O que é um cordon sanitaire [cordão sanitário]?

A expressão é francesa e data do século XIX, mais concretamente do ano 1821, quando Armand Emmanuel de Vignerot du Plessis, Duque de Richelieu, colocou o exército francês na fronteira entre França e Espanha, para controlar as entradas e saídas do país para, alegadamente, impedir a propagação da febre amarela que alastrava em território espanhol por França.

O termo perdurou no tempo e passou a ser sinónimo de um perímetro que isola uma povoação dos seus territórios vizinhos para evitar a propagação de uma doença ou epidemia. A zona confinada passa a ser vigiada pelas autoridades que impedem que haja entradas ou saídas da área demarcada, fora as exceções absolutamente fundamentais ao bem-estar da população residente naquele território, e que normalmente incluem as entradas e saídas de profissionais de saúde e de transportes de mercadorias de bens essenciais.

Uma cerca sanitária é a mesma coisa que um cordão sanitário?

  • As expressões cordão sanitário e cerca sanitária são sinónimas, difere apenas o uso. A primeira é mais utilizada pela comunidade médica, a segunda pela administração interna e Proteção Civil.

Em Portugal, neste momento, quantas cercas sanitárias existem?

  • Desde que a pandemia provocada pelo novo coronavírus afetou Portugal já foram fixadas oito cercas sanitárias, todas elas em vigor à data de publicação deste artigo. A primeira foi montada em torno do concelho de Ovar. O cordão sanitário foi decretado no dia 17 de março e será prolongado pelo menos até 17 de abril.
  • A segunda cerca sanitária foi montada pela Câmara Municipal de Melgaço no dia 25 de março, em torno de Parada do Monte, uma aldeia com 370 habitantes depois de terem sido confirmados três casos por infeção com Covid-19.
  • Por último, no dia 29 de março, foi identificada uma zona de transmissão local, no município da Povoação, na ilha de São Miguel, no arquipélago da região autónoma dos Açores, em torno do qual foi também montado um cordão sanitário. No entanto, dias depois, a 3 de abril, o Governo dos Açores decidiu alargar a medida, colocando também cercas sanitárias nos concelhos de Ponta Delgada, Ribeira Grande, Lagoa, Vila Franca do Campo e Nordeste.
créditos: EDUARDO COSTA / LUSA

É algo que também tenha sido feito noutros países durante a epidemia?

  • Sim, sobretudo após a deteção dos primeiros casos de infeção. O primeiro cordão sanitário desde este surto foi em Wuhan, na China, onde foi detetada a primeira pessoa infetada com este novo vírus e ficou conhecido como "Wuhan lockdown". A medida não é inédita neste século para muitos países asiáticos, sobretudo os mais afetados pela pandemia de SARS em 2002. Itália, sobretudo na região norte, também utilizou esta medida para tentar conter focos de transmissão do vírus.

Quem pode decretar uma cerca sanitária?

  • Este é o tema que tem suscitado mais questões. As primeiras cercas sanitárias até agora decretadas têm todas origens diferentes. O cordão sanitário em torno de Ovar foi fixado depois de o Conselho de Ministros ter decretado o estado de calamidade para aquele concelho. A cerca em torno da aldeia de Parada do Monte foi decretada pela Câmara de Melgaço. Por fim, a cerca em torno da Povoação e depois os restantes concelhos da Ilha de São Miguel foi decretada pelo governo regional dos Açores.
  • A Lei de Bases da Proteção Civil diz-nos que a decisão de montar uma cerca sanitária acontece após a declaração do estado de calamidade e que tal tem de ser decretada por uma resolução do Conselho de Ministros. Foi isto que aconteceu no caso de Ovar, sendo que ainda antes houve um despacho assinado por António Costa e Eduardo Cabrita, ministro da Administração Interna, a reconhecer a necessidade da declaração. Por norma, costuma também haver uma articulação entre o ministério da Saúde e o MAI, antes desta decisão.
  • Neste momento pode - e bem - estar a perguntar-se sobre os outros dois casos, uma vez que nem em Povoação, nem em Parada do Monte foi decretado estado de calamidade. Ao SAPO24, fonte oficial da Direção-Geral da Saúde explicou que “a Emergência de Saúde pública foi decretada por situação de calamidade”, algo que se pode ler no decreto do estado de emergência do Presidente da República.
  • Assim, cumpre-se o pressuposto no artigo 21.º da Lei de Bases da Proteção Civil que prevê
    a fixação de uma “cerca sanitária” por razões de saúde pública ou de segurança. Esta pode ser “decretada pelo Presidente da Comissão Municipal de Proteção Civil (que é o presidente de Câmara), após delegação do membro da área do governo da Administração Interna”.
  • “Neste contexto de emergência de saúde pública, o Presidente da Comissão Municipal de Proteção Civil após ativação do plano de contingência, de acordo com avaliação de risco da Autoridade de Saúde local (que também é membro da referida comissão), pode decretar essa medida de “cerca sanitária” e impedir a circulação de pessoas”.
  • É neste último contexto que se insere o caso de Parada do Monte e da Ilha de São Miguel. A título de exemplo, quando se impôs a cerca sanitária no concelho da Povoação podia ler-se em comunicado que a decisão foi tomada “após recomendação das autoridades de saúde concelhia e regional” e “em articulação prévia com o Representante da República para os Açores”.

