Quem descesse, no início da tarde desta terça-feira, a Avenida da República a partir do Saldanha em direção ao Marquês não imaginava a confusão que se vivia noutros pontos da cidade, e que mais tarde haveria de chegar também ali. Um silêncio apenas interrompido pelos cânticos dos grupos enfarpelados com chapéus, mochilas e t-shirts da JMJ.
É já em plena Avenida Fontes Pereira de Melo, que um grupo de portugueses da Paróquia de São Pedro da Cadeira começa um despique com um muito mais pequeno, mas muito pouco tímido, grupo de espanhóis. Entre hinos das duas nações, gritos por "Cristiano Ronaldo", respondidos com um "viva la España" e uns pouco sonoros "Olivença vai ser sempre nossa". Foi esta a primeira vez que o SAPO24 havia de perceber que o "mundo cabe em Lisboa", como dizem os cartazes espalhados pela cidade, mas que, se na JMJ não há fronteiras, os símbolos identitários de cada nação são exibidos bem alto e com orgulho.
Chegados ao ponto de controlo do Marquês de Pombal, o aparato de segurança é grande, mas sem filas e com calma. A única confusão é iniciada pelos peregrinos que, ao verem filas paralelas com baias de segurança e mesas para pôr os valores, ladeadas por polícias, começam a achar que as regras de segurança são as de um avião e, então, ouvem-se gritos de fila para fila "bebam a água, não se pode passar com água". Pode, e segundo vários avisos da organização e até da Direção Geral de Saúde, deve-se.
Na Praça do Marquês de Pombal não "há pressa no ar", pelo contrário há um silêncio que contrasta bastante com o que seria uma terça-feira naquela zona da cidade. Alguns praticantes de jogging, inclusive, aproveitam que a zona está fechada ao trânsito para fazer as suas corridas.
Mais à frente, outra conhecida disputa entre nações, italianos contra franceses, parecem brincar ao 'quem canta o hino mais alto'. Isto enquanto estão sentados na mesma roda e se abraçam esquecendo-se se a lista que trazem na bandeira é verde ou azul.
Continuando a descer, pela Avenida da Liberdade, de repente, o SAPO24 é transportado para o Rio de Janeiro. Numa avenida, também vedada a carros, duas brasileiras sambam ao som de música religiosa com sotaque do Brasil. Até aos Restauradores vários grupos descansam na sombra das árvores. E, pelo número de escaldões visíveis, não aproveitaram muita sombra durante o dia, nem a banca de venda que a Farmácia Morais Sarmento tem na Avenida da Liberdade, onde se vende acima de tudo protetores e águas, mas no fundo tudo aquilo que um peregrino pode precisar. Desde pensos e cremes para os pés e bolhas, a pastilhas para a garganta e escovas do cabelo. Beatriz Magalhães, uma das vendedoras, diz que o dia correu bem embora o preço dos protetores possa afastar algumas pessoas.
Nos Restauradores, Eduardo Correia está sentado a fazer calmamente um envelope para as duas aguarelas que uma peregrina espanhola lhe tinha acabado de comprar. Eduardo diz que há muitos anos usa aquele cantinho da cidade para pintar vistas de Lisboa e vendê-las. "Hoje é um dia mais propício a que apareçam pessoas que queiram levar uma aguarela", partilha. Na quarta-feira diz que "os jovens vão estar mais eufóricos", mas que isso não o desmotiva de ir para ali. "Eu também já fui jovem, não vou agora ter medo de andar na rua por causa da euforia. Está tudo calmo, batem palmas, cantam, têm bandeiras. Há jovens muito piores", diz ao SAPO24 o agora artista que antes de o ser foi pescador, balconista e trabalhou na construção civil. Termina dizendo que ainda tem vontade e esperança de ver o Papa, mas que primeiro tem que "ir desenhar mais aguarela" para ver se aproveita a enchente para vender.
Além das bandeiras de que Eduardo fala, a música também é uma questão identitária na JMJ e, enquanto o SAPO24 conversa com o pintor, ouve-se flamenco, é o anúncio de um grupo de espanhóis, das suas guitarras e palmas sincronizadas. Mas em todos os grupos, há um hino que os une, o da JMJ. Ainda que não percebam a língua, reconhecem a melodia e várias vezes, ao longo do dia cruzámo-nos com grupos a cantar o hino da JMJ em línguas diferentes.
