Adelino Cunha, professor de História Contemporânea na Universidade Europeia, já publicou várias narrativas biográficas, individuais (“A ascensão ao poder de Cavaco Silva”, 2005) e coletivas (“Os filhos da clandestinidade”, 2016), com a predominância de investigações ligadas ao Partido Comunista Português. A sua tese de doutoramento foi, precisamente, “O exílio dos comunistas portugueses 1960-1974”. Em 2010 escreveu “Álvaro Cunhal, retrato pessoal e íntimo”, livro que acaba de ser reeditado e que foi o ponto de partida para esta conversa.

A primeira edição do livro, em 2010, foi apresentada por Carlos Carvalhas (ex-secretário geral do PCP), e nesta edição de 2019, por São José Almeida. Vi lá o deputado comunista António Felipe, então, esta biografia é aceite pelo Partido Comunista?

A pergunta é pertinente e vou responder de forma completamente honesta: eu acho que as boas biografias, e eu já fiz várias, não carecem de autorização de quem quer que seja. Nem do biografado, se estiver vivo, nem dos partidos políticos, se as pessoas tiverem desaparecido. Portanto, o PCP nunca autorizou a biografia, nem nunca senti vontade de pedir que autorizasse. O facto de alguém do Partido ter ido à apresentação, para mim, foi motivo de grande alegria.

Eu não estava a perguntar se o Partido autorizou; o que eu queria saber é se eles gostaram, se tem provas de que eles acharam que está bem?

Provas diretas, não tenho. O que aconteceu foi que em 2008 eu tinha publicado uma biografia do Júlio Fogaça (membro do Comité Central do PCP entre 1946 e 1960, depois caído em desgraça), que só por si é um tema muito delicado para o Partido Comunista Português. E entrei em contacto com o Domingos Abrantes, que era membro do Conselho de Estado em representação do PCP e a única pessoa que tinha passado pelas décadas de 1950 e 1960, quando esteve preso com o Júlio Fogaça. E ele aceitou falar para o livro. Digo isto com uma certa vaidade e igual humildade: o trabalho que faço tenta ser honesto – e é honesto.

Há muitas biografias do Álvaro Cunhal; assim sem pesquisar muito, há a do Pacheco Pereira, em quatro volumes...

... Que não é exatamente uma biografia.

"A diferença deste livro, penso eu, é ser um retrato pessoal, que mostra o Cunhal para lá do mito, e confirma a ideia de que ele era uma pessoa austera, que parecia vindo quase das sombras."

Bem, eu não li, mas o subtítulo é precisamente “Uma biografia política”. E há a do Urbano Tavares Rodrigues, de esquerda, do Joaquim Vieira, de direita, do José Milhazes e da Helena Matos. Há mais de uma boa dúzia. Porque é que achou que fazia falta mais esta biografia?

A razão está no título: “Retrato pessoal e íntimo”. É e será a única biografia com entrevistas a familiares dele – a mulher, na altura, mãe da filha, com a filha, a irmã, e pessoas que estiveram com ele, ou em Peniche, o Joaquim Gomes, ou em Moscovo, o Tengarrinha, por exemplo. A Sofia Ferreira, que o acompanhava no Luso, foi presa em 1949. Estas pessoas, infelizmente, já desapareceram quase todas. Ou seja, a diferença deste livro, penso eu, é ser um retrato pessoal, que mostra o Cunhal para lá do mito, e confirma a ideia de que ele era uma pessoa austera, que parecia vindo quase das sombras. Tento mostrá-lo como o filho, o pai, o avô, o companheiro, o homem que se apaixonou várias vezes, o homem que prevaricou – além do homem político. Isto não pode voltar a ser feito com aquelas pessoas, nestes termos.

Há o facto de as pessoas falarem para os livros, e depois os livros não traduzirem o que as pessoas acham que é o conteúdo dos livros. Eugénia Cunhal, quando a biografia já estava para sair, gravou um depoimento a atestar a honestidade do que lá está.

Esta história do culto da personalidade... Eu, pessoalmente, tenho a impressão de que ele incentivou esse culto em relação à sua pessoa, o mais que pode. O que você acha? Não estou a perguntar o que está no livro, mas a sua opinião pessoal.

Eu acho que sim, mas com um objetivo. O Cunhal, para quem o conheceu, era um homem verdadeiramente carismático. Provocava um efeito forte entre os homens e as mulheres – era bonito, e digo isto sem referência à sexualidade.

