Menos de 8%. É esta a percentagem do oceano que se encontra protegido. Pescamos demasiado, poluímos demasiado (também) porque pescamos demasiado, o que faz com que a temperatura suba e o oceano fique mais ácido. Este é o contexto em que a National Geographic decidiu lançar, em 2008, o projeto Pristine Seas para explorar e ajudar a proteger os locais remotos, e ainda selvagens, do oceano. "Estes ecossistemas únicos são uma janela para o passado, revelando como o oceano era antes de estarmos a pagar a fatura da sobrepesca e da poluição", pode ler-se no site.

Alan Friedlander foi desafiado por Enric Sala, explorador que lançou o Pristine Seas, para ser o cientista-chefe deste projeto que já protegeu 21 locais remotos do oceano que são hoje  21 reservas marinhas. No passado fim de semana, Friedlander foi um dos participantes na Convenção das Organizações para um Oceano Limpo que se realizou, em Lisboa, e que juntou 62 organizações que se dedicam à recolha de lixo marinho. O cientista falou perante um público atento da sua experiência nos lugares do oceano "onde nunca ninguém tinha saltado para a água antes".

O cientista vive no Hawai e não se lembra da sua vida sem ser perto do mar. Cresceu com o mar pela frente e sempre se sentiu em casa com o mar à sua beira. Estudou ecologia, especializou-se em ecologia do mar,  e no início da  carreira, trabalhou como voluntário em Tonga, no Pacífico, onde percebeu "o valor do oceano" e das pessoas que melhor o conhecem que são as que dele dependem.

No início do milénio, em 2002, publicou um artigo que chamou a atenção da comunidade científica. Nele mostrava como são os espaços do oceano onde existem pessoas face aos espaços remotos onde não está ou nunca foi ninguém. E uma das conclusões que se destacou foi que onde não há pessoas nem atividades como a pesca há mais predadores que presas. Sendo que hoje, com mais de uma década de trabalho do Pristine Seas, uma das memórias que conserva é a de ter encontrado plástico nas praias de locais oceânicos onde nunca estiveram humanos antes, o que mostra a dimensão do problema ao nível planetário. Foi também através do Pristine Seas que Alan Friedlander conheceu Portugal, primeiro as Selvagens, e depois os Açores, em parceria com a Fundação Oceano Azul.

"Entre as redes sociais, a educação e a consciência da geração mais jovem de que serão deixados com isto, a discussão ganhou espaço e tornou as pessoas conscientes que precisamos de fazer alguma coisa  e que precisamos de o fazer agora" afirma nesta entrevista ao SAPO24. E, neste contexto, as redes sociais, criticadas em tantas outras dimensões, podem estar a ser um elemento de pressão importante, pela partilha de informação à escala global. O que faz com que afirme: "às vezes as mensagens certas vêm através da desordem".

Havia nesta plateia muitos jovens para quem a função que desempenha é provavelmente um trabalho sonho. Como é que se sente tendo esse papel?

Alan Friedlander – Sinto-me cheio de sorte. Tenho podido ver alguns dos últimos lugares selvagens do Oceano e é verdadeiramente inspirador ir a lugares onde ninguém ainda tinha estado. Percebemos assim como os oceanos já foram no passado. E tenho quase a mesma dose de inspiração com pessoas como as que hoje aqui estiveram, porque estão a travar uma luta que vale a pena. Quando olho para as pessoas que estiveram aqui vejo a persistência e inspiração que todas têm e é contagioso.

O mar é a sua vida desde sempre. Como é que se tornou também a sua missão?

A.F. - Cresci junto ao mar e sempre adorei o oceano. Durante uns anos, no início da minha carreira, trabalhei como voluntário num lugar chamado Tonga e foi muito motivador. Percebi o valor do oceano, o valor do conhecimento que tinham os pescadores que viviam nessa ilha no meio de nada, e o quanto dependiam do mar. Todo esse conhecimento e valor apontou-me um caminho: está tudo no oceano e ainda assim não estamos a protege-lo como devíamos. O meu amor pelo mar e o facto que estou sempre lá, a fazer surf, a pescar, a nadar, inspira-me. Pomos a nossa cabeça debaixo de água e é um mundo à parte, desconhecido, é intelectualmente estimulante.

Os pescadores são os nossos olhos na água e sabem mais que qualquer um de nós, porque andam sempre lá

E ainda assim, nunca tivemos tantos problemas para resolver relacionados com o oceano, dos pescadores que sempre pescaram aos ativistas que hoje lhes dizem que a pesca é um desses problemas ...

Os pescadores queixam-se que são o alvo, mas penso que são ao mesmo tempo um problema e uma solução. Os pescadores são os nossos olhos na água e sabem mais que qualquer um de nós, porque andam sempre lá. Em todas as áreas há pessoas boas e pessoas más, e aqui também, há pescadores responsáveis e outros que não o são. As grandes frotas industriais são um problema, são subsidiadas pelos governos e há muito trabalho escravo e violação de direitos humanos nestas explorações. E isso impede os pescadores de pequena escala de efetivamente conseguirem viver da pesca. Na prática, apenas precisamos de pescar melhor e de pensar sobre a sustentabilidade do que pescamos.

Isso significa exatamente o quê?

No passado, os recursos de muitas das ilhas do Pacífico onde trabalho não eram monetizados, não tinham valor económico, mas tinham valor como alimento e faziam parte da cultura local há séculos. Mas quando se coloca um número nestes peixes, tornam-se todos os peixes valiosos. Os cavalos marinhos vão para a China com fins medicinais, peixes que nunca ninguém tinha procurado ganham valor, e passa a valer a pena apanhar o último. Por isso, passámos a ter de olhar para o futuro.

