Pedro Strecht, coordenador da Comissão, começou por referir que o objetivo da conferência desta terça-feira é "tornar público alguns tópicos sobre o andamento do estudo, bem como fornecer informações úteis sobre ações a decorrer ou num futuro próximo".
Assim, existem "múltiplos casos de abusos de crianças", essencialmente entregues ao cuidado de elementos masculinos e femininos. Os abusos deram-se em situações como catequese, escolas católicas, escuteiros, grupos de jovens e outros. Há também casos de abuso em ordens religiosas.
Segundo o pedopsiquiatra, "todas as vítimas estavam em desvantagem física e emocional perante o abusador", visto serem crianças.
Quanto aos abusadores, "a maioria está diretamente ligada à Igreja, não são leigos que trabalham para a Igreja". Contudo, a Comissão não adianta ainda um número de pessoas envolvidas.
Neste momento, existem "290 testemunhos validados", sendo que estão todos "a ser validados individualmente, em articulação com o Ministério Público".
Estão também a ser feitos "contactos diretos com associações que podem ter dados sobre o tema" e o "levantamento de todos os casos reportados à Comunicação Social desde 1950 até aos dias de hoje".
Em curso está ainda o "acesso aos arquivos históricos da Igreja", havendo articulação em cada diocese para se investigar os casos de abuso sexual.
A socióloga Ana Nunes de Almeida referiu também na conferência que os casos em análise ainda não chegaram ao "Portugal profundo", pelo que poderão existir mais casos.
Dos 290 casos validados:
- há pessoas com todos os níveis de instrução, do ensino primário aos estudos académicos;
- há homens e mulheres, mas mais homens;
- existem casos em todas as regiões do país;
- chegam relatos de pessoas que estão agora fora do país;
- estão contempladas todas as faixas etárias (pessoas nascidas entre 1934 e 2009);
- idades do primeiro abuso entre os 2 anos e os 17 anos;
- todas as modalidades de abuso contempladas no guião do inquérito (exibição, manipulação, penetração, recolha de imagens do corpo, isoladamente ou em situação de abuso, mensagens de cariz sexual e linguagem obscena, entre outras).
A validação destes casos implica "olhar para o inquérito e ver se tem consistência interna", sendo analisada a linguagem e as descrições em causa, que permitem perceber, numa primeira fase, se o abuso aconteceu realmente.
Por sua vez, não são validados casos em que os inquéritos são preenchidos com "insultos", "disparates" ou casos de abusos noutros países mas que chegam a esta recolha. Neste último exemplo, chegou até à Comissão um caso de um português abusado em Madrid, que não irá contar para a estatística portuguesa.
Foi ainda referido que estão a ser feitas entrevistas aos 21 bispos da Igreja Católica portuguesa, para aprofundar temas relacionados com os abusos, as características das dioceses, o seu contacto com esta realidade e o acesso ao espólio de cada diocese, a partir de 1950 até ao presente. Neste momento, já 11 bispos realizaram entrevistas e um deles tem entrevista marcada — mas a Comissão não divulga os nomes em causa.
Ana Nunes de Almeida lembrou ainda que há muitos casos em que as pessoas que passaram por abusos sexuais não se aperceberam da gravidade da situação por muitos anos, estando apenas agora a despertar para o sucedido.
Casos enviados para o Ministério Público e participação da PJ
O antigo ministro da Justiça Álvaro Laborinho Lúcio adiantou ainda esta manhã que está previsto que os casos sejam enviados ao Ministério Público (MP), para que sejam investigados criminalmente. Existem neste momento 16 já entregues. Na eventualidade de surgirem dúvidas, o caso será sempre remetido, para que tudo possa ser esclarecido.
No final do trabalho da Comissão, será pedido ao MP para fazer um balanço de todos os casos.
Laborinho Lúcio indicou ainda que "esmagadora maioria" dos testemunhos são anónimos, pelo que a informação entregue ao MP é "muito pouco palpável". Além disso, muitas vezes os abusadores também não são identificados — nem a data dos casos.
Caso necessário, o MP entra em contacto com a Polícia Judiciária. Da parte da Comissão, foi pedido que esta força policial possa facultar dados que tenha nos seus arquivos sobre casos de abuso sexual na Igreja Católica.
Pedro Strecht adiantou ainda que há indícios de encobrimentos de casos em instituições. Vários bispos no ativo também estão associados à ocultação de casos — mas não à prática de abusos.
A necessidade de ouvir os testemunhos — e de falar do que se passa
Já o psiquiatra Daniel Sampaio referiu que vivemos um tempo "horas desiguais" neste processo, mas que é necessário procurar "informação científica" à volta deste tema.
Neste sentido, em parceria com a Universidade Católica Portuguesa, vão ser realizadas duas conferências descentralizadas: a 6 de maio, em Viseu, e a 18 de maio, em Braga. A 10 de maio há também um encontro científico sobre o tema dos abusos em Lisboa, na Gulbenkian, com o "alto patrocínio do presidente da República".
Por sua vez, a terapeuta familiar Filipa Tavares referiu que foram estabelecidos contactos com várias entidades, entre elas a APAV, a Quebrar o Silêncio e a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, entre outras.
Neste tempo de investigação, foram recebidas pela Comissão "177 chamadas telefónicas, alguns delas com mais de uma hora" e foram ainda realizadas "nove entrevistas presenciais a vítimas de abusos sexuais". Outras quatro pessoas quiseram ainda prestar testemunho junto da Comissão.
A realizadora Catarina Vasconcelos acentuou que os abusos sexuais são "atos que deixaram marcas profundas nas vítimas" e que a Comissão tem recebido "testemunhos de pessoas com enorme coragem, partilhada nos momentos mais dolorosos", já que revelam "algumas das suas feridas mais profundas".
Criada em janeiro para investigar abusos sexuais na Igreja Católica em Portugal, a Comissão Independente recebeu só no primeiro mês de atividade 214 testemunhos de vítimas, com idades que variam entre os 15 e os 88 anos.
Até ao final do ano, a Comissão pretende recolher testemunhos e denúncias de pessoas que tenham sofrido abusos na infância e adolescência, até aos 18 anos. No final dos seus trabalhos, vai ser elaborado um relatório, a ser entregue à Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), que decidirá que ações tomar.
Além de liderada pelo pedopsiquiatra Pedro Strecht, a comissão integra o psiquiatra Daniel Sampaio, o antigo ministro da Justiça Álvaro Laborinho Lúcio, a socióloga Ana Nunes de Almeida, a assistente social e terapeuta familiar Filipa Tavares e a realizadora Catarina Vasconcelos.
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