Mesmo sexualmente, ou melhor dito, sensualmente, ele era sem dúvida o mais forte dos líderes históricos do pós-25 de Abril. Com uma atração sensual. Porque o Mário Soares era um paizinho e o Sá Carneiro era muito "queque", classe alta.

O Álvaro Cunhal sabia que era uma pessoa carismática, sabia que provocava esse efeito nas pessoas e cultivou, ainda que a contragosto – porque ele achava que o herói era coletivo, era o povo...

Mas ele achava mesmo isso? Porque era estalinista, não é?

Eu tenho dificuldade em responder a essa pergunta de forma que não seja um bocadinho agressiva...

créditos: Rodrigo Mendes | MadreMedia

No livro, percebe-se uma certa ambiguidade em relação a isso.

Bem, se estalinista é um adjetivo, ou seja, se significa que a pessoa soube, concordou e colaborou com o assassinato em massa que foi o estalinismo, um período facínora na história do comunismo internacional, então é intolerável que se diga que o Álvaro Cunhal era estalinista. Seria como dizer que ele sabia e concordou com aqueles massacres. Não era estalinista nesse sentido.

Então, era no sentido de quê? Da pessoa, da personalidade do Estaline?

Eu acho que não tinha a ver com o Estaline. Tinha a ver com a situação do PCP ser um partido ultra-periférico, pouco relevante do ponto de vista internacional e dependente financeiramente das operações internacionais. Acho que o PCP foi fiel politicamente a Estaline, como foi a Khrushchov e depois a Brejnev, por uma questão de sobrevivência.

Mas quando Khrushchov denuncia Estaline no chamado Congresso Secreto, em 1956, que provocou uma confusão geral nos comunistas do mundo inteiro, o Cunhal mesmo assim defendeu a imagem do estalinismo. Quer dizer, o PCP, dirigido por Cunhal, recusou-se a aceitar a versão do Khrushchov.

Há aí um detalhe histórico. É que o Cunhal estava preso em Peniche. Quando se começa a fazer esse revisionismo todo, ele está confinado. Ele mais tarde até se vem queixar que o PCP tentou apagá-lo da História por ter feito também esse esforço de se desfazer do culto da personalidade.

Foi por isso que ele depois apagou o Júlio Fogaça da História do PCP?

A pergunta é pertinente, mas acho que foram motivos diferentes. O Júlio Fogaça foi o único rival intelectual do Álvaro Cunhal, em termos de preparação política, de escrita, de produção literária. Não houve outra pessoa com o mesmo peso específico. E ele dirigiu por duas vezes o PCP, e das duas vezes impôs uma viragem ao partido exatamente contrária ao programa do Cunhal.

Sim, é a política da “transição pacífica”, contrária à política leninista da revolução popular. Desde a queda do Estaline que tem sido essa a questão dos partidos comunistas, não é? Tomar o poder pela força ou fazendo alianças com as outras “forças democráticas”. Então, a maioria dos partidos comunistas europeus aderiu ao chamado “Eurocomunismo”, e o PCP, quando o Cunhal o tirou do Fogaça, voltou à linha revolucionária.

Sim, aliás o PCP é o único partido europeu que se mantém fiel ao marxismo-leninismo.

É o único que existe atualmente não é?

É. Aliás, ainda hoje os estrangeiros têm um fascínio incrível pelo PCP do Álvaro Cunhal. Publiquei há pouco um artigo em Espanha, e eles ficaram fascinados: o PCP ainda existe nesses termos?

"Ele [Cunhal] sempre acreditou que a única forma de derrubar a ditadura era uma insurreição popular armada. Não acreditava nem um bocadinho numa transição pacífica."

Qual é a sua impressão? Você acha que o Cunhal de facto acreditava que o único caminho para tomar o poder era uma revolução popular? Costumo fazer a mesma pergunta a mim próprio em relação aos cardeais da cúpula romana: será que eles acreditam mesmo, ou estão tão empenhados em fazer os outros acreditar que nem têm tempo para duvidar? Assim sendo, ele acreditava mesmo que era possível as massas revoltarem-se, ou era apenas uma estratégia que ele queria impor às bases?

