Teve o parto em Alfama, mas foi concebido algures entre a Grécia e Portugal. Nasceu do inconformismo, da inexistência poética, de um não. Nasceu do silêncio e não pensem que os calam. Tiago Lila, em palco Lila Fadista, e João Caçador são o Fado Bicha. Voz e guitarra elétrica, respetivamente. Um projeto que não é um género; que não inventa, reinventa o fado. São subversão, são barulho, são LGBT.
São bicha, da mesma forma que dizem que Amália o foi. Trazem poemas que ficaram refugiados no tempo, cantam o amor sem género. Tiram o fado do armário, mas ainda há gavetas que não estão abertas — e quem teime em fazer força para as manter fechadas.
Oradores na conferência "O homem promotor da igualdade - Homens e mulheres lado a lado pela igualdade de género" programada pela organização Quebrar o Silêncio, em novembro, trazem à discussão uma linguagem contranormativa numa arte conservadora.
Silêncio ou barulho que se vai falar de fado?
Tiago Lila (T). [Risos] Eu prefiro barulho. Mas, quando atuamos, o momento é de comunhão com as pessoas que nos estão a ouvir e... aquilo que trazemos exige algum silêncio para se permitir a experiência. Ainda que não seja de todo uma regra. Os nossos concertos têm momentos mais tranquilos e mais introspetivos e também momentos de alegria em que as pessoas dançam, cantam e batem palmas. Por isso um pouco de tudo. Silêncio e barulho, acho que são os dois pesos da balança.
João Caçador (J): Indo contra aquilo que é o fado tradicional, em que o silêncio é sempre exigido, acho que o barulho é uma coisa positiva. E o Fado Bicha veio um bocadinho trazer barulho para a cena do fado. Porque [Portugal] é um país de muito silêncio. Às vezes demasiado. E o silêncio geralmente está associado ao consentimento. O Fado Bicha veio procurar esse barulho e agitar...
Antes das devidas apresentações, como é que devo referir-vos. Projeto, grupo…
J: Como quiseres.
T: Tanto dizemos projeto como banda.
Perguntava porque o fado tem uma grande componente de individualidade.
T: No fado tradicional, sim.
J: "O fadista acompanhado pelos músicos".
"O Fado Bicha veio um bocadinho trazer barulho para a cena do fado. Porque [Portugal] é um país de muito silêncio"
T: Mas as duas [projeto e banda] adequam-se por motivos diferentes. Somos uma banda porque criamos música e fazemos concertos, mas também somos um projeto porque o Fado Bicha tem um lado ativista forte.
Gostamos de dizer "o" Fado Bicha, e não "os" Fado Bicha, porque achamos giro, mas também porque gera alguma confusão. Há muita gente que acha, e já vimos escrito, que o Fado Bicha é um estilo e que pode haver várias pessoas que o cantam.
J. É um projeto experimental também. Com um espaço próprio e liberdade de movimentos e de criação.
E como é que nasce? Vocês não se conheciam.
T: O meu percurso profissional não tem nada a ver com música. Fiz muitos anos teatro durante a faculdade, [daí] tenho essa experiência de palco e cénica. Estudei Psicologia e comecei um percurso que se poderia antever normativo: fiz um estágio profissional, comecei a trabalhar... Depois acabei por deixar o sítio onde estava a trabalhar e, em 2013, fui fazer voluntariado para a Grécia. A organização para a qual fui contratou-me, após esse período, e por lá fiquei uns anos. O Fado Bicha, que nasceu comigo, liga-se um bocadinho a essa experiência. Por um lado, na Grécia tive um despertar político muito forte. Por outro, como era a única pessoa portuguesa em grupos internacionais e acabava por cantar fado num ou outro contexto. Só para mostrar... Dizia sempre "eu não canto, mas posso tentar só para vocês verem". E comecei a perceber que as pessoas gostavam e às vezes até se emocionavam, mesmo sem entender a letra. [Foi aí que] me apercebi que "se calhar até posso fazer alguma coisa com isto". Quando voltei a Portugal, voltei com esses dois objetivos: envolver-me politicamente e ver o que é que dava para fazer com o fado. Tentei as duas coisas da forma esperada e normativa: um partido político e uma escola de fado. Não resultou, nem com uma coisa nem com a outra. Às tantas começou a surgir a ideia de que tinha de cantar fado, mas, ao mesmo tempo, mexer com alguma coisa. Não me via a cantar fado como homem ou da forma que era esperado que cantasse. Um dia... Havia um bar em Alfama, o FavelaLX, gerido pelo John, um rapaz brasileiro e negro, com palco aberto... mais direcionado a artistas queer. Falei-lhe uma vez desta ideia e de que não sabia muito bem como concretizá-la. Ele disse-me logo "tem de ser aqui, tem de ser aqui". Pedi ajuda a outro amigo que faz drag profissional, porque eu não entendia nada de maquilhagem nem de nada disso, e ele ajudou-me. Fiz um evento de Facebook e lá fui eu cantar a cappella. Acabei por fazer dois espetáculos assim.
