Não há surpresas. No final destas eleições, o nome do presidente da República de Angola é o nome do cabeça de lista do MPLA: João Lourenço. Ministro da Defesa de José Eduardo dos Santos, quadro do partido, sucessor do homem que esteve trinta e oito anos à frente de um dos países mais valiosos de África. A conclusão é de duas especialistas em assuntos africanos com que falámos para perceber que futuro tem Angola à espera. O país, que Portugal colonizou durante quatro séculos, é a origem de alguns dos mais importantes investimentos feitos em terras lusas. Da comunicação social à banca, os capitais angolanos alimentam hoje uma considerável fatia da economia nacional. Por isso, sem esquecer tudo o resto, estas eleições são particularmente importantes para Portugal.
Outro dado garantido é que José Eduardo dos Santos vai deixar de ser o presidente da República de Angola. Todavia, significa isso que a dias de fazer 75 anos vai sair de cena? Ana Lúcia Sá, diretora do mestrado em Estudos Africanos do ISCTE-IUL diz que não: “não sai de cena porque vai continuar a ser o presidente do MPLA”, o partido que decide os destinos de Angola desde 1975.
“Se tudo correr como é expectável, o mandato dele como presidente do MPLA vai ser até 2022”, precisamente o tempo da legislatura que sairá das eleições desta quarta-feira.
Paula Cristina Roque é investigadora da Universidade de Oxford. Dedica-se há décadas aos assuntos angolanos. Está em Joanesburgo, na África do Sul. Depois destas eleições, afirma, veremos surgir dois polos de poder: “Vamos ver o presidente João Lourenço a assumir realmente e formalmente a presidência e vamos ter o ex-presidente José Eduardo dos Santos como presidente do MPLA”.
“A Constituição de 2010 deixou muito claro que qualquer ato de governação tem de passar primeiro por uma consulta do partido”. E assim, “quem controla o partido controla, em grande parte, a política do Governo e, neste caso, também a política de João Lourenço”.
Ana Lúcia Sá, em Lisboa, concorda. Chama-lhe um “artifício constitucional”, que garantirá a José Eduardo dos Santos “uma presença bastante forte em Angola”, não só para ele, mas também para a família. E isso acabará por toldar a independência de Lourenço.
“Se por um lado é alguém com um apoio claro do partido e é tido como uma figura bastante reta, por outro lado, a proximidade a José Eduardo dos Santos ou a outras figuras importantes do regime de José Eduardo dos Santos, como o Bornito de Sousa [candidato a vice-presidente] leva a pensar se de facto a mudança será assim tão efetiva, pelo menos num primeiro momento”, explica ao SAPO24.
“A família Dos Santos vai ter um grande poder económico, que vai ter impacto na própria forma e na capacidade financeira que João Lourenço terá para governar”, diz Paula Cristina Roque. Capacidade que se materializa nas raízes que os filhos do eterno presidente angolano têm na Sonangol (petróleo), na Endiama (diamantes) e no Fundo Soberano (investimentos).
João Lourenço acabará, assim, com dificuldades “para conseguir reformar o sistema de governação” e, no fundo, em contornar o “aparato de herança” que José Eduardo dos Santos lhe lega.
Ainda assim, esta é uma questão que se divide em duas partes, explica Paula Cristina Roque: por um lado, “não se percebe bem o que João Lourenço quer fazer com Angola”. A dúvida está em saber se Lourenço vai continuar a linha de José Eduardo dos Santos, seja por essa ser “a visão que queria” ou, talvez, “por não ter uma visão definida”, explica a investigadora.
Por outro lado, João Lourenço chega ao poder numa altura em que Angola “está a revelar grandes fragilidades”. Fragilidades que vão da economia ao aparelho de segurança, por exemplo. Segurança que assume especial importância com o recrudescer dos conflitos com a FLEC (Frente para a Libertação do Enclave de Cabinda) e com a situação complicada nos vizinhos Congos, onde têm surgido combates entre as Forças Armadas Angolanas e várias milícias congolesas, diz Paula Roque.