Não, não, é uma convicção absoluta do Álvaro Cunhal. Se há alguma coisa que nós podemos tributar-lhe politicamente é esta coerência entre o pensamento e a palavra. Ele sempre acreditou que a única forma de derrubar a ditadura era uma insurreição popular armada. Não acreditava nem um bocadinho numa transição pacífica. A partir de 60-61, de facto transforma a opinião dele numa estratégica política. É o que está no seu texto “Rumo à vitória”, escrito em Kiev e Moscovo. Convictamente, ele diz que a revolução tem de ser feita dentro do território e com uma parte das forças armadas. Visto retrospetivamente – aliás, os soviéticos eram muito bons nisso, eram especialistas em prever o passado! — lendo o “Rumo à vitória” podemos ver que de facto ele tinha razão, foi necessário que uma parte das forças armadas tivesse rompido com a ditadura para a derrubar.

Não foi nada a mesma coisa. Não houve nenhuma revolta popular. A população aderiu depois. Imediatamente, mas depois. E sem armas.

Pois, não tem nada a ver.

É interessante porque o Cunhal era sem dúvida muito inteligente, para lá do carisma. Pergunto-me: como é que uma pessoa tão inteligente persistiu no conceito leninista, quando o conceito leninista já tinha sido ultrapassado pelos acontecimentos?

Está a falar, depois do 25 de Abril?

Antes e depois. Antes, teoricamente, e depois, na prática. Apesar do 25 de Abril não encaixar na sua previsão, uma vez que os militares se revoltaram por razões corporativas, apesar de tudo, ele continuou a achar que era possível seguir a via leninista. Que aliás foi o que aconteceu em muitos países, inclusive na Rússia em 1917; depois da revolução, formou-se um governo com vários partidos e os comunistas acabaram por destruir ou neutralizar os outros.

Nos países de Leste, quando os nazis foram derrotados, fizeram-no com a ajuda do Exército Vermelho que ainda lá estava.

Exatamente. Então, apesar do 25 de Abril não ser o que o Cunhal tinha previsto, não reviu a sua previsão. E tentou a via leninista. O que era até possível. Como ele dizia, fazer um governo com “todas as forças democráticas”, que o PCP depois se encarregaria de acabar com as outras.

Acho que nós reconhecemos isso, ou seja, que ele esteve em contraciclo, mas o facto é que se manteve coerente. Ou seja, se ele cedesse naquilo que era essencial – um homem que entrou para o PCP muito cedo, aos 17 ou 18 anos, faz quase 48 anos de combate na clandestinidade –, chegar a uma situação democrática e reconhecer que afinal estava enganado, era renunciar à sua própria essência. Uma impossibilidade. Se eventualmente aparecerem diários, ou cartas, poderemos ter alguma luz sobre as dúvidas que ele poderia ter. Para mim, o Álvaro Cunhal renunciar à via armada, à tomada do poder pela violência, à revolução, seria renegar-se a ele próprio. A antipatia política que ele tinha ao Santiago Carrilho (o líder do PC espanhol) era exatamente por isso, porque o outro “cedeu” ao eurocomunismo. Falei com o Santiago Carrilho por causa do livro e ele tentou aligeirar um pouco a sua relação com Cunhal. O Cunhal nunca gostou dele, mas o Carrilho tentou fazer uma reinterpretação da relação.

Você acha que o Cunhal deve estar a dar voltas na tumba com a linha atual do PCP?

Pois, não sei responder. Embora o PCP, do ponto de vista da sua adaptação à democracia, na sua essência, em termos de programa, se mantenha um partido leninista. É um partido que não mudou.

Pois, de facto, um dos problemas do Partido Comunista é esse, não ter feito uma atualização para a realidade. O ponto de viragem é o 25 de Novembro de 1975. Você recorre a fontes para dizer que o Cunhal recuou, quando ele afirma que à última hora retirou os comunistas do golpe. O golpe que teria sido de forças de esquerda “selvagens”, digamos assim. Eu não acredito muito nisso. Quer dizer, há três hipóteses: ou ele achou que estava na altura de dar o golpe leninista, porque tinha praticamente tudo na mão, os sindicatos, parte das forças armadas...

... Mas não tinha o país.

O país todo não tinha, mas tinha o suficiente. Na Rússia e nas revoluções posteriores nos outros países, os partidos comunistas também não tinham o país inteiro, mas tinham o suficiente para tomar o poder. Portanto, naquele momento decisivo do 25 de Novembro, era tudo ou nada. Há três hipóteses: ou ele não avançou, foram “esquerdistas à solta” que se precipitaram, e que é a versão dele; ou ele terá avançado e depois, quando viu que não ia ganhar, recuou; ou, ainda, a versão da direita, que ele avançou e perdeu. O que você acha? Não estou a perguntar os factos que se sabem, e que estão no livro, mas a sua opinião.