Qual o impacto dessas mudanças na vida dos pescadores?

Eu percebo que as pessoas têm de ganhar a vida e que precisam de se preocupar com a semana seguinte ou com o mês seguinte, mas também precisam de se preocupar com os próximos 10 anos, com os filhos e os netos, e há formas de o fazerem. Podemos pescar de maneira mais inteligente – somos muito eficientes a matar peixe, mas temos de ser mais inteligentes na forma como o fazemos, quando o fazemos e onde fazemos. Ter áreas protegidas é uma solução, apesar de ser contra-intuitivo porque estas áreas produzem mais peixe, mas é suposto beneficiarem os pescadores. Faz tudo parte de um processo de educação, é mais difícil educar pessoas mais velhas, mas os miúdos percebem, vêem a degradação. Um dos principais problemas que temos é o facto de cada geração que se segue ter expectativas mais baixas sobre o que é natural. O mundo está a acelerar rapidamente e se não colocamos travões e descobrimos como fazer as coisas de forma mais sustentável, vai tornar-se insustentável.

É responsável pelo Pristine Seas, também envolvido num projeto nos Açores. De que se trata e o que têm vindo a fazer?

Os objetivos são identificar os últimos lugares selvagens no oceano e protege-los. Como é que o fazemos? Juntando a ciência, a exploração marítima, os media e as políticas. Estes lugares são incrivelmente inspiradores e o facto de as pessoas não viverem lá, de serem remotos, torna os custos de proteção bastante baixos e as pessoas ficam muito orgulhosas ao perceberem o que têm – são lugares fantásticos. Tubarões, foca-leopardo, grandes predadores que foram removidos da maioria dos ecossistemas são espécies dominantes nestes locais, e ajudam-nos a perceber como eram no passado. Quando as pessoas vêem isto, vêem a ciência por trás disso. Temos sido muito bem sucedidos na última década, já protegemos 21 lugares e mais de seis milhões de quilómetros quadrados.

Os açorianos são pessoas do mar, dependem do mar e o ecossistema tem se aguentado, mas é crítico fazer alguma coisa, porque pode dar para os dois lados

Como é que os Açores se encaixa no projeto?

O Atlântico é um oceano onde há pesca e pessoas há muito tempo, por isso precisamos de pensar em todas estas questões em termos relativos quando comparadas com as situações nos lugares remotos. Os Açores, quando comparados com muitos lugares no Atlântico, ainda estão envoltos em esperança. Também estivemos nas Selvagens, que é um lugar espantoso entre as Canárias e a Madeira e percebemos a diferença. Nos Açores vemos as boas e as más notícias. Os açorianos são pessoas do mar, dependem do mar e o ecossistema tem se aguentado, mas é crítico fazer alguma coisa, porque pode dar para os dois lados. Se gerirem melhor as pescas, se criarem áreas protegidas, há esperança de reabilitar e reanimar grande parte do ecossistema, o que irá beneficiar o oceano e as pessoas.

Qual o maior impacto que têm iniciativas como a do Pristine Seas?

Até recentemente o progresso foi lento. Mas, entre as redes sociais, a educação e a consciência da geração mais jovem de que serão deixados com isto, a discussão ganhou espaço e tornou as pessoas conscientes que precisamos de fazer alguma coisa  e que precisamos de o fazer agora. Para a geração mais velha é mais difícil fazer a mudança, a geração mais jovem vê a mudança todos os dias, faz perguntas que as pessoas ainda não tinham pensado, apercebe-se que as coisas estão a degradar-se muito rapidamente e portanto a ação tem de acontecer agora. Por isso têm estado na linha da frente desta chamada de atenção.

Como é que equilibramos as várias frentes onde é preciso atuar? 

O status quo é inaceitável. É difícil, é muita coisa ao mesmo tempo – é pobreza, desigualdade social – mas no fim do dia temos de ter consciência que somos dependentes de um planeta saudável e não podemos viver isolados uns dos outros. Uma das coisas que aprendi há muito tempo com as pessoas nas ilhas do Pacífico é que somos parte da natureza e precisamos de o aceitar e descobrir como viver o nosso dia a dia em harmonia com a natureza em vez de contra ela. É difícil, hoje em dia, mas em cada decisão que tomamos devemos pensar que isso nos afecta não apenas a nós, mas ao futuro do planeta.

O tema não é de todo novo, menos ainda para os cientistas, mas nos últimos anos entrou finalmente na agenda mundial. Houve algum ponto de viragem?

Não sei se há um ponto de viragem, mas há uma consciencialização gradual que as coisas estão a piorar rapidamente. Talvez por isso  esteja tão à nossa frente, é tão óbvio. O plástico está em toda a parte, vou a lugares remotos do oceano e vejo plástico em praias onde não há sequer pessoas.

As redes sociais foram um dos impulsos nessa consciencialização? Porque as pessoas partilham informação, o que é provavelmente umas das melhores coisas das redes sociais ...

Penso que sim! A possibilidade das pessoas partilharem informação é igualitária, não há classe social, todos têm uma voz e às vezes as mensagens certas vêm através da desordem. As pessoas aperceberam-se que há plástico em toda a parte. Todos têm uma opinião negativa sobre o plástico, alguns outros temas podem ser mais difíceis de identificar e eu espero que identifiquemos o problema do plástico na próxima década porque é óbvio para todos e que é um problema de saúde humana. É quando as pessoas começam a mudar.

Imagine que nos livramos do problema do plástico nos próximos 10 anos: continuaríamos a ter outros problemas ...

Isto é sobre viver melhor, de forma mais inteligente, tentar perceber como viver mais em equilíbrio com a mãe natureza. Há coisas que precisamos fazer, precisamos de reconhecer o valor da natureza e quão importante é para nós.