Lisboa pôs-se fresca. Aqui em Belém, no canto ocidental da cidade, entre o Tejo e os Jerónimos, António Costa chegou cinco minutos depois do seu ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva. Meteram-se os dois a esperar à porta do Centro Cultural de Belém (CCB), olhando para os repuxos da Praça do Império.

Nos anos da Segunda Guerra mundial, algures na terra desta terra, Portugal pôs-se a fazer de centro do mundo, de capital da paz na Europa da guerra, do conflito, do populismo que degenerou. Hoje, já não há império e no lugar da Exposição do Mundo Português resta só o frio. A Europa está novamente numa guerra, esta cega e silenciosa.

Desta vez, porém, Portugal não é neutro. As marcas estão nos rostos de António Costa e Augusto Santos Silva, que ali ao frio esperam, de máscara, por Charles Michel, o presidente do Conselho Europeu, no dia em que começam oficialmente os trabalhos na Presidência Portuguesa do Conselho da União Europeia (PPUE).

Charles Michel chegou pouco passava das 15:30. Saiu do carro e depois de cumprimentar Costa e Santos Silva com os cotovelos, ficou a sós com o primeiro-ministro português. Não dava para ouvir as palavras, mas António Costa apontava lá para o fundo, para o Mosteiro dos Jerónimos, que ambos visitariam ainda durante a tarde desta terça-feira.

O Mosteiro dos Jerónimos é emblemático na relação portuguesa com a União Europeia: afinal, naquele claustro foi assinado o Tratado de Adesão de Portugal à Comunidade Económica Europeia (atual União Europeia), em 1985.

créditos: LUSA/ANTONIO PEDRO SANTOS

Seis meses para fazer uma união

Esta terça-feira marca o primeiro dia de trabalhos do semestre português à frente do Conselho da União Europeia. Charles Michel veio a Lisboa, onde fica mais uma vez instalada a sede da presidência europeia (o CCB foi construído, em 1992, precisamente para isso), para olhar para o caminho pela frente.

Esteve reunido por duas horas com o primeiro-ministro português, a quem se juntaram o ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros e a secretária de Estado dos Assuntos Europeus, Ana Paula Zacarias. No final do encontro, António Costa e Charles Michel estiveram deram conferência de imprensa conjunta.

Soube-se que não falaram de José Guerra, indicado pelo governo português para Procurador Europeu, num processo que tem deixado a ministra da Justiça, Francisca Van Dunem, debaixo de fogo. Mas a questão, levantada pelos jornalistas, serviu para Michel garantir a “total confiança” de Bruxelas na forma como Portugal vai conduzir este semestre.

“A União Europeia é uma verdadeira maratona, que se desenvolve em forma de estafeta, em que, de seis em seis meses, recebemos o testemunho”, descreveu António Costa. Desta vez, contudo, o atletismo tem “uma presidência diferente”, dado o atual contexto pandémico.

Pela frente estão “seis meses de intenso trabalho”, para os quais Costa conta com “a colaboração do presidente do Conselho Europeu, que prometeu uma colaboração “estreita e forte” em resposta: “Estamos no mesmo barco e partilhamos a convicção de fazer progredir a União Europeia ao serviço dos 450 milhões de cidadãos europeus”, vincou depois Charles Michel.

créditos: Presidência Portuguesa do Conselho da UE 2021 / Pedro Sá da Bandeira

As prioridades da presidência portuguesa – sob o lema “Tempo de agir: por uma recuperação justa, verde e digital” – “coincidem com os objetivos da União Europeia a médio e longo prazos”, assinalou Charles Michel, considerando que “Portugal tem uma experiência extremamente importante (…), que será certamente útil”.

O responsável europeu reconheceu que este “é um momento importante para o projeto europeu” e que a agenda da presidência portuguesa que arrancou no dia 1 e se prolonga até final de junho é “ambiciosa”.

Frisando que “a Europa é mais do que um projeto financeiro (…), é um projeto assente em valores”, o presidente do Conselho Europeu vincou que “o valor acrescentado do projeto europeu” passa pela qualidade de vida, pelos direitos sociais, pela educação, pelo combate a todas as formas de discriminação e desigualdades.

A crise e a ansiedade

O lema de Portugal para estes seis meses é “Tempo de Agir”. O país assume a liderança desta estrutura comunitária num momento em que já começam a chegar vacinas aos 27 Estados-Membros, mas em que a pandemia de covid-19 está novamente numa fase de crescimento.

Agir, para António Costa, é conseguir também moderar a ansiedade: sim, há vacinas, mas não é num dia apenas que se vacinam 450 milhões de europeus. O processo, prevê, "acompanhará todo o ano de 2021".

"Nunca como agora esteve em curso um processo de vacinação em que só na Europa serão vacinados 450 milhões de pessoas. É preciso que se compreenda que nem se produzem num dia 450 milhões de doses, nem se administram num dia 450 milhões de doses. Este é um processo que vai acompanhar todo o ano de 2021”.