Há uma quarta hipótese: é uma parte do PCP que radicaliza o discurso e força o partido a ir para a rua. Aquele velho PCP da clandestinidade, da ARA (Ação Revolucionária Armada), que aliás se manteve clandestino depois do 25 de Abril – aquela geração toda que vinha de 20, 30 anos de luta na clandestinidade, os velhos revolucionários profissionais, quer-me parecer que é essa ala mais radical que força o conflito e que leva o Álvaro Cunhal por uma via que não era a que ele achava que levaria o PCP ao poder de uma forma mais fácil.

"[Cunhal] nunca foi favorável à criação de um braço armado do partido."

Porque ele achava que ainda não era a altura?

Ou que a altura já tinha passado. Aliás, há um antecedente indicativo, que é o caso da ARA. Quando se forma a ARA, ele reage com muito incómodo pessoal. A ARA reivindica uma autonomia gigantesca em relação ao Cunhal, ele até se vê na contingência de emitir alguns comunicados a elogiar as atividades da ARA, mas nunca foi favorável à criação de um braço armado do partido. Esta é a minha opinião pessoal.

Mas como é que ele queria fazer a revolução popular sem ação armada?

Queria fazer com uma parte das forças armadas. O velho mito leninista que de já falamos: há um governo de transição que está a tentar fazer a revolução burguesa, começa a fraquejar, e o poder é tomado de dentro para fora. Queria uma revolução bolchevique em Portugal – aliás ele sobe ao Chaimite, quando chega ao aeroporto!

Pois, essa imagem é notável.

Depois disseram que não, que era uma mera coincidência.

Pois disseram, mas aquilo foi completamente encenado. Aliás, faço uma vénia ao aparelho do partido, que conseguiu montar essa foto-oportunidade em cinco dias.

E depois, no Primeiro de Maio, em que ele discursa com um soldado e um marinheiro de cada lado. A aliança povo-forças armadas. Está tudo ali, de facto. A coreografia leninista era-lhe muito cara!

Mas precisamente, o que eu não entendo é essa teimosia num homem tão atento e inteligente. Na altura estávamos todos confusos, a avaliar os acontecimentos segundo as nossas esperanças. Mas hoje já temos dados e o recuo necessário para ver a incongruência de certas medidas que o PCP implementou. Por exemplo, a reforma agrária; já se sabia que não funcionava há muitos anos. Na União Soviética, na década de 1930, na China, na de 1950, tinha sido um desastre, em produção e em vidas. Não sei de nenhum país onde tenha resultado.

Não há memória disso.

Pois, então como é que ele insistiu nesse mito?

A reforma agrária, a nacionalização dos bancos e das seguradoras.

"Talvez agora já seja altura de aceitar o papel que o Mário Soares teve na consolidação duma democracia do tipo ocidental."

Pois, eles exageraram nas nacionalizações e depois isso jogou contra eles porque assustou muita gente.

No 11 de Março (de 1975), quando a ala dita moderada se começou a impor com alguma contenção, é que se percebeu que o tempo estava a acelerar depressa demais. Eu acho que o Álvaro Cunhal sabia, e as pessoas depois confirmaram-no de uma forma muito clara, que o país não era de esquerda e muito menos comunista. Ele tinha um sentido agudo de que o PCP não tinha no terreno a força que lhe era atribuída no tempo do Salazar, quando lutava na clandestinidade. E o PS surge de facto como um partido que à partida não se esperava que tivesse a força que teve. Isso foi fundamental não só para evitar a radicalização de esquerda, como para equilibrar o regime e depois para travar um processo revolucionário do tipo da Europa de Leste. Talvez agora já seja altura de aceitar o papel que o Mário Soares teve na consolidação duma democracia do tipo ocidental. O papel do PS foi fundamental para que o processo se começasse a civilizar e os militares regressassem aos quartéis.

créditos: Rodrigo Mendes | MadreMedia

O Cunhal, depois do golpe 25 de Novembro ter falhado, deve ter percebido que já não havia oportunidade...

Você acha mesmo que foi um golpe?

Não, não acho. Usei a expressão para simplificar, mas realmente não sei bem o que se passou. Aliás, era uma pergunta que lhe queria fazer: qual era a intenção do Otelo (Saraiva de Carvalho)?

O 25 de Novembro, apesar da distância de 45 anos e de alguns livros que saíram, ainda não está completamente explicado. Continua enrolado numa certa névoa. Não se percebeu ainda, com rigor, o papel do PCP.

