Recuemos no tempo. Tavira, 3 de dezembro de 1989. Um temporal fez-se sentir no Algarve, com particular gravidade no concelho de Tavira. Conta a RTP que "as inundações e enxurradas foram das mais violentas de sempre na região, destruindo plantações agrícolas e estufas, matando animais e danificando habitações e acessos. Foi a primeira vez que o Governo decretou assistência financeira em situações de calamidade pública".

As estufas e plantações agrícolas destruídas, a lama nas ruas, as casas inundadas. E a ponte romana, aquela que atravessa o rio Gilão, parcialmente abatida. Depois, foi sendo reconstruída. Mas não chegava; construiu-se outra para suprir as necessidades de passagem de veículos. E o tempo seguiu o seu curso desde então e também veio a fazer os seus estragos.

O que era provisório tornou-se uma necessidade para a cidade. Um novo capítulo começou em março de 2016. Nessa altura, a Câmara de Tavira, no distrito de Faro, anunciou a adjudicação da elaboração do projeto de construção da nova ponte sobre o rio Gilão, para substituir a atual travessia provisória — a tal das cheias — até ao início de 2018.

Em declarações à agência Lusa, o então presidente da autarquia, Jorge Botelho, referiu que a nova ponte teria como objetivo permitir a reabilitação, o aumento da mobilidade e da fluência do trânsito no centro da cidade, assim como o desenvolvimento mais harmonioso da urbe dividida pelo rio.

Segundo o ex-autarca, a nova travessia teria uma ciclovia, um passeio largo, uma só via para o trânsito automóvel e um custo de quase 1,5 milhões de euros. “A nova ponte será de betão e estará enquadrada na paisagem”, frisou em 2016 Jorge Botelho.

Os primeiros prazos foram lançados. Previa-se que, dentro de três meses, estivesse concluído o projeto de execução da nova ponte, que a sua construção se iniciasse em “abril-maio" de 2017 e que a obra estivesse "terminada num prazo de nove a doze meses”. Não aconteceu.

Estamos em novembro de 2019. Agora, em comunicado, a autarquia — nas mãos de Ana Paula Martins — relembra que o projeto "foi noticiado, no site, nas redes sociais e na comunicação social, em março de 2016, assim como nas edições de janeiro de 2016 e 2017 da revista municipal".

Sobre a ponte de betão — assente em dois pilares, face à distância entre as margens —, o mesmo esclarecimento da autarquia adianta que o desenho corresponde a “uma reinterpretação contemporânea das construções formais existentes no local” e que a infraestrutura caracteriza-se pela “simplicidade, leveza e qualidade de acabamentos”.

Ou seja: a Câmara vem dizer que nada disto é novidade; a nova ponte é necessária em Tavira. "O processo de construção de uma ponte com estas características e a necessidade de circulação de automóveis ligeiros, num único sentido, foi comunicado, desde a primeira hora, podendo, não obstante, como já acontece, a circulação ser restringida por alguns períodos de tempo, atendendo à realização de iniciativas que o justifiquem", pode ler-se.

"Desde 2016 até ao presente, foi referida e divulgada, nos stands das festas e feiras de Verão nas diferentes freguesias do concelho, a intenção do Município de trabalhar para levar por diante esta obra. Também os programas eleitorais do atual executivo integraram a decisão de substituição da ponte, tendo-se iniciado, em 2014, a tramitação necessária à sua edificação", continua o documento.

A construção da ponte, "em conjugação com outras obras realizadas recentemente e a futura requalificação das margens", irá "beneficiar e valorizar a zona nobre da cidade", remata a autarquia.

E porquê recordar a história das pontes do Gilão? Porque a população não concorda com o projeto e tem algo a dizer.

O "mamarracho" de betão que os cidadãos não querem

Numa carta aberta, publicada no Facebook e enviada à presidente da Câmara, Ana Paula Martins, a 11 de novembro, o movimento cívico Tavira Sempre refere que recebeu "centenas de manifestações de indignação e dúvida relativas ao projeto de edificação da nova ponte sobre o Rio Gilão", acusando a autarquia de o projeto não ter sido "pormenorizadamente divulgado", ao contrário do defendido pela câmara, que frisou expor a obra desde 2016.

No documento são colocadas várias questões à autarquia, entre elas a necessidade de mais uma ponte "se existem outras" e a dúvida quanto à necessidade de levar "trânsito para o centro, contrariando as tendências mundiais", podendo também a ponte passar pelo meio do Jardim do Coreto e do Jardim das Palmeiras, "o único espaço verde de dimensões significativas na cidade".

Além destas questões são também referidos alguns pormenores técnicos: a construção está junto à "ponte antiga classificada como monumento de interesse municipal", vai ter 10 metros de largura e será construída em betão — pelo que é apelidado de "mamarracho". E tudo isto implica "preocupações ambientais e patrimoniais".

