Portugal começou o desconfinamento esta segunda-feira. Acontecerá por fases e será constantemente reavaliado.

Uma das ferramentas consideradas por alguns países para definir estratégias seguras de regresso à vida fora de casa são os “certificados de imunidade”.

Começando pela clarificação, o que são afinal os certificados de imunidade? Trata-se de documentos que atestam que uma pessoa é imune a uma doença infecciosa, neste caso à covid-19 - ou seja, que não fica doente de novo se voltar a estar em contacto com o vírus, SARS-CoV-2.

  • A Alemanha foi um dos primeiros países a falar na hipótese de atribuir este tipo de documento, logo no final de março. As investigações para o desenvolvimento de um teste de imunidade estavam em curso e poderiam durar dois ou três meses, anunciou na altura a revista alemã Der Spiegel. “Aqueles que tenham imunidade podem ter uma espécie de certificado de imunidade que, por exemplo, os isente das restrições nas suas atividades”, disse o epidemiologista Gerard Krause, coordenador do estudo a nível nacional, citado pela revista.
  • Também no Reino Unido, logo no início de abril, o ministro da saúde, Matt Hancock, adiantou que o país estava a considerar “um certificado de imunidade” que pudesse identificar as pessoas em condições de “voltar à vida normal, tanto quanto possível”. O governante foi alvo de críticas por ainda não existir um teste de imunidade aprovado.
  • Já o Chile anunciou que irá atribuir “cartões covid-19”. O ministro da saúde, Jaime Mañalich, disse, em meados de abril, que estes documentos se destinariam às pessoas que já tivessem estado infetadas e que, “com altíssima probabilidade” estivessem “imunes a adquirir uma nova doença”. Entretanto, o responsável recuou nas afirmações na semana passada: o país irá atribuir os cartões, mas estes não são certificados de imunidade.

Até pode parecer uma boa ideia, mas… A Organização Mundial de Saúde (OMS) desaconselha para já o uso de “passaportes de imunidade”. “O uso de certificados deste tipo pode aumentar o risco de continuação de transmissão” da doença. Para a OMS, estes documentos só fazem sentido quando se souber ao certo como funciona a imunidade contra o novo coronavírus. E há muitas questões para as quais os cientistas ainda não têm resposta.

O que ainda não se sabe sobre a imunidade à covid-19:

  • Possibilidade de reinfeção: “Não há provas científicas atualmente de que pessoas que recuperaram da covid-19 e que têm anticorpos estejam protegidas de uma segunda infeção”, lembra a OMS na nota publicada a 24 de abril.
  • Desconhecimento do tempo de imunidade: Havendo imunidade, não é certo por quanto tempo os anticorpos ficam no organismo a protegê-lo do vírus.
  • Contágio pode acontecer mesmo estando imune: Também não se sabe ainda se poderá haver contágio a partir de uma pessoa que já tenha anticorpos e que esteja em contacto com o vírus de novo.
  • Diferentes graus de imunidade: Há pessoas que têm mais anticorpos do que outras. Algumas “têm níveis muito baixos”, descreve a OMS, o que coloca sérias dúvidas acerca da capacidade de combater o vírus.

Além das questões científicas, os “passaportes de imunidade” têm outras implicações, incluindo éticas.

  • Por exemplo, pode gerar-se uma situação de estigmatização e segregação, dividindo a sociedade em dois grupos e minando o sentido de solidariedade, alerta o alemão Martin Schnell, professor de filosofia social e ética nos cuidados de saúde na Universidade de Witten/Herdecke.
  • Este vai ser um dos temas em discussão no dia 6 de maio (às 17h), por um painel com especialistas de imunologia, ética e economia, num debate transmitido online e organizado Instituto Gulbenkian de Ciência, pelo ITQB NOVA e pelo Município de Oeiras.

Portugal: Um passo de cada vez

A Direção-Geral da Saúde (DGS) portuguesa ainda não quer adiantar informações sobre a eventual criação dos “certificados de imunidade”, uma vez que é necessário primeiro reunir resultados mais robustos sobre o processo de imunidade à Covid-19 e sobre os testes que a poderão determinar, explicou na quinta-feira passada uma fonte desta entidade ao SAPO24.

  • Já Miguel Guimarães, bastonário da Ordem dos Médicos, é da opinião de que devemos "começar a organizar a hipótese de termos o tal 'passaporte imunológico'" e de que "temos de começar a debater" o tema. Ainda assim, concorda que o documento não deve ser implementado "enquanto não tivermos estudos" que mostrem como funciona a imunidade ao SARS-CoV-2. O responsável explicava esta segunda-feira ao SAPO24 o que a Ordem quer dizer com "ponderar a criação" deste documento, uma das medidas apresentadas por esta entidade para o momento da retoma após o confinamento.
  • Por seu turno, Mónica Bettencourt-Dias, diretora do Instituto Gulbenkian Ciência (IGC), afirma o seguinte: “Neste momento, ainda nem sabemos se as pessoas estão imunes ou não. Portanto, não posso concordar [com a criação de certificados de imunidade]”. Quando soubermos o que é que significa que as pessoas tenham estes anticorpos, nessa altura pode haver essa discussão”, considerou enquanto falava ao SAPO24 sobre um estudo para a criação de um teste serológico que está a ser desenvolvido por parte de um consórcio de que o IGC faz parte.

Testes serológicos. Embora ainda não haja comprovativos de imunidade, já existem testes que detetam os anticorpos deixados pelo novo coronavírus no organismo. Ou seja, que tornam possível dizer se uma pessoa já esteve infetada, mesmo que não tenha manifestado sintomas.

