Não estamos todos no mesmo barco, mas andamos a navegar o mesmo oceano. E se de água é ele feito, todos têm a hipótese de ser salpicados: estejam num transatlântico ou numa desguarnecida balsa. A diretora-geral da saúde, Graça Freitas, está infetada com o coronavírus que atirou o mundo ao mar.

Os primeiros relatos oficiais do vírus SARS-CoV-2 estão em dezembro de 2019, numa cidade chinesa com tanta gente quanto Portugal, Wuhan. Uma pneumonia atípica, ligada a um mercado local, começou a preocupar as autoridades de saúde e no último dia de 2019 foi reconhecida pela Organização Mundial da Saúde, marcando-lhe o número: covid-19.

Na altura, o bicho parecia distante, realidade exótica de lugares que os nossos preconceitos dizem insalubres, inseguros, impuros. Lá fique a doença, que enquanto cá estiver, não nos preocupa, cabe apenas nas breves, nos rodapés dos telejornais, enterrada nas últimas de internacional da Internet.

Tudo era novo e incerto. Desconhecido. A 8 de janeiro já de 2020, Graça Freitas explicava que a pneumonia viral em Wuhan estava circunscrita a esta região chinesa e não se transmitia de pessoa para pessoa, não havendo por isso recomendações das organizações de saúde.

Segundo a informação dada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e que é reportada a 5 de janeiro, o que se sabe “neste momento” é que “um grupo de pessoas adoeceu gravemente com pneumonia” numa cidade, numa província da China, disse Graça Freitas aos jornalistas, à margem de uma visita ao Centro de Contacto do Serviço Nacional de Saúde (SNS24) com o secretário de Estado da Saúde, António Sales.

“A boa notícia é que nada indica que haja transmissão pessoa a pessoa”, dizia, então, sublinhando que se tratava de um surto, “localizado no espaço e no tempo, ligado a uma fonte infecciosa provavelmente de origem alimentar”.

A diretora-geral da Saúde explicava que estes casos estavam ligados a “um mercado que fornece alimentos, sobretudo peixe e marisco”. Sabia-se também que esta pneumonia não estaria ligada a nenhum dos agentes até então conhecidos: “não é um coronavírus, não é um vírus da gripe, não é um vírus da gripe aviária, não é um adenovírus e, portanto, será um agente etiológico que ainda não foi pesquisado. Novo ou não, são sabemos”, sublinhava.

Hoje, sabemos que quase nada disto é verdade. A diretora-geral da saúde sublinhou sempre a evolução da investigação científica como o motivo para que a verdade de um dia passe a ser uma absurda suposição no outro — mesmo que isso custe insultos e ridicularizações aos responsáveis pela comunicação científica (ainda hoje a OMS atualizou as recomendações sobre máscaras).

A ciência é um organismo vivo, em constante mutação. Evolui, ganha e perde perspetivas à medida que a investigação, a experiência e a persistência acrescentam dados — provados, comprovados, verificados — ao que já se sabe. A ciência é a incerteza e Graça Freitas nunca teve pudor de o assumir, de riscar o que dissera antes e anunciar novos caminhos, iluminados pelas novas conclusões.

Imparável, a diretora-geral da saúde desdobrou-se em centenas de conferências de imprensa; falou durante horas todos os dias, respondendo a perguntas infinitamente recolocadas. Falhou e corrigiu-se. Conduziu o país na saída da primeira onda e viu a situação descontrolar-se depois do verão.

Hoje, estamos como nunca estivemos. A situação da covid-19 em Portugal está como nunca esteve. E hoje, a diretora-geral da saúde entra também para os boletins que o organismo que dirige desde 2018 emite diariamente desde os primeiros casos confirmados em Portugal (em março). Graça Freitas está infetada com o SARS-CoV-2, vírus responsável pela doença de covid-19.