Mas o Otelo era o quê?

O Otelo era a esquerda cubana. Era o herói do povo, o Che Guevara, ao estilo sul-americano.

Uma esquerda espalhafatosa... Festiva, se diria hoje.

Exatamente. O PCP não, sempre foi um partido muito sério. Um partido que vai fazer 100 anos. Não tinha boas relações com o Otelo, como nunca teve boas relações com nenhuma esquerda, nem com o MRPP, nem com a UDP , nem com os seus dissidentes, na altura. Sempre tentou ocupar o espaço todo da esquerda. Hoje, a Geringonça foi prova disso.

Também há o caso da [invasão] Checoslováquia, em 1968, quando o Dubček [chefe de estado da antiga Checoslováquia que iniciou as reformas da chamada "Primavera de Praga"] tentou reinventar o comunismo...

Precisamente. E o Cunhal alinhou com Moscovo, o que provocou confusão e cisões com os portugueses que estavam em Praga. A Cândida Ventura, foi nessa altura que se tornou uma agente dupla, porque tinha deixado de acreditar no comunismo.

Ele sabia?

Sabia. E porque deixou passar? Porque gostava dela? Ou porque no íntimo havia um Álvaro Cunhal que achava que o PCP tinha de estar com Moscovo, mas talvez achasse que Moscovo foi longe demais com a invasão.

"Não se pode ter razão no tempo errado da História."

Sim, porque aquela invasão foi tão má como a denúncia do Khrushchov – estragou, e muito, a imagem do comunismo.

O Dubček e outros são levados para Moscovo, são literalmente vítimas dum branqueamento. Quando regressam à Checoslováquia eram outras pessoas. Porque eles tinham querido fazer uma abertura, uma Glasnost, antes do tempo, antes ainda do discurso do Khrushchov, e tudo aquilo é esmagado. Não se pode ter razão no tempo errado da História.

Aliás, a Glasnost [política reformista levada a cabo pelo Secretário-Geral do Partido Comunista da URSS, Mikhail Gorbachov], aqui foi um balde de água fria para o PCP, que detesta o Gorbachov.

O PCP fez um congresso para tentar reajustar-se à Perestroika [restruturação económica] e ao Glasnost [a reforma política que visava maior transparência e o combate à corrupção], mas nunca lidou nada bem com o “coveiro” da União Soviética.

Não havia ajuste possível, porque o Gorbachov abandonou o comunismo.

Aliás, na minha opinião, o Gorbachov só chega ao poder por um motivo: a União Soviética está claramente a perder a Guerra Fria para o Reagan. Não sei se se recorda, na altura, os norte-americanos já estavam a pensar num programa de satélites militares, o chamado “Guerra das Estrelas”. O Partido Comunista da União Soviética (PCUS) só deixa que ele ascenda ao poder porque está a perder a guerra com os Estados Unidos e percebe que, ou há uma recuperação rápida da economia soviética, ou a corrida está perdida para sempre. E os militares, a velha elite, acham que o Gorbachov é o tecnocrata que vai rejuvenescer a economia. Não é uma decisão política, é a necessidade duma reforma económica. Só que era irreformável, já tinha entrado em colapso.

Só há pouco tempo é que me apercebi dessa diferença; os chineses acompanharam o que aconteceu na União Soviética e decidiram fazer o contrário, ou seja, manter o sistema político e fazer a abertura económica.

Há uma frase muito significativa dos chineses: “Não importa se o gato é branco ou preto, o que importa é que o gato cace o rato”. É esse o pragmatismo do comunismo chinês.

Portanto os chineses fizeram o inverso dos russos e deu resultado. Têm um partido comunista brutal, agora com o Xi Jiping é mesmo para valer, mas o consumo está à solta. Porque, na verdade, o que as pessoas querem é ter um nível de vida satisfatório, pouco lhes interessa as liberdades. A ausência de liberdade é uma coisa que incomoda os intelectuais, os outros nem reparam que não há liberdade.

Não é fundamental para viverem. Mas vale a pena olhar para Hong Kong. Nesse modelo parecia que os chineses se tinham convertido ao capitalismo mundial, que não importava a cor do gato, mas não é bem assim. Hong Kong mostra que as coisas não mudaram assim tanto.

"As pessoas que acham que Hong Kong vai ser aquilo que era antes destes distúrbios, estão enganadas. Não vai acontecer."

O que você acha que vai acontecer em Hong Kong?

