Da caracterização das vítimas ao contexto em que ocorreram os abusos, dos relatos gráficos de natureza sexual à metodologia de investigação, do acesso aos arquivos da Igreja Católica às recomendações, são 486 páginas as que compõem o Relatório Final da Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica Portuguesa.
O documento pode ser acedido aqui.
No entanto, estas são algumas das conclusões e números que vale a pena destacar:
- Há 512 testemunhos de abusos sexuais na Igreja validados;
- Estes testemunhos são relativos a, “no mínimo”, 4.815 vítimas — o número pode ser bem maior;
- A maioria das vítimas foi abusada quando tinha entre 10 e 14 anos, sendo que a média é de 11 anos;
- Há casos em todos os distritos, mas os cinco mais relevantes são Lisboa, Porto, Braga, Santarém e Leiria — a incidência nestes distritos explica-se, em parte, pela existência de seminários ou outras instituições religiosas;
- O pico dos abusos deu-se entre 1960 e 1990 — 60% ocorreu nas décadas de 60, 70 e 80. No entanto, mais de um quarto dos casos foi registado desde 1991 até hoje;
- 97% dos abusadores são do sexo masculino e 77% eram padres — 47% tinham relações próximas da criança;
- Os cinco principais locais de ocorrência dos abusos foram seminários, igrejas internas, confessionários, casas paroquiais e escolas católicas;
- Predominam as formas de abuso mais invasivas sobre as que não envolvem contacto físico com as vítimas — no caso do sexo masculino, manipulação de órgãos sexuais, sexo anal e masturbação. No caso do sexo feminino, predominância de insinuações;
- Predominam ainda os casos de abusos continuados sobre atos únicos e isolados — em 57,2% dos casos, os abusos ocorreram mais do que uma vez; em 27,5% dos casos, os abusos duraram mais do que um ano. O abusador está presente em proximidade com a vítima, antes, depois e durante o ato em si;
- Existe um enorme impacto psicológico das vítimas que só se revela na vida adulta. 52% só revelou o abuso, em média, 10 anos depois de este ocorrer. Em 43% das queixas, as vítimas só revelaram os casos de abuso quando contactaram a Comissão;
- 77% das vítimas nunca apresentaram queixas à igreja e apenas em 4% dos casos houve queixas judiciais;
- Foram enviadas 25 queixas para o Ministério Público, mas a maioria já prescreveu.
Duas consequências podem, para já, extrair-se deste relatório:
- Quanto aos alegados abusadores que estão ainda no ativo, uma lista será enviada à CEP até ao final do mês, para que a Igreja atue, e também ao Ministério Público, que decidirá se vai haver ou não investigação criminal consoante os casos;
- Foi proposta pela Comissão que a idade limite para apresentar queixa quanto a abusos sexuais enquanto menor — que neste momento é de 23 anos — seja aumentada para os 30 anos. A justificação prende-se com a idade das pessoas e dificuldade de verbalizar o que lhes aconteceu.
Os casos de abusos sexuais revelados ao longo de 2022 abalaram a Igreja e a própria sociedade portuguesa, à imagem do que tinha ocorrido com iniciativas similares em outros países, com alegados casos de encobrimento pela hierarquia religiosa a motivarem pedidos de desculpa, num ano em que a Igreja se vê agora envolvida também em controvérsia, com a organização da Jornada Mundial da Juventude, em Lisboa.
O relatório da Comissão Independente começou a ganhar corpo a partir de 11 de janeiro do ano passado, quando começou a receber testemunhos, e em menos de uma semana foram validadas 102 denúncias.
Sem querer adiantar números finais até à apresentação do relatório final, a Comissão Independente divulgou no seu último balanço público, em outubro, que já tinha registado 424 testemunhos validados, compreendendo casos de abusos ocorridos desde 1950 e vítimas entre os 15 e os 88 anos.
Os membros da comissão esclareceram logo à partida que não estava em causa uma investigação criminal, mas adiantaram que as denúncias de crimes que não tivessem prescrito seriam encaminhadas para a Justiça, o que veio a confirmar-se até junho com o envio de 17 denúncias para o Ministério Público (MP), mas em outubro foi assumido pela Procuradoria-Geral da República que dos 10 inquéritos instaurados, mais de metade (seis) já tinha sido arquivada.
Liderada pelo pedopsiquiatra Pedro Strecht, a comissão independente — que cessou hoje funções — foi ainda constituída pelo psiquiatra Daniel Sampaio, pelo antigo ministro da Justiça e juiz conselheiro jubilado Álvaro Laborinho Lúcio, pela socióloga e investigadora Ana Nunes de Almeida, pela assistente social e terapeuta familiar Filipa Tavares e pela cineasta Catarina Vasconcelos.
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