J: Antes disso, é interessante... Vou contar um pouco a história dele [do Tiago]... da experiência que ele teve na Escola de Fado da Mouraria. [Numa aula] o Tiago pediu para cantar um fado, o "Ai Mouraria", que fala sobre "o homem do meu encanto". Portanto, um homem, numa escola de fado da Mouraria a cantar esse verso gerou alguns problemas e as pessoas disseram que esse fado não é para homens cantarem, é para ser cantado por mulheres.
T: E eu insisti...
J: Acho que este choque é a melhor definição que pode haver do Fado Bicha ou da sua génese. O Tiago inconscientemente não engoliu [algo que lhe disseram que não podia fazer]. E disse "vou inventar o meu próprio fado, vou reinventar o fado e vou encontrar o meu espaço". Decidiu criar o Fado Bicha.
Porque é que esse preconceito ainda continua a existir? Quando vemos, por exemplo, com naturalidade, crianças bastante jovens a cantar fados com uma carga emocional pesada e que contam uma história que não foi nem é para ser vivida nas suas idades?
J: Porque idiomaticamente no fado isso são letras que sempre foram permitidas e sempre fizeram parte. Até porque antigamente aos 13 anos os miúdos já trabalhavam e tinham vidas completamente diferentes de hoje. E porque continua ainda a não ser aceite, transversalmente a toda a sociedade, este tipo de questões LGBT. E isso é curioso. Como é que se permitem coisas tão perversas como uma criança cantar temas sobre violência de género, cantar sobre uma mulher que sofreu violência doméstica ou que foi traída e continua a amar o marido e a pedir desculpa, mas depois não são permitidas estas questões de género no fado. Não é permitido, sobretudo aos homens. Porque em relação às mulheres não há tanta intransigência. Podem cantar, por exemplo, "A Rosinha dos Limões". Mas ao contrário, um homem abdicar da sua masculinidade e estruturalmente descer ao nível da mulher e aproximar-se da experiência feminina, é uma coisa muito mal vista.
Voltando ao vosso percurso. João, tu já tinhas uma relação com a música e com o fado.
J: Sim. Estudei cinco anos Engenheira Civil no Instituto Superior Técnico e, quando faltavam algumas cadeiras para terminar o curso, decidi que já não era isso que queria fazer. Ainda no Técnico, entrei no Hot Club mas também acabei por desistir. Entrei, então, na Universidade Lusíada e tirei o curso de Jazz e Música Moderna. Ao mesmo tempo, comecei frequentar as casas de fado e a aproximar-me do meio, a tocar e a cantar. Quando acabei o curso fui fazer uma viagem pela América do Sul, sozinho, de mochila e de guitarra. Mais ou menos um ano depois de voltar conheci o Tiago. Foi um acaso, uma sorte da vida. Tinha um amigo que também tinha feito uma performance no FavelaLX e, no Facebook, quando estava a ver um vídeo dele foi-me sugerido um do Tiago. Fomos depois apresentados e propus-lhe fazermos um ensaio. A partir daí...
…nasceu o Fado Bicha.
J: Já tinha nascido com o Tiago. [Risos] Já tinha engravidado, mas pariu naquele dia.
O que é ser bicha?
J: Eu gosto dessa pergunta.