Bem, há esta nossa impossibilidade de prever o futuro. A teoria do caos, de que acontecimentos de pequenas dimensões podem provocar consequência enormes.

Isso é o que torna a vida mais interessante... No caso de Hong Kong, acho que um dos grandes motivos por que eles ainda não intervieram é para mostrar a Taiwan que num futuro – os chineses pensam a longo prazo — se Taiwan se integrar na China, não terá problemas. Acho que não os vão convencer, mas a ideia é essa.

Está a falar dum aspeto muito interessante, que é a questão do tempo. O tempo ocidental corre a uma velocidade diferente do tempo dos chineses. E, por esse facto, isto que nós vemos como quase uma pré-revolução em Hong Kong, os chineses veem como um pequeno conflito na gestão quotidiana. E as pessoas que acham que Hong Kong vai ser aquilo que era antes destes distúrbios, estão enganadas. Não vai acontecer.

Outra coisa que os leva a não mexer em Hong Kong é que é o maior centro financeiro da Ásia e o terceiro do Mundo. Através de Hong Kong, os chineses fazem as grandes transações financeiras internacionais, e não podem perder essa capacidade. Há muitos financeiros estrangeiros a operar em Hong Kong.

E também não podem perder aquilo para a democracia.

Mudando de assunto: fiz aqui uma anotação sobre a eliminação do termo “ditadura do proletariado” no programa do PCP.

Isso foi em 1974.

Foi para não assustar, não é?

Exatamente. Pura semântica. O PCP sabia que havia a memória de 48 anos de ditadura e que uma nova ditadura, mesmo sendo do proletariado, da construção dum Estado sem Estado, não seria de todo entendível pelas pessoas.

Um dos problemas do PCP, mesmo atualmente, é o vocabulário. Já ninguém se identifica com o “proletariado”. Hoje, os proletários são “colaboradores”. O povo tem aspirações burguesas. Mesmo aqueles que ainda não conseguiram as benesses da burguesia têm o sonho de viver como burgueses. “Proletário” tornou-se uma palavra... é quase como dizer “pobre”.

Eles agora usam o termo “trabalhadores”.

Mas trabalhador também é uma classificação com que ninguém se quer identificar, mesmo sendo-o. Quem é o trabalhador? A empregada de limpeza que vai a casa dos que não são trabalhadores.

Mas o PCP sabe para quem é que está a falar. Quem são os trabalhadores, quem são os operários. De facto, não são os quadros médios, os burgueses. E este ressurgimento da força de certos sindicatos está em dissonância com os sindicatos mais tradicionais. Vai ser interessante ver quando é que o PCP vai voltar para a rua; desamarrou-se da Geringonça, perdeu três eleições seguidas...

"Eu acho que o PCP nunca olhou para o BE. O PCP olha para a História. E o António Costa deu ao PCP aquilo que Mário Soares nunca se sentiu tentado a dar: o poder efetivo."

Não acha que o PCP entrou na Geringonça para não perder importância em relação ao BE?

Não, a Geringonça parte do PCP.

Sim, mas independentemente de quem teve a ideia – o que até hoje se discute – se o BE se aliasse ao PS e o PCP ficasse de fora, porque o PS já tinha maioria só com o BE, eles ficavam à margem do “processo” que se ia seguir.

Eu acho que o PCP nunca olhou para o BE. O PCP olha para a História. E o António Costa deu ao PCP aquilo que Mário Soares nunca se sentiu tentado a dar: o poder efetivo. Mário Soares nunca quis depender do PCP para governar, durante 45 anos de democracia, e é António Costa que lhes dá essa oportunidade. E o PCP viu isso como uma forma de influenciar decisões concretas e não se preocupou muito com o BE.

Não imagina que deve ter havido no Comité Central discussões terríveis entre a linha dura e os que viam esta situação como uma oportunidade?

Sem dúvida nenhuma. Eu acho que os próprios comunistas dirão que faz parte do debate democrático, da democracia interna. O que nos faz falta, e digo-o como historiador, é a ausência de fontes. Não é pela transparência com que os partidos funcionam ou queiram funcionar. Fazem-nos falta fontes para que possamos interpretar os acontecimentos.

créditos: Rodrigo Mendes | MadreMedia

Isso é a opinião do historiador, que anda sempre à caça de fontes...

Eu perguntei-lhes: porque é que não se abre os arquivos? E responderam-me assim: “porque isto é um partido político, não é uma academia de História”. Tive de aceitar, mas preferia ter tido acesso às fontes!