Esta foi a resposta à dúvida sobre se as vacinas já encomendadas poderem não ser suficientes para os europeus — é que algumas das multinacionais contratadas não têm ainda as vacinas aprovadas pela Agência Europeia do Medicamento.

créditos: LUSA/TIAGO PETINGA

O primeiro-ministro admite que o calendário previsto para a entrega das várias doses "pode sofrer alterações, seja porque as empresas não conseguem aumentar a capacidade de produção, ou porque podem registar-se problemas ao longo do processo de produção”, e pede, por isso, calma: “temos de saber gerir a nossa ansiedade. Percebo bem que todos estejam fartos desta ameaça da covid-19".

Ainda assim, Costa elogia a ação da Comissão Europeia neste campo. Para o chefe do governo, é bom cada Estado-membro ter "a liberdade de poder definir o seu próprio plano de vacinação”, mas lembra que o grosso da vacinação vai ocorrer no segundo e terceiro trimestres deste ano, mas o plano desenvolve-se ainda até ao primeiro trimestre do próximo ano. É preciso ter consciência de que a descoberta da vacina, a sua posterior produção, compra, distribuição e inoculação não se faz num dia”.

Vacinar 450 milhões de pessoas "requer método, terminação e execução". Antes, em resposta a uma anterior pergunta, já o primeiro-ministro tinha dito que ele, tal como outros líderes políticos europeus, "estão a fazer figas" para que a Agência Europeia do Medicamento aprove mais vacinas contra a covid-19 — “mas, nessa aprovação, sabemos que o critério fundamental é o da segurança", acrescentou.

Vacinar também contra o populismo

"O medo é aquilo que mais alimenta o populismo. Se queremos combater o populismo de forma eficaz, temos de dar confiança aos cidadãos — confiança perante aquilo que são os receios", defendeu António Costa.

Segundo o primeiro-ministro, a União Europeia enfrenta os desafios das transições climática e digital "e ninguém deve ficar para trás". Se no presente, António Costa a covid-19 é o principal receio manifestado pelos cidadãos (razão pela qual o processo de vacinação em curso na União Europeia "é fundamental”), há ainda “outros receios”.

"As pessoas têm receio de que com a digitalização o seu posto de trabalho seja ocupado por um robô, e têm medo de que com a transição climática haja impacto em indústrias tradicionais como a do automóvel. Temos também de nos vacinar contra esses medos.”

Para António Costa, uma das vacinas contra o medo passa pela existência "de um pilar social forte" na União Europeia, que dê prioridade "às qualificações e às requalificações dos cidadãos”: “Temos de investir na inovação para que haja maior competitividade, mas também tem de haver proteção alargada para que ninguém fique para trás e todos participem na sociedade do futuro, que se pretende mais sustentável do ponto de vista ambiental e mais digital", acrescentou ainda.

créditos: ANTÓNIO PEDRO SANTOS/LUSA

Em maio, a Alfândega do Porto tem como missão encontrar também uma cura. Esta, no entanto, não será contra uma crise de saúde, mas contra o populismo. A comparação foi feita pelo primeiro-ministro português, depois de questionado sobre a tradicional oposição de Estados-Membros europeus mais liberais (casos da Irlanda ou da Holanda) a um aprofundamento de regras de caráter social na União Europeia.

António Costa defendeu a importância da cimeira social prevista para 7 de maio no Porto, onde se procurará um compromisso comum em torno do pilar social.

"No dia seguinte, no dia 8 de maio, também no Porto, haverá um Conselho informal, onde será trabalhada uma declaração que reafirme o compromisso de todos os Estados-Membros no sentido de desenvolver este pilar social — um pilar que não vale por si só, mas que deve ser encarado como uma base sólida para dar confiança a todos os cidadãos", respondeu António Costa.

Depois do encontro e da visita aos Jerónimos, Costa e Michel voltaram ao CCB para o espetáculo inaugural da presidência portuguesa, com um concerto da Orquestra Sinfónica Portuguesa, conduzido pela maestrina Joana Carneiro.

Portugal assumiu a sua quarta presidência do Conselho da União Europeia no dia 1 de janeiro, que se estenderá durante o primeiro semestre de 2021, sucedendo à Alemanha e antecedendo a Eslovénia, sob o lema “Tempo de agir: por uma recuperação justa, verde e digital”.

Pela frente, para além das outras pastas, a presidência portuguesa tem a pandemia, a vacinação e a recuperação económica como grandes desafios.

Nos próximos seis meses, Portugal retoma a sensação de capital de um império maior. Agora, porém, pede-se que seja um império de igualdade e justiça; de representatividade e sobretudo de pessoas: pessoas daqui e dos outros 26 países que compõem a União Europeia. O tiro de partida está dado — falta correr.