Num mundo ideal, os cidadãos teriam de pagar em impostos um quarto do salário que recebem?
A questão não pode ser separada de como e a quem os impostos são cobrados. Não temos, em termos gerais, uma carga fiscal excessiva. Temos algumas pessoas, aquelas que vivem do seu trabalho, que pagam demasiados impostos, e temos outras que não pagam os impostos que deviam.
A conversa da diminuição dos impostos é por vezes muito fácil de ter, entra muito no ouvido, mas aquilo que as pessoas têm de perceber é que quase sempre quem defende menos impostos vai defender a seguir menos saúde, menos educação, menos segurança social, menos serviços públicos, desinvestimento nas funções sociais do Estado.
É porque queremos fortalecer tudo isto, o direito à saúde, à educação, à segurança social, aos transportes públicos, à habitação, à cultura, que temos de pagar impostos. Se queremos tudo isto, e queremos, porque é parte de um país desenvolvido, então temos de cobrar impostos. Temos é de o fazer com justiça, indo buscar o dinheiro onde ele está, chamando quem tem fugido na hora de pagar os impostos, aliviando pequenas empresas, aliviando as famílias, os trabalhadores, chamando sobretudo os grandes grupos económicos a dar um contributo maior.
Se tivesse de escolher, e tem mesmo de optar, a União Europeia devia fazer uma aliança comercial com a China ou com os Estados Unidos?
Em primeiro lugar, a União Europeia é um bloco muito heterogéneo e diverso também do ponto de vista dos interesses comerciais de cada um dos Estados. É fácil perceber que os interesses, as necessidades, até, de um Estado como Portugal são muito diferentes dos interesses e das necessidades de um Estado como a Alemanha, que quer sobretudo mercados para colocar as suas produções industriais com elevada incorporação de conhecimento tecnológico, não se importando em dar como moeda de troca no processo setores industriais com baixa incorporação de conhecimento tecnológico ou mesmo a agricultura.
Portugal tem de procurar parceiros comerciais, não interessa quais, sem fazer distinção, mas têm de ser definidos em função das complementaridades que possam ter com a nossa economia, minimizando a concorrência entre produções, entre produtores, entre países.
Para isso, temos de ter uma política comercial própria, que tem de ser diferente da política comercial alemã, como será fácil perceber. A imposição pela Alemanha de políticas também comerciais a favor dos seus interesses, mas contrárias às necessidades de um país como Portugal, tem tido maus resultados nos últimos anos e é importante que isto não prossiga e que Portugal possa adaptar a sua política comercial às suas especificidades e necessidades.
Acredita que é possível travar as alterações climáticas na legislatura europeia que agora começa?
Infelizmente, em certa medida, já não. E é por isso que temos de agir em duas frentes: no domínio do combate às alterações climáticas, mas também já no domínio da adaptação. Temos de nos adaptar às alterações climáticas que são já inevitáveis e cujos efeitos podem até já estar a ser sentidos.
Temos, sobretudo, de perceber a necessidade, e que mais do que uma bandeira que dá jeito agitar em tempos eleitorais, mais do que uma proclamação eleitoral, temos de ir lá com medidas concretas. E é por isso que temos proposto [o PCP, no Parlamento Europeu] medidas concretas de combate às alterações climáticas, como por exemplo trazer para uma abordagem normativa aquilo que tem sido deixado ao sabor do mercado.
O mercado de emissões de carbono, ou seja, a compra e venda de direitos de poluir, não nos tem ajudado a diminuir as emissões, muito pelo contrário. Em vez de fazer negócio com o direito de poluir, vamos estabelecer uma abordagem normativa em linha com o que é o conhecimento científico e tecnológico disponível, e por essa via procurar combater as alterações climáticas e proceder às necessárias medidas de adaptação.
Foi por isso que defendemos, por exemplo, a criação de um observatório europeu para a seca, uma medida pela qual nos iremos bater nos próximos tempos. Pensamos até que Portugal seria uma excelente localização para acolher este observatório, que reunisse conhecimento científico, técnico e capacidade de intervenção no domínio do apoio a vastas áreas, como é o caso da agricultura, estabelecendo um caminho de adaptação ao longo das alterações climáticas em curso.
Nos Censos de 2021 o INE devia ou não incluir uma pergunta sobre a origem étnica, as raízes, das pessoas?
