“É preciso tempo, porque os mais difíceis envolvem sempre pessoas e eu acho que não é justo, porque posso estar a ver mal, posso estar ainda com calor e com a ferida e, portanto, acho que não é o tempo”, diz
Abertamente, para já, diz que houve “dificuldades, problemas”, quer na Igreja, como na relação com instituições.
No entanto, faz questão, também, de contrapor com o entusiasmo que encontrou, nos dias da Jornada, nos muitos profissionais de diversas setores com os quais contactou.
“Eu gostava de dizer que, durante a Jornada, porque é sentido e foi verdade, eu estava preso naquela coisa do séquito, e não pude sair muito fora daquela ‘prisão domiciliária’. Mas, à noite, dei umas escapadinhas e andei a ver e falei com polícias, falei com médicos e falei com os homens da higiene urbana, e ainda bem que o fiz. Estavam felizes. A ideia que eu tinha é de que havia um desconforto, porque tiveram de trabalhar, porque vieram não sei de onde. Não foi isso que eu encontrei. Foi [antes] alegria de participar, alegria de ser parte”, garante.
E é isso que o futuro cardeal quer que os portugueses sintam: “que cada um sinta que fez uma coisinha pequenina e fez a Jornada”.
“O sucesso da Jornada, a alegria com que vivemos este acontecimento único na vida de Portugal, dos portugueses, aconteceu graças ao polícia, ao bombeiro, ao homem da higiene urbana, ao anónimo. Foi graças ao empenho de todos e, por isso, dói-me e magoa-me, quando lá vem a crítica fácil, lá vem o populismo, lá vem a rafeirada, lá vem não sei o quê estragar uma coisa que foi feita com tanto carinho, com tanta entrega, com tanto sacrifício por todos os portugueses”, acrescenta o presidente da Fundação JMJ Lisboa 2023.
Quanto às polémicas que surgiram nos últimos meses, desde logo com os custos da organização, nomeadamente o altar-palco do Parque Tejo, D. Américo Aguiar diz que “gostaria que algumas não tivessem acontecido, mas aconteceram”.
“O único culpado sou eu, na minha limitação de não ter conseguido explicar, não ter conseguido fazer entender. Tenho plena consciência disso, mas, quanto mais tempo passa, também acredito que Portugal e os portugueses, não digo que vão relativizar, mas vão porventura entendendo a dimensão da coisa”, afirma.
“E isso foi o meu grande calcanhar de Aquiles, foi [o não conseguir] transmitir a dimensão da coisa e a dimensão da coisa também significou a dimensão de tudo o que envolveu a Jornada Mundial da Juventude, seja dos participantes seja dos custos, seja dos gastos, seja dos tempos, tudo, tudo foi muito, tudo foi muita alegria, tudo foi muito bom e também tudo foi muito custo e muito empenho, muita dedicação e muitos problemas”, acrescenta.
Tendo anunciado já que as contas finais da semana da JMJ serão apresentadas em breve e que o encontro mundial deu lucro, coloca-se agora a questão de saber se a Fundação JMJ Lisboa 2023 vai ser extinta ou continuará a funcionar.
“Inicialmente, quando começámos o caminho, o objetivo era que a Fundação, após cumprimento dos prazos legais das suas obrigações fiscais, pudesse ser extinta, porque extinguiu-se o objetivo fundamental. Isso vai depender da leitura que o senhor patriarca Rui Valério fará da realidade”, afirma D. Américo Aguiar.
Para o bispo, o novo patriarca “pode entender, porque também não é descabido, que a fundação se possa manter, até para (…) dar seguimento a coisas que podem acontecer no país ligadas à juventude, sempre como legado, como herança daquilo que foi a Jornada Mundial da Juventude 2023”.
“Todos, todos, todos” não é “tudo, tudo, tudo”
Uma das mais fortes mensagens deixadas pelo Papa Francisco na Jornada Mundial da Juventude de Lisboa foi a de uma Igreja para “todos, todos, todos”, mas D. Américo Aguiar avisa que não se pode traduzir por “tudo, tudo, tudo”.
“Isto é um caminho que estamos a fazer. Aliás, escusado será dizer que, quanto mais o Papa dizia ‘todos', mais eu ficava feliz. E quando em Fátima, o Papa diz - e ele é magnífico, porque tem os textos que estão feitos e, a certa altura é capaz de ler a sua audiência e o contexto e rapidamente se focar – que a Igreja é como esta igreja [Santuário de Fátima], não tem portas, toda a gente entende. Nós não temos o direito de barrar a ninguém o acesso a Cristo”, explica.