Mas fez-lhes essa pergunta?

Fiz.

"Existe um grande historiador português que de facto tem essa ideia, de que o partido, para se purgar internamente, ou na sua periferia, terá entregado algumas pessoas."

Isso é uma pergunta muito ingénua. Jamais o PCP abriria os seus arquivos.

Mas não foi uma pergunta em forma de pedido. Sem o “por favor”. E no dia em que isso acontecer, se acontecer, todos os livros de História em que aparece o PCP vão ter de ser revistos. Porque a História que está nos papéis, nas fontes, é outra História.

Aliás, uma coisa que você escreve, é que o PCP, num período de limpeza, entregou os seus próprios militantes; a propósito disso, eu sempre ouvi dizer, e até já soube dum caso concreto, mas não me lembro, que o PCP denunciava à PIDE as pessoas que queria neutralizar – não militantes, mas de outras oposições. É uma suspeita horrível.

Existe um grande historiador português, que eu admiro profundamente, que de facto tem essa ideia, de que o partido, para se purgar internamente, ou na sua periferia, terá entregado algumas pessoas.

Pode dizer o nome dele?

Não posso, porque foi uma conversa privada, mas é um dos grandes historiadores contemporâneos. A conversa foi a propósito do Humberto Delgado. Ele acha que esse livro está por escrever ainda.

O Humberto Delgado, foram os PIDEs infiltrados junto dele que o tramaram. Não parece que tenha sido o PCP.

De acordo. Mas era necessário fazer um livro só sobre a emboscada, o último mês e os últimos dias. De facto, há essa ideia. E o Pacheco Pereira conta um caso num dos livros dele, o caso “raio X”, em que um militante é entregue pelo PCP. Mas não me parece que o PCP fizesse disso uma política. Podem ter acontecido alguns casos, admito que sim. Nisso, os espanhóis eram muito mais radicais, tanto na Guerra Civil como depois. Na década de 1950, executaram os traidores. A chamada justiça revolucionária. O PCP nunca foi perseguido com a mesma violência com que o PCE foi, nem foi muito de exercer essa justiça revolucionária.

De facto, o PCP foi mais vítima de violência do que autor. Pregava a revolução armada, mas nunca a pôs em prática.

Estou a pensar mais no sentido de interpretar a questão da violência. Tinha, internamente, a violência que vinha do seu exército silencioso, aquelas pessoas que abdicaram de toda a sua vida, dos filhos, das famílias, para lutarem pela causa sem nenhuma perspetiva de quando iria acabar. Podia exercer a violência contra terceiros, mas internamente era exigido um sacrifício que eu, como pai, considero incalculável e não consigo nem sequer imaginar o que é abdicar da minha filha, da minha mulher e da minha mãe para estar na clandestinidade. Sujeito a ser preso, torturado.

E aquela altura em que os prisioneiros do Tarrafal foram amnistiados, voltaram para Portugal e retomaram a direção do partido, não percebi bem qual foi a posição do Cunhal. Contra eles ou a favor deles?

Foi apanhado a meio da ponte. O Cunhal está no interior, com a direção da altura, e quando os tarrafalistas vêm, o Militão Ribeiro, que é para todos os efeitos o Secretário Geral do PCP – o lugar só foi ocupado em 1961 por Álvaro Cunhal, quando ele foge para a União Soviética –, vêm dar um arraso brutal no PCP. Fizeram um partido ao lado do que cá estava. E o Cunhal, não querendo alinhar com a direção traidora, também não era um tarrafalista, e quem dirige este processo de grande violência é o Julio Fogaça, numa posição claramente ascendente em relação ao Álvaro Cunhal, que mais tarde vem dizer que quis fazer a ponte entre uns e outros e eles não o quiseram ouvir. Depois o Cunhal faz críticas violentíssimas ao Cansado Gonçalves, ao Vasco de Carvalho e a toda aquela direção, das quais ele mais tarde de certa forma se retrata. Então, ele ficou a meio da ponte; nem com a direção saneada nem com a onda dos tarrafalistas.

Bem, os tarrafalistas, depois do que passaram, deviam estar com um péssimo feitio e muito pouco tolerantes.