"Não há eléctricos, há muitas filas para os autocarros e metro, e andar de um lado para o outro não é fácil"
É no Rossio, agora uma gigante praça de alimentação, e ponto de encontro para tantos jovens que há o primeiro encontro com alguma confusão. A seguir, no Cais do Sodré, a italiana Serena Roberto traça um cenário da confusão com que ainda não nos tínhamos cruzado. Conta que chegou a Sintra na véspera e que esta é primeira vez está em Portugal, mas que adorava voltar. "É uma multidão muito grande, mas a atmosfera é a certa. Tudo se move para o mesmo, temos o mesmo objetivo e acreditamos no mesmo. É fantástico". O entusiasmo da italiana de Treviso pára quando se começa a falar da forma como a JMJ está organizada. E os transportes são o maior calcanhar de Aquiles, "não há eléctricos, há muitas filas para os autocarros e metro, e andar de um lado para o outro não é fácil". Mas a forma como a alimentação está organizada também não convenceu a jovem, "a comida acaba muito depressa, tivemos que andar duas horas até encontrar um sítio que ainda nos conseguisse servir".
A conversa com Serena preparou aquilo que se havia de encontrar em Belém e que um centro de cidade calmo escondia. Gente, gente e mais gente. Filas, filas e mais filas. Filas para aceder à fila que permitia esperar pelo comboio. Barulho, e encontrões - não fosse a festa dos jovens. Mas perante toda a confusão era grande o contraste com a paciência e cooperação dos polícias e, mais tarde, dos funcionários do Metro.
"Há muita gente e muito poucos autocarros"
Na Cidade da Alegria, em Belém, também um grupo de madrilenas, a caminho de uma fila para entrar no viaduto que dará acesso a outra fila para entrar na fila que está na plataforma dos comboios, partilham a frustração com a organização da comida. "Somos muitos, há um colapso na app e fica muito lenta. Além de não haver comida para todos, não há preocupação com alergias como os frutos secos, ou coisas para celíacos. Eu sou alérgica a frutos secos, fui a muito lado e não consegui nada para mim". Também os transportes foram motivo de crítica, "o trânsito para chegar a Lisboa foi ok, o pior é aqui mesmo. Há muita gente e muito poucos autocarros". Entre as cinco amigas espanholas as opiniões dividem-se, para duas é normal haver caos nos transportes sendo tanta gente. Para as outras três, Portugal teve tempo suficiente para se preparar e sabia o número de pessoas que vinham, e por isso não há desculpas. Mas há numa coisa que todas concordam, "é super emocionante estar aqui. Conhecer gente, estar num bom ambiente na presença de Deus".
E se Deus está no céu, Cristiano Ronaldo está na terra, muitas vezes foi ouvido o nome do jogador português. Mas são quatro raparigas de Ponte de Lima que explicam que esta é uma técnica comum para falar com outros grupos. "Queremos muito estar e conhecer estrangeiros, então às vezes vemos estrangeiros a passar e um colega nosso grita jogadores desse país", contam Maria João, Angélica, Catarina e Érica, contentes pelos encontros que fizeram, para depois enumerarem as nacionalidades com já falaram.
Embora estejam perto da Cidade da Alegria dizem ainda não ter visitado o espaço e culpam os transportes. "Hoje foi um dia super inútil, os transportes estão um caos, estivemos mais de uma hora à espera de comboios em Cascais, supostamente íamos visitar tudo hoje, mas já não deu tempo para tudo." Fazem parte de um grupo de 22 jovens que está a dormir numa escola de Rio de Mouro, onde se encontram outras pessoas da diocese de Viana de Castelo. Para estes dias só querem três coisas, "conhecer muitas pessoas, trocar lembranças e fazer amizade". Percebemos que trocar lembranças é prática comum entre os peregrinos, estas jovens inclusive fizeram pulseiras de contas com as cores da bandeira de Portugal para irem trocando com aqueles com quem se vão cruzando.
Tempo para visitar a Cidade da Alegria não faltou à peregrina mais velha e à mais nova de Alhandra, que coincidentemente são avó e neta. Isabel, a avó com 67 anos, e Leonor, a neta com 10 anos, estavam com outros dois jovens Rodrigo e Mariana e os quatro fazem parte do grupo de 20 pessoas da Paróquia de Alhandra, que veio à JMJ. Na conversa Isabel também começa por referir o número de pessoas dos comboios, mas depressa corrige para dizer que até isso "foi lindo" por ser tanta gente a vir para o mesmo.