  • São diferentes dos testes de diagnóstico, que apenas detetam a presença ou não do novo coronavírus, e que têm de ser feitos pouco tempo depois de a pessoa ser infetada.
  • Há testes serológicos que “têm maior sensibilidade e avaliam a especificidade dos anticorpos mais eficazmente”, outros que não “determinam a quantidade” de anticorpos no organismo “nem avaliam a sua capacidade para neutralizar o vírus”, mas que são mais rápidos, explica o IGC no seu site.
  • Por exemplo, a Quotient, uma empresa com sede na Suíça, anunciou, no dia 1 de maio, que foi validado um teste serológico desenvolvido pelos seus cientistas que reclama ter 100% de sensibilidade e 99,8% de especificidade - ou seja, deteta com praticamente máximo rigor a presença de anticorpos contra o novo coronavírus.
  • "Se isto se comprovar, é este teste que nós temos de fazer. Não são os testes que temos cá [em Portugal] neste momento", considera o bastonário da Ordem dos Médicos.

Se não confirmam a imunidade, porque é que os testes serológicos são úteis? Os especialistas identificam alguns dos benefícios:

  • Estes testes permitem-nos saber o número de pessoas que estiveram efetivamente infetadas, incluindo aquelas que tiveram a doença sem manifestar sintomas (as chamadas pessoas assintomáticas).
  • O rastreio dos anticorpos permite-nos ter noção de onde é que o vírus esteve e reconstruir a história da infeção e da sua transmissão.
  • Estes testes também poderão vir a ser úteis para a determinação da imunidade: permitem acompanhar essas pessoas ao longo do tempo e ver se voltam a ficar infetadas ou não.
  • Caso se venha a confirmar que as pessoas que têm os anticorpos estão imunizadas, pelo menos durante algum tempo, podemos perceber se há uns grupos que estão em maior risco do que outros.
  • Há uma série de outras perguntas a que estes testes nos vão permitir responder: Onde é que as pessoas estão mais infetadas? Será que as crianças ficam infetadas? Que grupos têm uma maior taxa de infeção?

O que se está a fazer em Portugal: Em Portugal, existem já vários testes serológicos, desenvolvidos pelo setor público e pelo setor privado. O consórcio Serology4COVID, por exemplo, reúne cinco centros de investigação, entre os quais o IGC, para o desenvolvimento de um teste serológico bastante rigoroso. O que esteve na base da criação deste ensaio?

  • “A nossa motivação foi garantir que há um produto nacional”, para “sermos autosuficientes” no “caso de haver um bloqueio internacional, de haver problemas com os reagentes”, explicou Mónica Bettencourt-Dias.
  • “O consórcio quer disponibilizar o seu ensaio às autoridades de saúde” e permitir a aplicação do teste “em maior escala”, em colaboração “com um parceiro industrial”, esclareceu a diretora do IGC.
  • O ensaio para desenvolvimento do teste está nas suas “finais de validação”. Poderá estar terminado esta semana, revelou a responsável ao SAPO24 no dia 30 de abril.
  • Do consórcio fazem também parte o Instituto de Medicina Molecular (iMM), o CEDOC (Centro de Estudos de Doenças Crónicas, da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa), o ITQB (Instituto de Tecnologia Química e Biológica, também da Universidade Nova de Lisboa) e o iBET (Instituto de Biologia Experimental e Tecnológica).

Há outros projetos em andamento. Além do desenvolvimento dos testes serológicos, já foram anunciadas outras iniciativas no sentido de testar a presença de anticorpos na população portuguesa.

  • O Instituto Nacional Dr. Ricardo Jorge (INSA) vai realizar um estudo a nível nacional que tem como finalidade conhecer a percentagem de pessoas que têm anticorpos contra o SARS-CoV-2. O Instituto anunciou que o inquérito arrancará este mês de mês e irá envolver 2.070 pessoas. Os laboratórios parceiros do INSA vão convidar os utentes que se dirigem para fazer análises de rotina de controlo dos seus problemas para “doarem um pouquinho de sangue” para depois se poder determinar a concentração de anticorpos contra este vírus.
  • A Fundação Champalimaud e o Algarve Biodemical Center vão fazer testes serológicos a um conjunto de 1.235 pessoas de serviços essenciais do concelho de Loulé, anunciou a Fundação no passado dia 25 de abril.
  • A Ordem também "vai fazer um estudo neste sentido, com algumas organizações", adiantou o bastonário ao SAPO24 esta segunda-feira.

Avançando no tempo... Uma vez feitos os estudos que caracterizam a população em termos dos anticorpos contra o novo coronavírus, o que significaria a existência de um "passaporte imunológico" em Portugal? Miguel Guimarães, da Ordem dos Médicos, avança algumas ideias:

  • A "retoma da atividade dita normal" poderia ser feita "com mais segurança" por ser possível saber quem provavelmente "já é resistente ao vírus".
  • "Ficávamos a saber, por exemplo, que há um determinado número de profissionais de saúde ou de cuidadores que à partida são imunes e não passam a infeção". "Isto pode começar a dar alguma confiança às pessoas", e "podemos transportar [esta lógica] para qualquer área" profissional.
  • Significaria também que as pessoas com este passaporte teriam "mais liberdade naquilo que são as suas próprias atividades", embora não possa "haver margem para isto ser interpretado de forma a excluir". A ideia seria identificar quais as pessoas que "têm de estar mais protegidas" e definir melhor as "medidas de segurança" - por exemplo, "quem não tiver imunidade tem de continuar a andar de máscara".
  • Esta "tem de ser uma medida das autoridades de saúde", sendo que a Ordem quer contribuir para "estimular a pensar nesta matéria de forma diferente", sugerindo que se vá fazendo desde já uma reflexão sobre "quais são os passos que vamos dar no país", como vai ser feita a "investigação da população" e que tipo de "colaboração com instituições internacionais" pode ser estabelecida.