Defendemos uma política de inclusão, de respeito pela diversidade, e recusamos qualquer abordagem de cariz xenófobo, racista. Os Censos cumprem uma determinada finalidade, aquela que tem sido conhecida, e é certo que podemos ir adaptando os próprios inquéritos às necessidades emergentes, mas tendo sempre esta preocupação de recusar abrir campo a abordagens de cariz xenófobo, racista ou que se insiram nesta linha, que deve ser combatida a todo o custo, sobretudo num momento em que a Europa assiste à ascensão deste tipo de visões. Agora, não creio que as questões estejam necessariamente associadas, mas esta é uma salvaguarda que importa fazer.
A União Europeia deve ter um exército próprio?
Não. A União Europeia não deve ter um exército próprio. É urgente travar aquilo que é uma escalada militarista europeia em curso, que vai desviando recursos de onde fazem falta - coesão económica e social, investimento em infraestruturas, transportes, mobilidade, direitos sociais, serviços públicos, ambiente - para os despejar em cima do complexo militar industrial. É isto que está a acontecer neste momento na União Europeia, é isto que tem de ser travado.
Também em nome da paz e da segurança, não é aceitável que em qualquer circunstância se usem recursos para alimentar uma escalada no domínio do armamento, para pôr esse pretenso futuro exército, ou capacidades militares comuns, pouca diferença faz, ao serviço da estratégia de quem manda na União Europeia, das suas ambições imperiais, dos seus interesses estratégicos. Este não é um caminho que sirva os interesses dos povos da Europa, muito pelo contrário.
Se não é o presidente que manda nisto tudo, e dizem-nos que não é, o que está a tornar tão difícil chegar a um consenso sobre quem serão os presidentes das diversas instituições da União Europeia?
Bom, há uma certeza que temos: se muitas vezes se diz no futebol que são onze para um lado e no fim ganha a Alemanha, neste caso podem ser 27 sentados à volta de uma mesa, mas no fim a Alemanha decide e impõe as suas decisões. Seja por interposta pessoa, arranjando pessoas de confiança que não afrontem os seus interesses e que os defendam, seja colocando diretamente alemães nos postos-chave.
Creio que as dificuldades resultam mais do facto de estarem duas, três ditas famílias políticas - na verdade, todas parte de um grande consenso que abarca direita e a social-democracia - a decidirem os lugares que vão ser atribuídos, querendo cada uma puxar mais para si alguns desses lugares.
No fundo, estas dificuldades a que assistimos na hora de distribuir os lugares são sempre ultrapassadas, mais dia menos dia, mais reunião menos reunião, mais noitada menos noitada. Chegam sempre a acordo. E na hora de decidir as políticas não se veem estas dificuldades, elas são decididas de modo muito mais rápido, todos juntos, aqueles que estiveram na barganha por estes postos estão todos juntos a decidir o caminho - no fundo, o caminho que tem sido seguido na União Europeia, porque estas famílias políticas têm sido elas a impor o rumo, contrário aos interesses dos povos dos vários países que compõem a União Europeia. Mas creio que aqui, como noutras áreas, não podemos esperar que a mudança venha destas instituições, do Parlamento, da Comissão ou do Conselho. A mudança vai ter de vir de fora, pela pressão, pela força organizada, pela mobilização dos povos nos vários países, reclamando uma rutura com as políticas que têm sido contrárias aos seus interesses e defendendo os direitos sociais e laborais, medidas de progresso e de desenvolvimento económico, de combate às desigualdades que neste momento caracterizam a União Europeia.
Qual foi a primeira coisa que fez quando chegou a Estrasburgo?
Procurar a chave do meu gabinete para me poder instalar e começar a trabalhar.
Descreva a última vez que se irritou.
Bom, infelizmente devo dizer que ocorre com alguma frequência, desde logo face a um processo como aquele que neste momento estamos aqui a viver de discussão de cargos, seja para o Parlamento Europeu, seja para as demais instituições, e em que somos confrontados com este consenso das famílias ditas, enfim, de direita, da social-democracia, as tais que têm imposto um caminho e que muitas vezes é necessário confrontar aqui no dia-a-dia, não nos poupando, evidentemente, algumas irritações.
Tem alguma comida de conforto?
Várias. Sou muito confortável em relação a uma grande amplitude de oferta gastronómica.
Alguém merece ter cem milhões de euros?
Bom, seguramente várias entidades, nomeadamente coletivas, podem merecer ter isso e pô-lo ao serviço do bem-estar e do progresso e desenvolvimento de todos.
Afinal, da esquerda à direita, os deputados europeus não são tão diferentes como poderíamos pensar. A maioria acredita mesmo que não pagamos demasiados impostos, é contra um exército europeu, prefere os EUA à China, admite irritar-se com facilidade e é bom garfo. Ainda assim, há diferenças. Estas foram as respostas de João Ferreira, mas o eurodeputado do PCP não foi o único a responder. Saiba mais aqui.
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