“Hoje, eis-nos chegados à conclusão de uma importante etapa que nos permite conhecer de forma mais sistematizada esta dolorosa realidade", começou por dizer José Ornelas, referindo que a ideia da criação da Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica em Portugal partiu da própria Conferência Episcopal Portuguesa (CEP).
“Motivou-nos a certeza comum entre todos os bispos de que menores e pessoas frágeis têm de sentir proteção e segurança nos ambientes da Igreja Católica, como nos pede insistentemente o Papa Francisco”, afirmou.
"O relatório hoje publicado exprime uma dura e trágica realidade. Houve e há vítimas de abuso sexual provocadas por clérigos e outros agentes pastorais no âmbito das atividades da Igreja em Portugal. O estudo apresentado recolhe o testemunho de 512 vítimas diretas e aponta para outras prováveis", continuou o também bispo de Leiria-Fátima, assinalando "ainda várias consequências destes crimes, que podem ter estado na origem de dramas e sofrimentos incomensuráveis, que marcaram vidas inteiras".
"É uma ferida aberta que nos dói e nos envergonha. Pedimos perdão a todas as vítimas. As que deram corajosamente o seu testemunho, calado durante tantos anos, e às que ainda convivem com a dor no íntimo do coração sem a partilharem com ninguém", admitiu o presidente da CEP.
"A tolerância zero para os casos de abusos tem de ser uma realidade em toda a Igreja, e por isso não toleraremos abusos nem abusadores", afirmou. Depois de analisar o relatório final da comissão, a CEP vai procurar "os mecanismos mais eficazes e adequados para fomentar uma maior prevenção e para resolver possíveis casos com celeridade e respeito pela verdade".
"Nas vossas vidas atravessou-se a perversidade, onde nunca devia ter estado. O vosso testemunho é, para nós, um alerta e um pedido de ajuda a que não queremos nem podemos ficar surdos. Temos consciência de que nada pode reparar o sofrimento e a humilhação que foram provocados a vós e às vossas famílias, mas estamos disponíveis para vos recolher e acompanhar na superação das feridas que vos foram causadas e na recuperação da vossa dignidade e do vosso futuro", frisou o eclesiástico.
De acordo com José Ornelas, não só "os abusos de menores são crimes hediondos", como "quem os comete tem de assumir as consequências dos seus atos e as responsabilidades civis, criminais e morais daí decorrentes". "É preciso que reconheçam a verdade sem nada esconder, que se arrependam sinceramente, peçam perdão a Deus e às vítimas — e que procurem uma mudança radical de vida, com a ajuda de pessoas competentes", avisou.
Durante a manhã, a Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica , que começou a recolher testemunhos em 11 de janeiro de 2022, revelou ter recebido 564 testemunhos, dos quais 512 foram validados, os quais são relativos a pelo menos 4.815 vítimas desde 1915.
O número revelado "é muito maior do que aquele que soubemos apurar até hoje", admitiu o presidente da CEP. "Pedimos desculpa, por não termos sabido criar formas de escuta e escrutínio interno, e por nem sempre termos gerido as situações de forma firme e guiada pela proteção prioritária dos menores", acrescentou.
O presidente da CEP, no entanto, procurou traçar uma linha entre os membros abusadores da Igreja, tidos como uma minoria, e os outros. "Se é certo que a Igreja não pode tolerar os abusos, que são uma total contradição da nossa identidade e forma de agir, também é verdade que a vida da Igreja em Portugal não se encerra nesta questão. Há muitas pessoas e instituições eclesiais a dedicar-se aos mais frágeis, aos mais necessitados, aos mais pobres, e a realidade dos abusos não pode esquecer o imenso bem, tantas vezes silencioso, de sacerdotes, religiosos e religiosas, leigos e leigas, empenhados em tantas situações, a quem queremos dar uma palavra de conforto e coragem", declarou.
"Cremos, apesar de tudo, que a mudança está a acontecer, e devemos isso também aos papas Bento XVI e Francisco, à ação dos meios de comunicação social e à nova sensibilidade que cresce dentro da Igreja e da sociedade em geral", disse também.
Parte da mudança, assume, acontece também na assembleia plenária extraordinária da CEP, marcada para 3 de março com o objetivo de analisar o relatório, admitindo José Ornelas que nessa ocasião “será possível apontar medidas concretas a desenvolver”.
Igreja vai analisar "caso a caso" antes de partir para punições
Já na fase das perguntas dos jornalistas, D. José Ornelas foi questionado quanto ao que a CEP irá fazer no que toca aos casos dos eclesiásticos que se vejam culpados, tanto dos abusos como da sua ocultação.
Frisando desde logo que o relatório foi apenas entregue às autoridades da Igreja na noite de domingo, o bispo disse que uma " leitura em diagonal não permite fazer isso”. Além disso, destacou que o relatório da comissão não contém nomes.