Mas aqui, João Lourenço pode ter alguma vantagem. “É um general, coisa que nem Agostinho Neto nem José Eduardo dos Santos eram, e foi ministro da Defesa”. Isto dá-lhe “um entendimento muito específico da defesa do país”. Pode ser uma vantagem, sim; ou podia ser, não fosse João Lourenço estar “com as mãos atadas por causa da lei recente que lhe limita a possibilidade de retirar chefias do aparelho de segurança durante os próximos anos, ficou tudo cristalizado como estava”.
A questão é que “qualquer país que passa por estas reformas tem de reformar generais antigos, tem de receber outros, tem de recalibrar e definir a segurança do país”. Não podendo fazê-lo, não será possível reformar o aparelho.
No entanto, há mais reformas a fazer para além da segurança: “as instituições do Estado também vão ter de ser reformadas”, explica Paula Cristina Roque.”José Eduardo dos Santos governava em instituições paralelas, através da Casa Militar e da Casa Civil, onde o Executivo respondia perante a presidência”. “O Parlamento pouco poder tinha e certamente não tinha poder de fiscalizar o Executivo e o sistema judicial também funcionava consoante as indicações da presidência”.
O caminho está, portanto, fechado. “Acho que João Lourenço vai ter de entrar para governar com um sistema que é enfraquecido e não foi testado estes anos todos, porque funcionava à parte”. Ou seja, o motor da governação era a presidência e não o governo.
"Uma resistência e de uma sobrevivência estratégica pouco comuns”
Mas a João Lourenço não será dado esse luxo. Porque Lourenço não é Dos Santos, cuja estratégia ao longo dos anos lhe granjeou a eternidade. “Conseguiu criar uma rede clientelar bastante poderosa, que o manteve sempre no poder”, explica Ana Lúcia. “José Eduardo dos Santos é um líder de uma resistência e de uma sobrevivência estratégica pouco comuns”, acrescenta Paula Cristina Roque.
Experiência que se percebe se olharmos para o contexto de onde nasceu a figura do presidente. “Acho que ele aprendeu durante a Guerra Fria a manobrar e equilibrar vários interesses. Aprendeu isto muito bem com os russos, aprendeu depois a lidar com os americanos, especialmente depois das eleições de 1992. Acho que ele foi muito astuto politicamente”, diz a investigadora de Oxford.
“A política de José Eduardo dos Santos tem, ao longo dos anos, refletido a experiência das dificuldades por que passou.” Há que ter em conta, porém, que a guerra civil angolana nos anos 1980 “foi totalmente diferente da guerra dos anos 1990. Nos anos 1990 a UNITA estava do lado errado da história e isso facilitou muito a capacidade de o MPLA ganhar a guerra”, explica Paula Cristina Roque.
E cimentou-se. Fixou-se, eternizou-se. Angola é o MPLA, o MPLA é Angola. Em 2017, porém, as fissuras podem anunciar-se. Hoje, o partido de João Lourenço e José Eduardo dos Santos tem adversários reais. “Não podemos descurar o peso da oposição e da forma como a oposição poderá comportar-se”, afiança Ana Lúcia Sá.
A UNITA é ainda a líder dessa oposição. Surge quando Portugal ainda mandava em Angola e hoje divide segmentos enormes da população angolana com o MPLA. “Não nos podemos esquecer de que a UNITA nos anos 1980 tinha um governo paralelo, na Jamba, que preparou tecnocratas, que preparou quadros” muito bem preparados para entrar na liderança do país, explica Paula Roque.
“Temos oposição em Angola”, diz, “uma oposição com preocupações legítimas, que tem crescido em número de apoiantes e que tem força política. Agora, não sei é se os resultados vão refletir realmente a vontade popular”.
“O MPLA vai ganhar, provavelmente com irregularidades, porém, mesmo sem irregularidades o MPLA provavelmente ganharia, embora com uma margem pequena”.