Por que razão é que a expressão cerca sanitária entrou na ordem do dia?

  • Na segunda-feira, 30 de março, na habitual conferência diária da DGS, Graça Freitas, diretora-geral da Saúde, questionada pelo SAPO24 afirmou que a decisão de impor uma cerca sanitária na região do Porto estava a ser equacionada pelas autoridades de saúde regionais e nacionais e poderia ser tomada ainda naquele dia.
  • A questão do SAPO24 referia-se, na verdade, aos cinco concelhos da área metropolitana do Porto para os quais foi pedida, pela Comissão Distrital da Proteção Civil, uma cerca sanitária — concelhos entre os quais não se inclui o município do Porto —, porém, a intermediária da DGS que colocou a questão pô-la no singular e foi nesse contexto que surgiu a resposta de Graça Freitas. E o tema gerou imediatamente polémica com a Câmara Municipal do Porto a mostrar-se contra esta medida, assim como vários autarcas das áreas envolventes e especialistas de saúde pública.
  • Na conferência de imprensa do dia seguinte, António Lacerda Sales, secretário de Estado da Saúde dizia que “o que a senhora diretora-geral falou foi em situações de ponderação de uma forma generalista, não se referindo particularmente ao Porto. [...] Há muitas situações no país em que isso se pode colocar", afirmando que tal “não faz qualquer sentido”.

(Um pequeno parêntesis) Porquê no Porto e nos concelhos vizinhos?

  • A zona norte do país é a zona com maior número de casos confirmados de infeção pelo novo coronavírus: 5338. Também é a zona onde se registam mais óbitos por Covid-19, 107 no total (segundo o boletim informativo da DGS publicado a 2 de abril).
  • Entre os municípios com maior número de casos, logo depois de Lisboa (634), estão o Porto (606), Vila Nova de Gaia (449), Gondomar (424), Maia (390) e Matosinhos (368).

Neste caso concreto, a DGS teria autoridade para tomar esta decisão?

  • Sim. Ao jornal Público, a professora de Direito da Saúde, Paula Lobato de Faria, da Escola Nacional de Saúde Pública, defendeu que Graça Freitas tem autoridade para poder determinar um cordão sanitário, enquanto autoridade de saúde que dispõe de amplos poderes discricionários e que é independente do poder político.
  • No que toca às competências das autoridades de saúde - delegados de saúde locais, regionais e a nacional, a diretora-geral de saúde - no número 1 do artigo 5.º, do decreto que as regulamenta, diz que “as autoridades de saúde asseguram a intervenção oportuna e discricionária do Estado em situações de grave risco para a saúde pública, competindo-lhes, ainda, a vigilância das decisões dos órgãos e serviços operativos do Estado em matéria de saúde pública”.
  • No ponto número 2 desse mesmo artigo pode ler-se: “Para efeitos do disposto no número anterior, as autoridades de saúde podem utilizar todos os meios necessários, proporcionais e limitados aos riscos identificados que considerem prejudiciais à saúde dos cidadãos ou dos aglomerados populacionais envolvidos.