No caso do grupo, a primeira paragem foi a Cidade da Alegria e quando questionados acerca do dia, esticam os braço para mostrar as pulseiras. Os mais novos focam-se no merchandising que conseguiram arrecadar e nas pulseiras que trocaram. Mas a jovem Mariana foca-se numa manhã complicada "com muita gente e dificuldade em chegar às barraquinhas", e outras "que ainda nem tinham atividades porque houve um erro no sistema". Mas de um modo geral resume a dizer que "foi giro, uma experiência nova. Fiquei a saber imensas coisas novas e esclareceram todas as minhas perguntas".
As perguntas de Mariana foram feitas a diferentes ordens religiosas que se dão a conhecer numa cidade feita de barracas com jogos, informações e materiais didáticos, em Belém. Ainda no encanto pelas lembranças, Rodrigo refere entusiasmado que viu umas pessoas a ganharem um retiro de fim-de-semana. Depois das perguntas às ordens religiosas o grupo foi ver um concerto no palco instalado naquela "cidade", e dizem ter tido "a sorte" de ver a banda que fez o hino da JMJ. Isabel resume a Cidade da Alegria, e a JMJ, "mesmo quando não se está a fazer nada, só estar aqui enche".
A criatividade juvenil dá-se a conhecer ao mundo principalmente nos cânticos que entoam, desde “pouco importa, pouco importa se dormimos bué da mal, vamos ver o papa em Portugal”, a uma música que junta português, espanhol, italiano e francês para dizer “Papa Francisco, Jesus te ama”. E também a possibilidade de aprender línguas, um grupo de franceses com que o SAPO24 se cruzou várias vezes a cantar o "Ressuscistou", com um sotaque francês carregado.
No fim do dia, a Cidade da Alegria começa a transformar-se na cidade do cansaço, e os grupos descansam, uns nas esplanadas, outros à sombra e, até há até quem use os bancos dos confessionários do Parque do Perdão para recarregar energias antes da missa das 19h00.
É este o momento para quem trabalha ali à volta respirar fundo e descansar. David Jerónimo trabalha no Roger's, um restaurante na Rua Vieira Portuense, mesmo com vista para a Cidade da Alegria. "Notámos um dia um pouco mais movimentado, costuma ser uma rua deserta mesmo sendo uma zona turística. Normalmente somos nós a chamar o cliente hoje foi o cliente a chamar-nos a nós", conta que das 12h às 15h serviram quase 200 almoços, quando num dia normal servem 15 a 20 almoços, "foi uma coisa abismal" . "É apenas o início do que vai ser uma semana bastante longa, em termos de serviço vai piorar porque vai ser mais trabalho, mas em termos de faturação vai melhorar". Cansado depois de um dia intenso diz ter atendido "clientes um pouco mais impacientes, mas é o normal num restaurante cheio". Os que mais escolheram aquela esplanada, segundo David, foram os espanhóis e italianos e a água foi a bebida eleita. No fim não tem dúvidas que o dia rendeu a todos os níveis,"sinto-me bem, sinto-me feliz. Um dia mais preenchido é sempre melhor, passa melhor o horário. Que venham e venham mais". E que venha o Papa, David espera que ainda ali faça uma visita entre confissões, e diz que servir-lhe-ia um polvo à lagareiro, ou uma dourada grelhada.
Já Renata, do Quiosque Belém, brinca dizendo que o Papa Francisco pode ir ali beber um café uma Água das Pedras. Também cansada, no fim de um dia "pesado", porque "estávamos preparados, mas depois hoje percebo que não", explica, "todos sabíamos que ia haver muito mais gente, mas não esperávamos que fosse tanta gente logo no primeiro dia. Achámos que ia ser pior no dia em que o Papa viesse". O dia tornou-se mais fácil, explica Renata, porque toda a gente foi paciente e tinha boa energia. Embora o quiosque fique à frente de um ponto de água para encher cantis e garrafas, que teve fila todo o dia, Renata diz ter vendido à volta de 120 águas e estima 70 litros de cerveja bebidos. "Muito Padre a beber cerveja, uma coisa que temos um tabu em pensar. Mas estavam aqui com os jovens a beber a sua cerveja. Tudo muito normal", partilha espantada.
Os planos de Renata para o resto do dia são diferentes dos dos peregrinos que ainda teriam a missa que marca o início oficial da JMJ, mas a preocupação com os transportes é comum. "Hoje é dormir porque amanhã é acordar muito mais cedo do que é normal por causa do comboio".
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