O homem que, a partir de sábado, passa a integrar o grupo de cardeais da Igreja Católica é, no entanto, perentório a alertar: “Agora, ‘todos, todos, todos’ não se traduz por ‘tudo, tudo, tudo’. Quem ama, quem quer, quem cuida, sabe que o Pai ama, quer e cuida, [mas] isso não quer dizer tudo, tudo, tudo”.
“Ou seja, o nós chamarmos a atenção, o nós corrigirmos, o nós termos considerações, não significa menos amor, menos entrega e menos dedicação, pelo contrário. Portanto, o ‘todos, todos, todos’, na minha interpretação, é que nós não temos o direito de vedar a ninguém o acesso a Cristo”, diz D. Américo Aguiar, em entrevista conjunta à agência Lusa e à agência Ecclesia.
“A partir do momento em que a pessoa chegou a Cristo, o meu trabalho, a minha fé é que Cristo opere no coração dessa pessoa e a converta”, acrescenta.
E, além das mensagens do Papa, no rescaldo da Jornada Mundial da Juventude, o que ficou para a Igreja em Portugal?
Para já, “vamos tendo notícias do país, das dioceses, no arranque, na retoma. Aliás, há dias, li uma coisa muito interessante, a diocese de Coimbra vai arrancar, ou anunciou, um Sínodo da Juventude. A diocese A, a diocese B, com outras atividades. Isso é fundamental, porque nós acordámos, nós abanámos, nós retirámos do sofá os jovens. Agora não podemos permitir que eles regressem ao sofá”.
Recordando que o Papa na exortação apostólica ‘Christus vivit’ (Cristo Vive) defende que os jovens devem ser convidados para a missão, para arregaçar as mangas e trabalhar, ir ao encontro das periferias, ir ao encontro das pessoas, D. Américo Aguiar frisa que “os jovens gostam disso”.
“Nós sabemos que qualquer jovem, se o convidarmos para a missão, para ajudar aqui, naquele bairro, naquela coisa, os jovens vão, querem limpar a praia, apanhar plásticos, apanhar beatas do chão, todos querem. [Mas], se convidarem: Ó meus amigos, amanhã temos terço às seis e meia na igreja de não sei de onde, bem, quer dizer, alguns não sabem o que é o terço, alguns nunca rezaram, alguns não sabem quem é Cristo. Isto coloca aqui um conjunto de limitações”, afirma.
Neste contexto, D. Américo Aguiar advoga que “o convite à missão é urgente”, mas avisa que “isso tem o lado do ‘back office’, e dá muito trabalho, é muito exigente”.
“Vamos ter muito trabalho a fazer, naquilo que é, na realidade de cada diocese, o aproveitar a maior riqueza da Jornada Mundial da Juventude em Portugal, que foi descobrir em todo o país, norte, sul, litoral, interior, continente e ilhas, milhares de jovens portugueses que estiveram a preparar a Jornada e que estão em prontidão para corresponder ao que a igreja lhes proporcionar”, afirma.
E para o conseguir é preciso continuar a “provocar” nos jovens o desejo de alcançar as metas, nomeadamente fazer com que não sejam “administradores de medos, mas empreendedores de sonhos”, como o Papa pediu aos jovens no encontro na Universidade Católica Portuguesa.
“Se queremos inaugurar um tempo novo, os jovens têm de reconquistar o gosto, vontade e a coragem de sonhar, porque, quando nós falamos que os jovens não têm emprego, ganham pouco; não podem comprar casa; compraram casa, mas não têm como pagar; não podem ter filhos; têm filhos, mas não têm onde os deixar, vamos todos ficar um bocadinho deprimidos”, sublinha.
Outro dos legados da JMJ foi a aplicação da lei da amnistia, que levou à libertação de mais de quatro centenas de jovens.
D. Américo Aguiar aponta a importância deste gesto na devolução de esperança a alguém.
“O importante da amnistia foi, humanamente, nós devolvermos esperança a alguém que cometeu uma falha na sua vida. Isto é profundamente humano e ultrapassa a questão religiosa. Quando eu disse ao Papa da possibilidade de amnistia, o Papa ficou felicíssimo exatamente neste registo. Um de nós comete um crime, a sociedade impõe uma pena, nós cumprimos essa pena, é humano termos a capacidade de devolver esperança a essa pessoa”, acrescenta, lamentando as críticas que se ouvem sobre as libertações ao abrigo desta decisão extraordinária.