T: A forma como utilizamos a palavra "bicha" no projeto é uma forma mais específica e ao mesmo tempo mais abrangente. Porque obviamente nunca foi, desde o início, ingénuo chamar Fado Bicha ao projeto. Sabemos, para além de toda a questão identitária, quão repulsivo é só a expressão "Fado Bicha" para muitas pessoas. Nem precisam de ver mais nada, basta verem o nome. Inclusive, uma vez estava a falar com uma amiga e ela disse-me: "a minha mãe viu-vos no 5 Para a Meia-Noite, ela gostou imenso, diz que cantas super bem, mas que só não gosta muito é do nome". Ao que lhe respondi que é precisamente por ela não gostar que nós nos chamamos assim. Bicha, como nós utilizamos, é um símbolo da subversão de uma série de coisas. A música que fazemos e a forma como fazemos subverte várias normas. Liricamente, com as alterações que fazemos às letras, e com as novas letras que escrevemos, trazemos uma existência poética que não existia no fado e que não existe praticamente na música popular portuguesa — ou existe muito pouco e não o suficiente. E também cantamos fado mas não tocamos com os instrumentos tradicionais, o João toca com uma guitarra elétrica. A forma como nos apresentamos em palco, que não é normativa a nível de expressão de género, é ela própria uma subversão. Portanto há toda uma série de coisas que trazemos na nossa proposta que são subversivas. E eu gosto imenso da palavra bicha. Não temos na língua portuguesa uma tradução direta da palavra inglesa "queer", que de certa forma abrange toda a dimensão da não normatividade de género e sexualidade, portanto uma série de pessoas e experiências, e para mim bicha talvez seja aquela palavra que uso com esse significado.
"Um homem abdicar da sua masculinidade e estruturalmente descer ao nível da mulher e aproximar-se da experiência feminina, é uma coisa muito mal vista"
Mas é uma palavra que nas bocas do mundo tem uma conotação pejorativa.
J. Muito. Define um homem homossexual afeminado. Lá está, mais uma vez um homem abdicar da sua masculinidade e descer socialmente ao nível da mulher é uma coisa que é considerada um insulto. Ou nós, enquanto artistas quando subimos a palco. As pessoas dizem-me isso: "mas não era preciso, não havia necessidade" ou "podiam falar das coisas mas não precisavam abdicar da vossa masculinidade" ou "já têm bicha no nome, já mudaram as letras, ‘tá bom". As pessoas depois misturam tudo: promiscuidade, sexualidade perversa, perversidade, aberração e desordem na questão de género. O sumo disso tudo, na cabeça das pessoas e nas coisas que vão falando connosco, levam-nos para um exibicionismo gratuito. "Eles fazem isto porque ele não canta bem e não foi aceite nas casas de fado e o outro não sabe tocar bem".
T: Houve até um produtor musical, depois de um concerto que não era nosso mas onde acabámos por cantar uma música, que veio falar connosco e nos disse que estava a pensar convidar-nos, que nunca nos tinha visto até aquela data, mas que até gostou muito. E depois disse, "e até fiquei a pensar se será mesmo necessário apresentarem-se da forma como o costumam fazer porque hoje até correu muito bem". E nós ficámos: "oi, tens de ir ver um concerto nosso". Foi, e até acabou por nos convidar [para um evento].
E a música tem género?
T: Infelizmente tem. Basta olhar para um cartaz de um festival, é só homens. Não é nada igualitário. O género é algo que perpassa toda a sociedade, logo está presente em todas as formas e a música é uma delas. Não tem género no sentido da forma como aprecias ou crias.
J: Toda a arte pode ultrapassar as questões de género. Tem a dimensão que tem porque somos humanos e fazemo-lo à nossa dimensão.
T: Talvez ultrapasse mais as questões de sexo que de género.
J: Mas são sempre construções culturais.
Como é o processo de transformação das músicas. E o porquê da escolha de alguns poemas?
T: Já há muito tempo que não adaptamos nenhuma música. Agora, escrevo eu o poema completo ou cantamos a música tal como ela é. Mas quando isso aconteceu, aconteceu sem grande processo. Era ponto assente para mim que queria ter uma história de amor entre dois homens e uma entre duas mulheres. Portanto foi encontrar nos fados que conhecia e gostava um que desse para alterar. Mas mesmo neles, queria sempre escrever um verso ou uma estrofe nova para trazer também mais elementos físicos desse amor. A "Lila Fadista" não sei muito bem como aconteceu, lembro-me de um dia estar a ouvir a "Júlia Fadista" e pensar nisso. Conto esta história várias vezes, um dia estava num evento na ILGA e conheci um rapaz trans que estava a começar o processo de transição. Estava super contente quando me contava e às tantas pergunto-lhe como é que era o apoio da família e ele disse-me que não tinha. O João tinha-me apresentado o [tema] "De Costas Voltadas" há pouco tempo e pensei logo em alterar o tema a pensar na história [daquele rapaz]. Vai acontecendo...