“A Direção-Geral da Saúde informa que a Diretora-Geral da Saúde, Graça Freitas, testou ontem positivo para a infeção por SARS-CoV-2, estando neste momento em isolamento. A Dra Graça Freitas manifesta sintomas ligeiros da doença.”

(Entretanto, soube-se já que a ministra da Saúde, Marta Temido, e os secretários de Estado da Saúde tiveram resultados negativos aos testes).

Tudo isto acontece no dia em que o Reino Unido anunciou a aprovação da primeira vacina para a covid-19 (embora cheio de sublinhados para o tempo, realismo e cautelas do processo de vacinação). É o primeiro país do mundo a aprovar a vacina do consórcio da Pfizer e da BioNTech, avançando com a vacinação ainda este mês (esta vacina, se aprovada, deverá chegar a Portugal no início de janeiro, garante a empresa, contando com o "sim" europeu já a 29 de dezembro).

A aprovação de inovações nos cuidados de saúde é um mundo nebuloso. Nunca há garantias totais (a ciência é a incerteza) e espera-se apenas pelo equilíbrio: as vantagens ultrapassam as desvantagens.

O desenvolvimento desta vacina teve um tempo recorde. Há medicamentos que demoram mais de uma centena de anos até chegarem a uma solução segura. E, claro, são muitas as navegações por trás destes processos.

Isto não quer dizer que está aqui a escrever um negacionista antivacinas. Nada disso. Assim que uma vacina comprovadamente segura para o maior número de pessoas seja identificada, deve ser aprovada e distribuída pela população da forma mais eficaz e expedita possível. Porém, todo o processo deve ser aberto e transparente — incluindo os efeitos adversos, as fórmulas e o financiamento das investigações (e validações).

A própria Pfizer admite que tem de continuar a avaliar os dados “de segurança e eficácia” da vacina dada aos grupos de teste “por dois anos adicionais”.

Depois de se assegurar a segurança das vacinas oficiais, há ainda que garantir a inviolabilidade das cadeias de distribuição das doses necessárias. A Interpol emitiu hoje um alerta global aos seus 194 países membros, incluindo Portugal, alertando-os para se prepararem para os ataques das redes de crime organizado que em breve vão atuar nas vacinas contra a covid-19.

O “aviso laranja” da Interpol (Organização Internacional de Polícia Criminal), descreve possíveis atividades criminosas como falsificação, roubo e publicidade ilegal sobre as futuras vacinas contra a covid-19 e contra a gripe, comportamentos criminosos que já foram detetados durante o período pandémico com outros produtos.

O aviso também abrange exemplos criminosos nos quais as pessoas que os cometem anunciam, vendem e administram vacinas falsas.

Com uma série de vacinas contra a covid-19 a serem brevemente aprovadas e com distribuição a nível global, é essencial os países garantirem a segurança da cadeia de abastecimento e identificar os ‘sites’ ilícitos que vendem produtos falsificados, tal como já aconteceu com máscaras e álcool gel. Uma boa coordenação entre os órgãos de polícia criminal e as diversas entidades reguladoras de saúde terá, segundo a Interpol, um papel vital para garantir a segurança das pessoas e o bem-estar das comunidades neste período de pandemia.

“Enquanto os governos se preparam para lançar as vacinas, as organizações criminosas planeiam infiltrar-se ou interromper as cadeias de abastecimento”, alertou o secretário-geral da Interpol, Jürgen Stock. Para o responsável da organização internacional de polícia criminal, “as redes criminosas também terão como alvo o grande público, através de ‘sites’ falsos e curas falsas, o que pode representar um risco significativo para a saúde e até mesmo para a vida”.

Garantir que as vacinas são viáveis e seguras e que a sua distribuição é também ela segura e eticamente responsável são os dois desafios com que o país (e o mundo) se depara nos próximos dias. Mais do que nunca, a transparência e a confiança na ciência são indispensáveis — sempre com a consciência de que não há certezas eternas.