Em Lisboa, Ana Lúcia concorda. “Creio que o MPLA vai ganhar as eleições e ficaria muito surpreendida se acontecesse uma vitória por uma margem muito mínima”. “Há receios de que estas eleições não possam ser chamadas livres e justas e penso que esses receios são legítimos por todo um conjunto de más práticas a que se vem assistindo”.
Más práticas? “Tem havido muitas queixas , que têm vindo de partidos da oposição e de outras pessoas, queixas de que há pessoas que estão recenseadas noutras províncias que aquelas das suas residências, pessoas que não fizeram prova de vida para constarem nos cadernos eleitorais e que não constam, mas podem constar agora, o facto de haver uma contagem dos votos centralizada em Luanda também tem levado a críticas de que o MPLA pode controlar melhor como é que vão ser distribuídos os votos e pode haver fraude eleitoral”, explica Ana Lúcia.
“É preciso que a oposição se una para conseguir fiscalizar estas eleições”, atira de Joanesburgo Paula Roque. “As preocupações em termos de transparência são legítimas, o registo eleitoral, que devia ter sido conduzido pela Comissão Nacional Eleitoral, foi conduzido pelo Ministério da Administração do Território e isso em si já é uma preocupação grave, porque determina quem é que vota e quem não vota. Esta não devia ser uma função do Executivo, do governo, mas sim de uma comissão independente onde a oposição tivesse a capacidade de fiscalizar e auditar o processo todo”, explica.
A diretora do mestrado em Estudos Africanos do ISCTE-IUL levanta ainda outra questão: “Também pode haver votação por receio.” Isto é, “muitas pessoas podem votar por medo – ‘Vou ter de votar MPLA porque alguém vai saber se votar noutro partido e posso ter consequências.’”
"Uma estabilidade não democrática aceitável"
Se assim é, no meio de toda a fumaça, o que diz a comunidade internacional? “Angola é vista um bocado como o Ruanda e a Etiópia. A estabilidade, mesmo que seja uma estabilidade não democrática, é aceitável; porque Angola passou por uma guerra muito divisiva e muito complicada”. Para além disso, “está localizada numa região da África Central que é, em si, muito instável. Precisamos de um pilar de estabilidade na região, especialmente na região dos Grandes Lagos, e Angola é esse pilar”, explica Paula Cristina Roque.
“Esta é a preocupação chave da grande maioria dos países da comunidade internacional”, acrescenta.
“Claro que há países que se preocupam com a falta de democracia, com os níveis de repressão, que se têm agravado ultimamente, com a falta de transparência nas eleições mas, e vamos ver isso com as missões de observação eleitoral da SADC [Comunidade de Desenvolvimento da África Austral, de que Angola faz parte], da União Africana, da CPLP [Comunidade de Países de Língua Portuguesa, de que Angola e Portugal fazem parte]”, a prioridade vai para a estabilidade.
“Sei que a oposição, das últimas vezes, teve grandes preocupações, teve até um recurso em tribunal nas últimas eleições para contestar os resultados, e a comunidade internacional não ligou nenhuma; todas essas organizações disseram que as eleições foram credíveis e isso vai acontecer desta vez, mesmo com todas as preocupações que a oposição agora tem levantado”, explica a analista.
Falta cultura democrática? “As pessoas mais velhas viveram num regime colonial ditatorial [Angola foi colónia de Portugal até 1975] e depois num sistema de partido único, um sistema de partido dominante. Há agora toda uma geração, nascida depois de 2002 [ano do fim da guerra civil angolana], que já viveu, com todas as consequências da guerra, mas sem terem a guerra civil simultânea à sua vivência”, explica Ana Lúcia Sá.
“Acho que ainda é preciso um pouco mais de tempo para que se consigam superar estas duas condições que Angola teve: por um lado o regime de partido único mais ditatorial e por outro ser um país que viveu em guerra civil, uma guerra civil bastante dura”, acrescenta.
