“Café. Duplo, por favor.”

A logística matinal tem muito que se lhe diga, pelo que o café vem em jeito de empurrão para começar o dia. Depois de enfrentar a fila para lavar os dentes, há que começar a empacotar para seguir de novo. A melhor dica da manhã? Abra o pipo para esvaziar o colchão e mergulhe sobre ele (mas com jeitinho que os músculos já levam uns bons quilómetros em cima e a noite não lhes deu o descanso exigido). Enrola-se o colchão que, claro, já não cabe na caixa que o trouxe até aqui. É a vez do saco de cama, mesma saga. As malas têm tendência a ficar mais pequenas à medida que os quilómetros aumentam, e a paciência para lutar com o fecho escassa. Finalmente, o pequeno-almoço e alguém distribui folhas. O objetivo é que se escrevam pedidos para levar e deixar aos pés de Nossa Senhora. Por esta altura nada ocorre e a folha fica em branco. Bastaram alguns quilómetros para saber o que pedir: bermas… mas talvez seja melhor fazer um requerimento à Câmara Municipal.

Caríssimo Presidente da Câmara Municipal do Cartaxo,

O meu nome é Inês F. Alves e, juntamente com a minha equipa de reportagem, estou a acompanhar um grupo de peregrinos de Lisboa até Fátima. Dizem os cartazes ao longo do caminho que “o município do Cartaxo apoia os peregrinos”, pelo que estou certa que será sensível à minha proposta - que, irá verificar, é deveras inovadora. O que lhe proponho é a ‘Via Peregrino’ (VP). Numa altura em que populam ciclovias nas grandes cidades, uma faixa própria para quem caminha pelo país parece-me ser algo razoável. Pode ser de alcatrão, mas se for possível ter uns blocos de cimento a separar esta VP da faixa de rodagem, melhor. É que a deslocação de ar provocada pelos camiões acaba por causar sempre um certo desequilíbrio. Fico a aguardar atentamente a sua resposta esta proposta, na esperança que outros municípios amigos do peregrino a possam também acolher. Quem sabe, um dia, não temos a primeira VP1 do mundo, de norte a sul, tal qual EN1.

Cumprimentos,

IA

Inês F. Alves

Nota mental concluída, vai mais um toquezinho na pessoa da frente. É que tentar caminhar em fila tem os seus desafios: ora se pisa o ténis daquele que nos antecede na caminhada, ora o pé é pousado na curva da vala e se antecipa uma queda que pode ser muito feia. É que com bolhas ainda se caminha, mas de pé torcido o caso muda de figura.

Passa um camião, mais um. Não acenam, estão concentrados no trânsito porque o mais seguro é mesmo ir muito devagar e passar o mais distante possível dos peregrinos, mesmo que isso implique ocupar parte da via que segue em sentido contrário. O perigo - que fizeram tantas vezes os amigos, família e colegas de trabalho questionar a realização desta nossa caminhada - é real. Com as pernas cansadas e os pés a doer, some-se a isto alguma desconcentração. O olhar segue nos pés, um atrás do outro, até a linha branca que orienta o caminho e marca a berma começar a confundir o olhar e o cérebro. Parece que hipnotiza.

Entre Azambuja e o Vale de Santarém, boa parte do caminho foi feito assim, sob o imperativo de uma tensão constante. Em prol do caminhante neste terceiro dia de peregrinação esteve sobretudo o sol que, tímido, se manteve escondido atrás das nuvens quase toda a manhã.

Posto isto, ide perguntar a quem caminha qual o seu percurso de eleição. Junto à estrada nacional, muitos dirão.

Atalhos que não atalham

Quando a estrada nacional dá lugar à terra batida muitos se questionam sobre o porquê do trajeto alternativo. “O ano passado não fomos por aqui”, alguém comenta. “Assim vamos dar uma volta maior”, acrescenta num murmúrio. Seguimos.

“Ó amigos, ó amigos. Para onde vão?”, questiona a funcionária de um café quando a passagem do grupo - na casa das 30 pessoas - passa por um pequeno povoado. “Para o Vale de Santarém”, responde-se. “É que por aí vão dar uma grande volta. Vão pela esquerda, sempre em frente, que poupam os quilómetros”, argumenta a jovem mulher. “Olhem que vocês estão perdidos”, sentencia. “Não, não estamos. É que o GPS às vezes engana”, diz o Padre Carlos Macedo, que lidera esta caminhada, de olhos postos no ecrã do tablet.

Ora, segue o grupo para a direita, mas um beco estreito convida a uma mudança de rumo. Quando a tecnologia falha, há que seguir o instinto - e a experiência - de quem já muito se aventurou por este caminho. Ao fundo, as gentes da terra vão gritando: “É sempre em frente, é sempre em frente”.

Devagar, um condutor passa de vidro aberto na cauda do grupo e comenta: “Vão enganados, vão enganados. Estão a ir para o lado do Alentejo”. A incerteza aumenta e por reflexo também a dor se acentua. Convicta, Olinda, autointitulada “carro vassoura” desta peregrinação, bate palmas e enche o peito para dizer: “Vamos lá, vamos lá”. “Puxe por nós dona Olinda, puxe por nós”, responde António, lá longe. E ela puxa.

Inês F. Alves

Aqui, na alternativa, a vista é mais agradável, a segurança é maior e o ar mais respirável, mas os quilómetros já caminhados e por caminhar vão pesando, uns nas pernas, outros no pensamento.

Certo é que pela hora do almoço se chega finalmente ao Vale de Santarém, onde canja e feijoada esperam estes corpos cansados e a pedir refrigério.

Pernas para cima, creme anti-inflamatório. Desta vez não há lugar a muito tempo de descanso, é preciso seguir caminho para Santarém, onde ficaremos alojados esta noite e onde se irá realizar a missa para alimentar não o corpo mas o espírito que não quer ceder ao corpo.

É aqui, na Igreja do Santíssimo Milagre que o Padre Carlos Macedo pede forças para os que puseram a caminho de Fátima. Nesta paróquia, também conhecida como Igreja de Santo Estevão, é para o grupo um lugar particularmente especial. Reza a história - e confirma a fé - que aqui ocorreu em 1266 aquele que ficou conhecido como o Santíssimo Milagre, consequência de um grande sacrilégio.

Há 800 anos, uma mulher roubara uma hóstia consagrada a mando de uma bruxa local. Uma vez escondida, esta hóstia começou a sangrar e não mais parou, levando a pecadora ao arrependimento e aldeia à devoção. Hoje, a relíquia está guardada no museu da igreja, que fomos convidados a visitar e cujo anfitrião foi sobrinho-neto de Lúcia, uma dos três pastorinhas de Fátima.

A coincidência reveste-se de especial relevância num ano em que os irmão Marto, Jacinta e Francisco, vão ser canonizados em Fátima, numa cerimónia que tem lugar no centenário das aparições e que conta com a presença do Papa Francisco.

É de olhar colocado em Fátima que amanhã se voltará ao caminho.

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