"Fazemos uma exorcização da invisibilidade, dos insultos e inexistência poética da nossa [comunidade LGBTI] nas histórias"
Agora estão dedicados à composição?
J: Sim, de letras novas. Com a música ainda não aconteceu. Temos um reportório tão grande e tão vasto de fados tradicionais que pode ser reinventado com uma nova abordagem que até agora fez sempre sentido utilizá-los.
Costuma dizer-se que o fado é um meio conservador e tradicionalista. Apesar de, nas suas origens o fado ser vadio, boémio e da Lisboa marginal, e de hoje estar a atravessar, com alguns nomes da nova geração, uma mutação que chega a ser visual. Pergunto então, como é que foram recebidos no seu seio.
J: Recebemos muitas mensagens de ódio no Facebook. No meu caso, e por ter um maior contacto com as casas de fado e o meio do fado... houve alguns fadistas mais conservadores que me deixaram de falar. Tiveram uma atitude de rejeição total em relação ao Fado Bicha. Por outro lado, em Portugal as pessoas não são muito frontais e tendem a evitar o choque. Então ninguém diretamente veio falar comigo a dizer: "Eu não gosto daquilo que tu fazes, não aprovo, acho que é um desrespeito". Aliás, só uma pessoa veio falar comigo e perguntei-lhe: "Porque é que não gostaste?". E a pessoa ficou um bocado desarmada porque não ouviu aprofundadamente e não foi a nenhum concerto. Foi uma fadista que acabou depois por se emocionar e por mudar de ideias quando lhe expliquei que não era uma falta de respeito e no fundo que era só o integrar [no fado] de uma parte da sociedade. Porque o fado fala sobre a vida, sobre o dia-a-dia, foi aí que começou, como uma forma de exorcizar e de catarse dos problemas do dia-a-dia. É um bocado [isso] o que nós fazemos, uma exorcização da invisibilidade, dos insultos e inexistência poética da nossa [comunidade LGBTI] nas histórias.
Quando as pessoas abrem um canal de comunicação, muda muito. Para aquelas que não fazem esse canal de comunicação [no meio do fado], continuamos a ser mal vistos. Por vários motivos: pelo nome, pela forma como nos apresentamos, pela música. Já músicos de fado me disseram que não havia necessidade de desconstruir tanto os fados ou de usar a guitarra elétrica, que devíamos ir com mais calma para sermos melhor aceites. Devagarinho. Historicamente já percebemos que devagarinho nunca levou a lado nenhum.
Podem dar exemplo de algo concreto que vos tenham dito?
T: Podes ir ao Facebook ver.
J: No Facebook, as mensagens nunca são construtivas. São sempre insultos...
Mas o tema da homossexualidade nunca esteve presente no meio do fado?
J: Abertamente não. Pelo menos da minha experiência e daquilo que vejo. As pessoas LGBT no mundo do fado têm ou tentam sempre assumir uma postura discreta. E muitas delas não aceitaram bem o Fado Bicha. Inclusive, houve um poeta que escreveu na nossa página de Facebook de forma muito destrutiva. E ele próprio é LGBT. Talvez, digo eu, porque tenha medo de ser associado ou se sinta ameaçado e por isso ataca para se manter distante.
E da parte da comunidade LGBT, como foi a recetividade?
T: [As reações] foram substancialmente mais positivas que negativas. Tivemos algumas negativas no início, quando abrimos a página [no Facebook]. Reações de homens homossexuais e de homens homossexuais travestis… mais velhos. Inclusive da Belle Dominique, que nos mandou uma mensagem e deixou uma crítica. Deu-nos uma estrela. Mas na verdade foi um fenómeno limitado no tempo, ao primeiro mês da página. [As mensagens da comunidade LGBT] utilizavam o mesmo tipo de linguagem e insultos homofóbicos que utilizavam as pessoas ligadas ao meio do fado.
J: Lado positivo. Também tivemos muitas pessoas que nos disseram que não gostavam de fado e que não ouviam e que de repente sentiam uma empatia pela parte poética, pela expressão e pelo sentimento.
"[As mensagens da comunidade LGBT] utilizavam o mesmo tipo de linguagem e insultos homofóbicos que utilizavam as pessoas ligadas ao meio do fado"
Há algum sítio em que tenham, até agora, deixado de tocar pelas características do Fado Bicha? Em Alfama têm todas as portas abertas? No Bairro Alto têm todas as portas abertas?