Mesmo depois dos esclarecimentos dados pela Câmara Municipal de Tavira, no final da semana passada, os habitantes que pretendem travar a construção de uma nova ponte na cidade não ficaram convencidos — esta é uma “solução que vai contra a vontade da população”.

A Câmara “veio falar, mas não veio esclarecer”, afirmou à Lusa Marta Rogado, do movimento ‘Tavira Sempre’, adiantando que o grupo fará “tudo o que estiver ao seu alcance” para parar a obra e usará “todos os meios possíveis e necessários para o impedir”. Neste momento, a população está a levar a cabo uma petição que, à data de publicação deste artigo, conta com 676 assinaturas.

O movimento considera que o comunicado nada adianta sobre “a pouca importância que a câmara deu ao centro histórico da cidade e à população” desde o momento em que lançou o caderno de encargos e o porquê de criar “mais uma ponte rodoviária”.

Ao SAPO24, Sofia Ferreira, também do movimento "Tavira Sempre" refere que as cinco pontes que existem no espaço de quilómetro e meio — ponte das Descobertas, ponte de Santiago, ponte romana, ponte da N125 e a ponte militar, agora degradada e em vias de ser substituída — "mais do que escoam o trânsito e dão passagem às pessoas". "Não há uma fila de trânsito em Tavira", diz.

Já Marta Rogado afirma que se mantêm as três razões que mobilizam o movimento e que, somadas, se traduzem na posição “Este projeto não!”: a componente arquitetónica, “numa imagem completamente básica, é um mono de betão desproporcionado ao local onde está inserido”; a de mobilidade, “voltando a colocar o trânsito num parque central e pedonal contrariando o conceito “slow city” abraçado pela cidade e, por fim, facto de “todo o processo ter sido feito à revelia das pessoas, construindo uma ponte com 10 metros de largura, bem maior que a atual”, destacou.

Contudo, o movimento admite “ter acordado tarde” e ter havido alguma passividade por parte da população, que apenas “despertou para a situação” quando os tapumes foram colocados. “Ainda estamos no momento de parar, porque ainda não foi lá feito nada”, afirma Marta Rogado. Sofia Ferreira completa a ideia. "Sempre houve contestação popular porque havia só um único projeto, não tivemos opção de escolha, nunca foram consideradas opiniões. Mas nós, cidadãos de Tavira, sempre achámos que não ia avançar. E isso mudou agora com as obras".

O movimento gostaria que houvesse bom senso da Câmara Municipal e que a obra parasse, abrindo o debate à população, com uma sessão de esclarecimento às questões colocadas sobre “os estudos de mobilidade, de impacto ambiental e integração arquitetónica” e que fosse tomada uma decisão em conjunto.

Em nova carta aberta do movimento, datada do dia de ontem e publicada no Facebook, é referido que "não é vergonha para ninguém suspender as obras que ainda agora começaram e reavaliar as decisões antes tomadas" e que isso "pode ser um exemplo de clarividência, de bom senso, de democracia e de consideração pelos seus munícipes". Como exemplo de que isto pode ser feito, é referido o caso da interrupção das obras públicas no Cine-Teatro António Pinheiro, devido a terem sido descobertos "valores arqueológicos".

Ao SAPO24, a Câmara Municipal de Tavira refere que as obras estão em curso e assim vão continuar. "Face à contestação pública sobre esta matéria, a qual não espelha a posição de todos os tavirenses atendendo a que diariamente o Município é contactado por munícipes e outros que apoiam a iniciativa de construção da ponte, a obra continuará os seus trâmites, pois em caso de suspensão dos trabalhos as consequências seriam altamente danosas para o erário público e comprometedoras da estabilidade financeira da autarquia e de futuros investimentos públicos".

Contudo, há pormenores a acertar, daí ainda não estarem espelhados no comunicado da autarquia. "Por persistirem reservas relativamente à solução inicialmente proposta, o executivo solicitou à Divisão de Projetos, Energia e Obras Municipais o estudo de uma solução alternativa ao corte da placa central do Jardim do Coreto, após a conclusão do qual irá ponderar as duas possibilidades de modo a optar pela solução que se apresente mais vantajosa em termos de mobilidade urbana sustentável, bem como de gestão do espaço público".

Até existir uma resposta final, o movimento cívico não vai parar. É preciso mudar a situação e, diz Sofia Ferreira, "tentar por todos os meios que se trave o projeto". Não nos diz ainda o que vai ser feito, só que "ainda se vai ouvir falar muito da ponte que agora está na moda".

*Com Agência Lusa

(Notícia atualizada às 18h56 com declarações da Câmara Municipal de Tavira)

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