Em declarações à agência Lusa, em Luanda, a eurodeputada eleita pelo Partido Socialista (PS) português para o Parlamento Europeu (PE), considera que, a verificar-se tal situação, o facto "violou" a Constituição angolana, designadamente nas exigências que faz relativamente a quem pode tornar-se Presidente ou vice-Presidente da República.
"Não sei se Manuel Vicente é um deles [dos a quem foi atribuída nacionalidade portuguesa através dos ‘Vistos Gold']. O que sei é que Manuel Vicente tem aparentemente a nacionalidade portuguesa, tal como tem a angolana, o que contraria a Constituição angolana, designadamente nas exigências que faz relativamente a quem é PR ou vice-PR, no caso de Manuel Vicente (que deixou de ser vice-presidente em 2017)", disse.
Ana Gomes falava à Lusa após a 3.ª Conferência sobre Transparência, Corrupção, Boa Governação e Cidadania em Angola, organizada em Luanda pela Associação Justiça, Paz e Democracia (AJPD), em que foi oradora no painel "O Combate ao Branqueamento de Capitais com Origem em Angola por Parte da União Europeia e de Portugal - O Papel da União Europeia e de Portugal: Ações e Omissões".
"Não sei. As estatísticas do SEF [Serviços de Estrangeiros e Fronteiras de Portugal] dizem que há angolanos entre os beneficiários dos ‘Vistos Gold'. Como é que [Manuel Vicente] adquiriu a cidadania portuguesa não sei. Eu sei é que isso foi invocado pelo seu advogado numa peça processual que apresentou em Lisboa, quando o processo ainda estava aberto", sublinhou.
Ana Gomes salientou que já perguntou por duas vezes, ao atual e anterior Governo português, sobre se Manuel Vicente tem ou não a nacionalidade portuguesa, não obtendo qualquer resposta.
"Tive a informação que, no registo central, não há registo de Manuel Vicente, mas não tenho a informação se, por via dos ‘Vistos Gold', não tenha adquirido a nacionalidade portuguesa. É um aspeto que gostaria de esclarecer", explicou.
"Estou farta de pedir aos governos portugueses, o atual e o anterior, acesso às listas de beneficiários dos ‘Vistos Gold' e dos familiares que também obtiveram autorização de residência em Portugal através do esquema de reunificação familiar, e até hoje esse acesso foi-me negado", acrescentou.
Tudo isto acontece, lamentou, apesar de ser deputada europeia, de estar envolvida no Parlamento Europeu nas negociações e na redação das diretivas contra o branqueamento de capitais e o financiamento do terrorismo, de ser membro das comissões de inquérito sobre os sucessivos escândalos, como o "Panama Papers", "LuxLeaks" e "Paradise Papers", entre outros.
"Os governos portugueses não me dão acesso a essas listas porque sabem que vou encontrar lá uma série de gente que nunca devia ter tido o benefício da residência portuguesa se se tivesse feito uma "due diligence" como deve ser e se se tivesse apurado qual a origem dos capitais que usam, designadamente para comprar propriedades ou para fazer os investimentos que fizeram em Portugal.", declarou.
Questionada pela Lusa sobre se alguma vez se considerou um "empecilho" nas relações luso-angolanas, Ana Gomes respondeu que "nunca" tal aconteceu, ocorrendo precisamente o contrário.
"De maneira nenhuma. Continuo é a sentir-me solidária com o povo angolano e com todos aqueles que querem transparência e querem lutar contra a corrupção. [?] Não aceito aqueles que, em Portugal, tentam condicionar-me, dizendo-me que estou a pôr em causa os portugueses", respondeu.
"Acho que sirvo Portugal e o interesse português de não deixar que Angola confunda todos os portugueses como instrumentos dos corruptos e dos criminosos em Angola, que é a imagem que, infelizmente, têm muitos portugueses, cá (em Luanda) ou lá (em Portugal), que são de facto agentes dos criminosos, que desviaram recursos do Estado angolano para interesse próprio e que os investiram em Portugal e noutros países e em que os testas de ferro deles são portugueses. Ou têm portugueses como agentes coniventes com esse processo", acrescentou.
As relações entre Angola e Portugal registaram, em 2017, um período de crispação, devido ao processo judicial que envolvia o ex-vice-presidente de Angola, acusado de corrupção ativa, branqueamento de capitais e falsificação de documento.
Para o regresso à normalidade das relações, o Governo de Luanda impôs como condição a transferência do referido processo para a justiça angolana, o que acabou por acontecer em junho deste ano, ficando assim ultrapassado o "irritante" nas relações, como chegou a classificar o primeiro-ministro português, António Costa.
Hoje, a eurodeputada socialista também não se mostrou incomodada com o facto de as declarações surgirem a cerca de semana e meia da primeira visita oficial e de Estado a Portugal (de 22 a 24 deste mês) do Presidente angolano, João Lourenço, que constitui "uma esperança" para Angola.
"O relacionamento Portugal/Angola é muito importante e não pode de maneira nenhuma continuar a pautar-se por esquemas de cumplicidade no roubo, no desvio de recursos do Estado angolano por parte da elite cleptocrata que, nos últimos anos, não fez outra coisa neste país", referiu.
João Lourenço é, para Ana Gomes, "uma esperança" para Angola, "pelo que já está a fazer e pelos compromissos que assumiu", manifestando a convicção de que a deslocação do Presidente angolano a Portugal "corra o melhor possível".
"É uma grande oportunidade para as relações serem postas nos eixos e esses eixos têm de implicar colaboração, por parte de Portugal, nos esforços do novo Governo angolano em recuperar ativos. Muitos desses ativos estão investidos em Portugal e noutros países europeus e foram investidos com recurso a esquemas violadores das próprias leis europeias e dos interesses angolanos", concluiu.
Comentários