, deve ser maximizado o distanciamento físico entre elas;
  • As crianças e funcionários devem ser organizados em salas fixas, sendo que a cada funcionário deve corresponder apenas um grupo, e os espaços devem ser definidos de acordo com a divisão, para que não haja contacto entre pessoas de grupos diferentes;
  • Para evitar o cruzamento entre pessoas, a orientação estabelece a definição de horários de entrada e de saída desfasados e a definição de circuitos de entrada e saída da sala de atividades para cada grupo;
  • O documento refere que o calçado deve ser deixado à entrada, nas salas em que as crianças se sentam
    ou deitam no chão, podendo ser solicitado aos encarregados de educação que levem calçado extra (de
    uso exclusivo na creche). Uma orientação que também se aplica aos funcionários do espaço;
  • Os funcionários devem pedir aos encarregados de educação que não deixem as crianças levar brinquedos ou outros objetos não necessários de casa para a creche e garantir a lavagem regular dos brinquedos;
  • Garantindo que a segurança das crianças não fica comprometida, as portas e/ou janelas das salas devem ser mantidas abertas, para promover a circulação do ar;
  • Na hora da sesta, deve existir um colchão para cada criança e garantir que usa sempre o mesmo, separando os colchões uns dos outros e mantendo a posição dos pés e das cabeças alternadas;
  • No período de refeições, a deslocação para a sala deve ser faseada para diminuir o cruzamento de
    crianças e os lugares devem estar marcados;
  • A orientação estabelece que todos os funcionários devem usar máscara cirúrgica de forma adequada e que o espaço deve ser higienizado de acordo com as normas definidas pela DGS.

Dentro do medo querem ser locais de calma onde não se esquece o que se passa lá fora, mas onde as crianças e o seu desenvolvimento não fica esquecido. Elas vão voltar a brincar e a aprender.

Nota: O Afonso não é aluno da creche Saídos da Casca

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