Posto isto, afinal, quem disse o quê sobre o possível cordão sanitário ao Porto?

créditos: TIAGO PETINGA/POOL/LUSA
  • “Provavelmente, hoje será tomada uma decisão nesse sentido [cerca sanitária na região do Porto]. (…) E é óbvio que a autoridade de saúde, ao nível dos agrupamentos de centros de saúde, se articula com os seus parceiros a nível daquele município, desde logo, com a Câmara Municipal, com a Segurança Social e mais latamente com a Comissão Municipal de Proteção Civil.” - Graça Freitas, diretora-geral de Saúde 30-03-2020
  • “Para todos os efeitos esta é uma idiotice do ponto de vista científico e, principalmente, do ponto de vista epidemiológico. [...] é uma medida impraticável, como sabemos, mesmo em Ovar que é um sítio muito mais limitado, foi pouco eficaz essa medida, quanto mais numa área enorme e muito fluida. A cidade do Porto e os concelhos limítrofes é contínua” - João Fonseca, diretor do Departamento de Medicina da Comunidade, Informação e Decisão em Saúde da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto 30/03/20
  • “A Câmara do Porto foi hoje surpreendida por uma inopinada e extemporânea referência por parte da senhora Diretora Geral da Saúde de que estaria a ser equacionado um cerco sanitário ao Porto. Tal medida, absurda num momento em que a epidemia de COVID-19 se encontra generalizada na comunidade em toda a região e país, não foi pedida pela Câmara do Porto. [...] A medida, inútil e extemporânea fosse tomada, tornaria impossível o funcionamento de serviços básicos da cidade, como a limpeza urbana (cuja maior parte dos trabalhadores não reside na cidade), como a recolha de resíduos (cuja LIPOR fica fora da cidade), como o abastecimento e acessos a dois hospitais centrais (Santo António e São João) estariam postos em causa.” - Câmara Municipal do Porto 30/03/20
  • “A Câmara do Porto deixa de reconhecer autoridade à senhora Diretora Geral da Saúde, entendendo as suas declarações de hoje como um lapso seguramente provocado por cansaço” - Câmara Municipal do Porto 30/03/20
  • "A fixação de cercas sanitárias é antecedida por declarações de calamidade pública, que, de acordo com a lei de bases da Proteção Civil, é decidida, em situações normais, pelo conselho de ministros e, em situações de urgência, por despacho do senhor primeiro-ministro e do senhor ministro da Administração Interna. [...] O que a senhora diretora-geral falou foi em situações de ponderação de uma forma generalista, não se referindo particularmente ao Porto. [...] Há muitas situações no país em que isso se pode colocar" - António Lacerda Sales, secretário de Estado da Saúde 31/03/20
  • “A Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia rejeita em absoluto esta solução [cerca sanitária] e entende não ser a resposta adequada para a situação” - Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia 31/03/20
  • “Se a decisão tivesse sido tomadas há alguns dias talvez se justificasse, mas agora considero que não fará sentido porque já é tarde” - Marco Martins, presidente da Câmara Municipal de Gondomar e da Comissão Distrital de Proteção Civil do Porto 31/03/20
  • “Em Matosinhos precisamos de cidadãos de outros concelhos para trabalhar, designadamente nos serviços de saúde e no apoio a dependentes. Não nos podemos esquecer que Matosinhos tem um dos hospitais de referência da zona Norte, cujo acesso pode estar comprometido com a possibilidade do cerco sanitário” - Luísa Salgueiro, presidente da Câmara Municipal de Matosinhos 31/03/20
  • “Achamos que é um exagero avançar com essa medida. Não se justifica. Revela desconhecimento da situação no terreno” - Nuno Botelho, presidente da Associação Comercial do Porto 30/03/20
  • "Para o PSD do Porto, não faz sentido absolutamente nenhum a criação de uma cerca sanitária ao concelho do Porto (…). O que está a acontecer no concelho do Porto também está a acontecer nos concelhos limítrofes, em termos daquilo que é o aumento do número de casos" - Alberto Machado, PSD/Porto 30/03/20
  • “Não é pública qualquer razão que sustente o cerco, do ponto de vista técnico ou científico. Há medidas implementadas e é nelas que se devem concentrar as atenções, em vez de estar, de dia para dia, a procurar novas medidas, feitos baratas tontas” - Jaime Toga, Direção da Organização Regional do Porto (DORP) do PCP 31/03/20
  • “A ideia de criar um cerco medieval à cidade revela um total desconhecimento da vida da região. Só no Hospital de São João, três quartos dos profissionais vêm de fora do Porto e uma percentagem significativa de fora da Área Metropolitana. Isso, só por si, revela que esse alegado cerco sugerido pela Direção-Geral da Saúde iria criar muitos mais problemas do que ajudar ao esforço contra a propagação do vírus” - Manuel Pizarro, presidente da Federação Distrital do PS/Porto, médico e eurodeputado 30/03/20