O Júlio Fogaça e o João Ventura vêm com esta posição, muito forte, em 1940-41, mas ele é preso e volta para o Tarrafal. Quando regressa da segunda vez, já o Cunhal está no poder, e não comete o mesmo erro outra vez. Porque o Cunhal cometeu muitos erros, mas nunca duas vezes. Desta vez deixou o Fogaça na periferia do PCP, sem nenhum tipo de contactos. O Fogaça, nas cartas dele, queixa-se muito disso. Veio do Tarrafal, quis-se reintegrar, e o Cunhal manteve-o ali um bocadinho à margem. Tinha aprendido com a situação de 1940-41.

E aquela questão, se o Mário Soares se afastou ou foi afastado, o que você acha, pessoalmente?

O Mário Soares é recusado pelo PCP, mas ele nunca foi um comunista.

Bem, conhecendo a personalidade do Mário Soares, acho que ele nunca se integraria numa estrutura comunista. Nem como subalterno nem como dirigente.

Por outro lado, ele não era comunista, era um homem de mentalidade livre.

Além disso, era um líder nato.

Na altura, era muito novo ainda.

Sim, mas se ele tivesse continuado no PCP, é evidente que não ia dar certo. O Soares é um burguês, no bom sentido da palavra, acredita na democracia pluralista, que os comunistas consideram burguesa. Se lá esteve, foi ele que se afastou, acho eu.

Pode ter sido. Eu percebo as duas partes. O facto é que o Mário Soares, sendo um homem livre, nunca aceitaria aquela disciplina de ferro do PCP, e também não aceitaria, nem aceitou, entrar na clandestinidade. No fundo, foi afastado, ou afastou-se, por não ser um bom comunista, ou seja, por não estar cem por cento alinhado com aquela causa limite do PCP. Mas não foi uma situação traumática, nem para o Mário Soares nem para o PCP. Aliás o Álvaro Cunhal até lhe deu aulas de Geografia, o que levou o Soares a dizer que ele ensinou muito bem as coordenadas celestes e errou nas coordenadas terrestres!

Acho que eles só se tornaram inimigos depois do 25 de Abril, quando o Cunhal percebeu que o Soares é que era o perigo. aquele debate famoso em 1975.

“Olhe que não, olhe que não!”

Isto é um pormenor sem interesse na grande ordem das coisas, mas gostei muito de ler a história do Jorge Alves, o GNR que ajudou Cunhal a fugir do forte de Peniche [à data uma prisão de alta segurança], em 1960. Que figura, triste, terrível...

Batia na mulher... Suicida-se sozinho. O PCP tenta agarrá-lo ainda. Envia várias vezes o Carlos Antunes a Praga. Tentam falar com ele, resgatá-lo.

Aquela cena que você relata da fuga de Peniche, em que ele vem para trás, vai para a frente, e depois tenta afastar-se do grupo aos gritos, “traíram-me, traíram-me!” Sente-se o desespero do homem.

Ele era alimentado a vinho.

Acho inacreditável como a GNR não controlava melhor o equilíbrio mental dos homens que tinha em Peniche. Porque ele era nitidamente inadequado para o papel de carcereiro.

Foram dois cúmplices, o Jorge Alves e um primo dele.

Isso é porque era primo, aquela coisa portuguesa dos laços familiares.

Foi um grande enxovalho para o Regime. Quando do lançamento do livro, houve uma pessoa que me veio perguntar se eu não achava que o Estado Novo deixou o Álvaro Cunhal fugir de propósito. Um dispare. O que me impressiona é como ainda há pessoas que tentam reescrever a História baseados neste tipo de lavagem cerebral que foi o próprio regime que deixou.

"A história pode ser revisitada e isso não tem mal nenhum, desde que seja feito com verdade."

Em termos mais gerais, a História não é constantemente reescrita?

Reinterpretada. O conhecimento é contingente e sempre que aparece uma fonte nova ou que mudamos de contexto histórico, a História não pode ser reescrita, mas é reinterpretada.

Mas além das fontes novas, não há também uma mudança de mentalidades, que faz ver as coisas doutra maneira?

Sim, sem dúvida. O mesmo acontecimento, que pode ser a Revolução Francesa, ou a Revolução Americana, temos sucessivos historiadores a fazer novas interpretações. Porque as pessoas são produtos da sua própria época e porque surgem mais fontes. É contingente, de acordo; é subjetivo, certo; mas é rigoroso e verdadeiro com as fontes que existem na altura. Há sempre a criatividade do historiador a preencher os espaços em branco. Não pode ser é ficção. E agora há os historiadores pós-construcionistas que querem uma História quase narrativa, onde os factos contam pouco. A história pode ser revisitada e isso não tem mal nenhum, desde que seja feito com verdade.

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