Agora que o programa da Cruz Vermelha de Ovar e da Cerciovar inicia mais uma temporada de ações em que várias entidades colaboram para diminuir o abandono escolar e o casamento precoce entre a etnia cigana, o balanço é positivo, mas técnicos sociais e professores reconhecem que a mudança se processa lentamente.
Branca Silva é diretora do Agrupamento de Escolas Ovar Sul, dá aulas há 23 anos na Escola EB23 Monsenhor Miguel Oliveira, "onde sempre houve alunos de etnia cigana", e começa por reconhecer que casos como o de Júlio César Monteiro, que nos anos 90 ingressou pela primeira vez no 1.º grau de escolaridade quando já tinha 13 anos de idade, "são raros e de louvar".
A professora explica porquê: "É preciso muita coragem para um cigano fazer frente aos pais, ainda para mais nessa altura, há 20 anos atrás, quando a cultura deles era ainda mais fechada. Hoje ainda há pais ciganos que não querem os filhos a estudar, mas já se nota uma diferença de atitude muito grande e, quando lhes dizemos para inscreverem os miúdos na escola, já não é uma luta tão grande como antes".
Júlio César, que hoje tem 46 anos, confessa que teve muitas discussões com o pai sobre o assunto e que só resolveu o problema agindo pela calada. "Ele cismava que eu não podia ir, mas fui-me matricular sem ele saber e, quando ele descobriu, já não pôde fazer nada", revela.
Ser "um gigante entre os pequenitos" da primeira classe até teve graça porque aprender a ler e a escrever era orgulho que superava essas e outras inibições. A dificuldade maior foi que, aos 16 anos, já Júlio se casava com uma menina de 13 e não conseguia conciliar todas as obrigações. Acabou por deixar as aulas e só mais tarde lhes deu continuidade até ao 8.º ano, já num curso de qualificação para adultos.
Recordando esses tempos, o cigano não hesita, contudo, em dizer que contrariar o pai valeu o esforço e foi das melhores coisas que fez na vida. Precisamente por isso é que aceitou de bom grado quando as técnicas do projeto "Agitana-te" apareceram no seu acampamento a oferecerem acompanhamento pedagógico aos filhos. Júlio tem cinco, todos frequentaram a escola e, embora "o mais esperto da família" tenha deixado as aulas para casar, o pai confia que Ana, a mais nova dos irmãos, completará a escolaridade obrigatória.
"Ela só não faz a escola toda se não quiser. Desde que não se perca em namoros, anda lá o mais que puder", garante o pai.
Branca Silva lamenta que essa mentalidade ainda seja frequente entre as 12 comunidades ciganas de Ovar, sobretudo no que se refere ao sexo feminino, o que impede muitas jovens de usufruírem de experiências pedagógicas habituais em todos os programas letivos. "A cultura cigana castiga muito as mulheres e há raparigas que não têm autorização para ir a visitas de estudo porque os pais têm receio que elas se apaixonem por rapazes ‘brancos' e depois queiram fugir", refere como exemplo.
Do outro lado da equação, também nem tudo está resolvido. A diretora do Agrupamento assume que, "tal como em tudo na vida, há professores mais sensíveis do que outros" às questões da integração social e reconhece alguma intolerância também por parte da comunidade docente, embora a atribua menos a preconceito do que a medo puro.
"Os professores da casa são totalmente diferentes, porque já fazem este trabalho há muito tempo, conhecem a comunidade cigana de Ovar e foram vendo a mudança ao longo dos anos, mas, quando recebemos docentes novos, pode ser muito complicado porque alguns vêm de escolas muito problemáticas, em que havia casos de violência, e ao princípio têm medo - medo mesmo! - de lidar com estes miúdos ou com os pais deles, por recearem pela sua própria integridade física", diz Branca Silva.
A professora realça, aliás, que, na sua escola, "os miúdos com pior comportamento até são os outros", não-ciganos, pelo que aconselha aos novatos evitarem ideias predefinidas e, com um suspiro, afirma: "Estas coisas levam o seu tempo. Temos é que tentar fazer o melhor que podemos a cada dia".
Nessa perspetiva, um aspeto que todos os envolvidos no projeto "Agitana-te" consideram essencial é a mudança de comportamentos ao nível de higiene individual, que nem sempre é a melhor entre os miúdos ciganos.
A educadora social Maria João garante que, na maioria dos casos, não é possível detetar qualquer diferença de aparência entre miúdos "ciganos e brancos" porque todos tomam banho com frequência e vestem roupas limpas - Ana Monteiro Soares por exemplo, só se destaca nos seus 12 anos pelos cabelos fartos e olhos intensos, bem delineados a lápis preto - , mas reconhece que esse cuidado e brio ainda não é prática geral entre os jovens da mesma etnia.
"Nem todos se apresentam com o mesmo arranjo porque isso depende muitos das condições que eles têm no acampamento onde vivem - e não se consegue mostrar na escola aquilo que não se tem em casa", defende.
Branca Silva declara que essa questão é "o primeiro entrave" a um relacionamento em pé de igualdade entre a população dominante e a etnia minoritária e, identificando as famílias ciganas de uma determinada localidade de Ovar como as que vivem em condições piores, conclui: "Nesse acampamento não há as condições de habitabilidade mínimas! Se a vida deles não mudar lá, nós aqui na escola não vamos poder fazer tudo".
*Por Alexandra Couto/Lusa
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