Em todo o caso, "se há uma denúncia, o bispo deve fazer uma investigação sumária para verificar a plausibilidade do processo. No entanto, nem sequer é o bispo que age, porque os casos são enviados para a Santa Sé, que tem mecanismos próprios para isso”, afirmou. Por outro lado, "esses dados serão também enviados para o Ministério Público. Portanto, do ponto de vista civil, serão tratados convenientemente, segundo os protocolos que a Igreja estabeleceu para isso”.
Quanto ao tipo de punições em cima da mesa, como a possível expulsão, o presidente da CEP voltou a pedir cautela. “Não antecipo cenários sem saber do que é que se está a tratar”, disse, sublinhando ainda assim que “as novas disposições do direito canónico são aplicáveis a quem quer que tenha ido contra o que é previsto no tratamento destas questões”. Ou seja, vale tanto para abusadores como para quem ajudou a ocultar os abusos.
No entanto, após nova questão nesse sentido, D. José Ornelas acabou por afirmar, citando as diretrizes do papa Francisco, que "abusadores de menores não podem ter cargos dentro do ministério".
O presidente da CEP, no entanto, não foi claro sobre o que acontecerá aos clérigos ou outros membros da igreja sobre os quais recaiam suspeitas e cujos nomes possam constar da lista de abusadores que a igreja ainda não recebeu, mas recusou qualquer processo de “caça às bruxas”.
José Ornelas sublinhou que as investigações de denúncias na igreja portuguesa são investigadas pelos bispos em Portugal, que “em caso de plausibilidade” de abusos remetem o processo ao Vaticano, que decidirá.
“Não temos ainda lista, haveremos de receber e haveremos de tratar convenientemente”, disse José Ornelas.
Sublinhou também que, tal como no Ministério Público, o princípio subjacente à condução do processo na igreja é do “segredo de justiça como base, para que as coisas não sejam tratadas na rua, mas sejam tratadas com dignidade para todos”.
Quanto ao término do processo uma vez chegado ao Vaticano, referiu que “leva o seu tempo, mas também não é assim tão demorado”.
O bispo de Leiria-Fátima, no entanto, pediu que se coloque a questão da ocultação "no seu próprio contexto", já que, citando um dado do relatório que diz tê-lo impressionado, "77% das pessoas que se queixaram à comissão não comunicaram-no às entidades diocesanas".
"Este não é um processo acabado. É um processo iniciado — e em boa hora", afirmou. Quanto aos custos que os trabalhos de investigação tiveram para a Igreja Católica portuguesa, D. José Ornelas cifrou o valor em 200 mil euros, as verbas apontadas "pela própria comissão". "Posso garantir que não faltámos à comissão com o que era necessário", disse, acrescentando que "nestas coisas vale bem a pena gastar uns tostões".
Quanto a uma certa cultura de alheamento deste problema por parte das autoridades eclesiásticas denunciada pelo relatório, o presidente da CEP foi confrontado se também ele sofreu desse distanciamento. "Não me sinto alheado, mas sinto que algumas coisas não me chegaram e deviam ter chegado", afirmou, referindo-se a outros cargos que assumiu ao longo da vida.
Além das vítimas muitas vezes não comunicarem os casos devido a "entraves" colocados pela sua situação pessoal e social, o bispo apontou que também os membros da Igreja por vezes sentem-se inibidos a fazer denúncias por motivos semelhantes. "Certamente, uma das indicações que será necessário dar é que casos destes têm de ser comunicados a quem toma decisões sobre eles", declarou, lembrando, ainda assim, que esse tipo de normas já foi posta em funcionamento pela Igreja Católica.
Antes da declaração marcada para esta tarde. D. José Ornelas disse aos jornalistas na Fundação Calouste Gulbenkian, onde decorreu a apresentação das conclusões da comissão, disse aos jornalistas que o seu "primeiro pensamento vai para as vítimas" e admitiu que esta é "uma situação dramática".
José Ornelas deixou também "um grande agradecimento à Comissão [Independente], que nos permitiu verificar a situação que temos, esse era o nosso objetivo".
O presidente da Conferência Episcopal Portuguesa quis deixar, "antes de mais, uma lembrança para as vítimas, que é por elas que fizemos tudo isto também".
Os casos de abusos sexuais revelados ao longo de 2022 abalaram a Igreja e a sociedade portuguesa, à imagem do que tinha ocorrido com iniciativas similares em outros países, com alegados casos de encobrimento pela hierarquia religiosa a motivarem pedidos de desculpa, num ano em que a Igreja se vê agora envolvida também em controvérsia, com a organização da Jornada Mundial da Juventude, em Lisboa.
*com agência Lusa
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