“Uma coisa é estar a falar com o presidiário ou a sua família, e outra coisa é estar a falar com a família das vítimas ou com a vítima. São totalmente diferentes. O sentimento é totalmente diferente e eu compreendo e conheço os dois. Agora, a grandeza de tudo isto (…) é que quem sofreu as consequências dos atos graves do que tem estado limitado na sua liberdade tem esta grandeza de aceitar que humanamente nós temos de ser maiores do que aquele que cometeu o crime e temos de lhe dizer: ‘nós vamos-te devolver um pozinho de esperança’”, afirma o futuro cardeal.
Um momento difícil na Igreja?
Defensor assumido das ideias do Papa Francisco, D. Américo Aguiar reconhece os momentos difíceis que a Igreja Católica atravessa atualmente, com as divisões entre as chamadas alas progressista e conservadora.
A poucos dias do início da primeira sessão da XVI Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos, que vai decorrer de 4 a 29 de outubro, no Vaticano, o futuro cardeal sublinha que o Papa avisa que “o sínodo não é um parlamento, em que chegam lá as várias fações, cada uma conta as espingardas (…) e ganha a maioria”.
“Não. O sínodo é um local onde cada um se deve sentir livre para falar, deve ter o gosto de ouvir e depois o Espírito Santo decidir. Porque, às vezes, o Espírito Santo toma a decisão que não é propriamente a da maioria”, afirma.
“É óbvio que nós estamos a falar de irmãos e irmãs que têm manifestado uma sensibilidade diferente em relação a alguns temas. E o Papa tem-nos provocado a todos para que possamos refletir sobre eles”, adianta o nomeado bispo de Setúbal, reconhecendo que quando se consultam os documentos preparatórios do sínodo se verifica “alguma conexão” entre as diferentes sensibilidades.
É possível ver que “há preocupações europeias que casam com preocupações americanas, africanas e asiáticas. Ou seja, não é assim tão díspar”.
No entanto, “depois, quando começamos a pôr o microscópio a aproximar, depois vem muito mais a identidade nacional e realidades muito específicas”, acrescenta.
“Ora, é muito importante não desvalorizar aquilo que é a opinião do meu irmão, aquilo que a opinião de um país, aquilo que a opinião de uma conferência episcopal. Não quer dizer que estejam errados, nem quer dizer que estejam certos, mas é importante que eles se sintam respeitados ao pronunciarem-se e também estejam disponíveis para acolher aquilo que é o sentir da Igreja em processo sinodal”, defende o bispo D. Américo Aguiar, convicto de que o período da Assembleia Geral do Sínodo dos Bispos será um tempo “de muita oração, de muito trabalho”, confessando estar “expectante” em relação às conclusões.
Já no próximo sábado, e a anteceder o início da Assembleia Geral do Sínodo, terá lugar uma vigília de oração ecuménica - com o Papa a rezar com outros 12 líderes de confissões cristãs, na Praça de São Pedro, no Vaticano -, integrada iniciativa “Together”, dirigida aos jovens.
Perante este facto, D. Américo Aguiar lembra que a Jornada Mundial de Lisboa fortaleceu o espírito ecuménico.
“É um caminho que vem sendo feito nas jornadas mundiais da juventude e eu gostei muito do que aconteceu no nosso país. Algumas dioceses têm alguma tradição de ecumenismo, de diálogo inter-religioso, noutras nem tanto, são realidades totalmente diferentes, e confesso que gostei e fiquei muito feliz com aquilo que foi o acontecer de vários eventos, acontecimentos, uns mais oficiais no calendário da jornada, outros oficiosos, outros laterais, ou seja, acho que todas as pessoas tiveram oportunidade de dizer, de se dar a conhecer”, recorda.
Reconhecendo que, por vezes, há “reações menos positivas daqueles que não gostam”, D. Américo Aguiar sublinha que, “desde que tudo aconteça no respeito pelos outros, tem de se fazer caminho”.
“É importante dizer que, durante estes quatro anos [de preparação da JMJ], com a Comunidade de Taizé, principalmente, surgiu muito a questão dessa vigília, desse encontro de jovens de várias religiões e de sentimento diferente, diferenciado de transcendência. Eu acho isso muito interessante e muito rico, que os jovens se disponibilizem e queiram, nas suas diversas confissões, rezar ou ter presente uma vigília de oração. Eles são os filhos do sínodo”, acrescenta o futuro cardeal.
* João Luís Gomes (texto) e José Sena Goulão (foto), Agência Lusa
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