“No entanto, falta muita cultura democrática no sentido do respeito por liberdades fundamentais e pela liberdade de expressão e pelas diversas minorias que o país tem” e que equivalem a diversas minorias políticas. “Isso sim falta, desde o nível central do Estado até à população.”
“Se nós pudermos medir uma qualidade de democracia através destas questões, sim”, falta cultura democrática em Angola, explica a investigadora do CEI-IUL. “Não é quase permitido às pessoas que possam fazer uma manifestação contrária aos desígnios do partido que está no poder ou do líder que está no poder. Pedir para José Eduardo dos Santos ir embora era quase um ato de rebeldia.”
Se o poder não muda, mudará o país? “A alteração real vai ter de acontecer de alguma fora, porque vão ter de reformar todas aquelas áreas de que falámos. Será que vai ser de uma forma proativa porque veem que de há áreas preocupantes se não forem reformadas, ou se vai ser porque chegará a um ponto onde não são sustentáveis e acabam por ter de reformar por e acabam por ter de reformar por necessidade de sobrevivência do regime? Estamos para ver”, questiona Paula Cristina Roque.
Estamos para ver. “Acho que o primeiro ano de João Lourenço vai marcar qual dessas duas posições é que ele vai seguir”, acrescenta.
Uma primavera Lourencista, à moda portuguesa?
“Estima-se que haja um processo transicional, em Angola, para um regime mais aberto. Depende da forma como o João Lourenço vai conseguir estabelecer diálogos com diferentes setores da população e com diversos setores da política angolana, desde os partidos da oposição a organizações da sociedade civil, grupos de interesse, antigos combatentes”, prevê Ana Lúcia Sá.
Uma primavera Lourencista, à moda portuguesa? “Dependendo destas circunstâncias, não sei se poderemos falar desta transição como se esperava que fosse a primavera Marcelista; espera-se que haja mudanças, agora depende do próprio comportamento de João Lourenço enquanto líder do país e do governo, neste sentido dialogante com vários sectores e no sentido de construção de uma economia mais diversificada e de conseguir fazer reformas importantes de que Angola necessita – desde o sistema bancário às forças armadas e ao investimento em áreas que tiveram um desinvestimento constante ao longo destes anos de José Eduardo dos Santos, que é a educação e a saúde”, conclui a investigadora do ISCTE-IUL.
“Angola ainda tem níveis de pobreza e de problemas socioeconómicos gravíssimos” diz Paula Cristina Roque. Problemas que não podem ser empurrados com a barriga: “com esta crise financeira, não pode deixar [a resolução] para uma outra campanha eleitoral.”
“A pobreza no país existe desde sempre, com a agravante de que o petróleo em Angola não gerou riqueza, gerou pobreza e isso de facto não se justifica num país tão rico como Angola”, acrescenta. “Não se justifica que os índices sociais continuem a alterar pouco em duas décadas de paz”, sobretudo quando o MPLA teve a oportunidade para os resolver, já que “controlavam tudo hegemonicamente, ou seja, não tinham de negociar” com ninguém “as reformas, os seus programas políticos ou económicos”, diz a investigadora, que está a terminar o doutoramento pela Universidade de Oxford.
O MPLA tinha “a capacidade absoluta de reinar da forma que quisesse, e de facto fê-lo de tal forma que desenvolveu o país, reconstruiu-o, mas não o desenvolveram suficientemente para conseguir combater a pobreza, tanto é que a pobreza mantém-se e, em certas partes, agravou-se”, conclui Paula Cristina Roque.
Esta quarta-feira, os angolanos vão às urnas decidir uma decisão que já parece estar tomada à muito tempo. Resta saber o que João Lourenço fará com ela. Ou saber o que os poderes paralelos deixam João Lourenço fazer com o futuro de Angola que José Eduardo dos Santos lhe encosta às mãos.
O SAPO24 procurou, ao longo das últimas semanas, ouvir a representação da República de Angola em Portugal. Todavia, apesar da insistência, a resposta foi sendo sucessivamente adiada, não tendo sido possível obtê-la até ao momento.
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