T: Não é bem assim...
J: E durante algum tempo temi… Falava-se disso no Facebook.
T: Esse fadista e poeta, o Mário Raínho, fez um manifesto a exortar as outras pessoas para irem à nossa página escreverem insultos e a não nos deixarem fazer concertos em Alfama. Porque nós começámos lá. Então durante um tempo o João achou que se fôssemos lá eles nos iriam linchar.
"Linchar"... verbalmente? Ou alguma vez passou para algo físico?
J: Não, sempre no Facebook.
Mas alguma vez sentiram, por darem corpo e voz ao Fado Bicha, perigo ou ameaça à vossa integridade física?
J: Senti no início da página, foram muitos insultos.
T: Também fiquei assustado.
J: E quando fizemos um vídeo com o PAN pela abolição das touradas.
T: No início, no fim dos concertos... Andar na rua vestido daquela forma [drag] à noite podia ser uma experiência difícil. Para mim era, mas nunca aconteceu nada.
J: Já tivemos à porta de casa. Alguns insultos e não sei quê. "Seu traveca". Isso é violento.
T: Ainda no outro dia fomos a um festival e estávamos a andar na rua os dois, lado a lado, normal, e passou um carro, abriu a janela e gritou "seus paneleiros". Devem-nos ter reconhecido.
Eu sofri muito bullying na escola, algo que consegui ultrapassar e digerir. Mas é duro. Não me causa o mesmo medo e a mesma sensação de terror que causava na altura, nem de perto, mas dá aquele frio na barriga. Muito associado a uma experiência de vulnerabilidade, de muita desproteção e de muita vergonha. Agora já não tenho vergonha, graças a deus... graças a mim. Graças a mim. O João, por exemplo, diz que lança para trás das costas. Por um lado é bom, porque temos de seguir em frente. Por outro, temos de reconhecer os efeitos que isso tem em nós, e mais do que isso, perceber que não foi só aquela pessoa que naquele momento gritou "seus paneleiros". Aquela pessoa representa o que acontece diariamente a pessoas que têm muito menos ferramentas para saber lidar com isso.
"A Amália foi a primeira bicha do fado, a primeira a quebrar com a elite do fado e ao mesmo tempo a criar uma ponte entre os dois lados"
Quem é a Madonna do fado português?
J: No sentido de diva?
Pode ser.
J: Não há dúvidas, é a Amália. A maior fadista portuguesa. Acho que a Amália foi a primeira bicha do fado, a primeira a quebrar com a elite do fado e ao mesmo tempo a criar uma ponte entre os dois lados. Mas do ponto de vista da desconstrução dos fados, de criar o fado-canção, de cantar poetas intocáveis como o Camões... Nesse sentido e no sentido de bicha que o Tiago antes retratava, ela foi a primeira a ser linchada em praça pública por desconstruir o fado e por afirmarem que o que ela fazia não era fado.
T: Ela é a bicha-mãe.
J: Até a forma como ela se apresentava em palco, não tenho referências de ver outras fadistas com aquela exuberância e com aquela forma de estar.
Referiram numa das vossas primeiras entrevistas que um dos vossos objetivos eram fazer um mapeamento, ou nas vossas palavras, "uma espécie de arqueologia LGBT do fado". Em primeiro lugar o que é isso e depois quando é que o fado saiu do armário?
T: Isso da arqueologia é uma maneira engraçada de dizer uma coisa que nós começámos a fazer uma vez que o João chegou a minha casa e perguntou se conhecia "O rapaz da camisola verde". Um poema escrito pelo Pedro Homem de Mello, poeta homossexual que também escreveu "Povo que Lavas no Rio", cantado inicialmente pelo Frei Hermano da Câmara, e depois por uma série de outras pessoas mas de uma forma super leve. Se olhares para a letra, e se fores ler o poema original, vês claramente a experiência de um homem homossexual em fim de vida a recordar um sentimento que nutriu por um rapaz mais novo. É super homoerótico.
J: É trazer um bocadinho de verdade ao fado e mostrar as suas costuras. Parecia que tínhamos um poema com uma melodia que não fazia sentido nenhum. De repente a mesma melodia mas numa tonalidade menor mostra o verdadeiro sentido do poema.
T: Uns meses mais tarde trouxe eu o "Meu Limão de Amargura", escrito pelo Ary dos Santos, que já conhecia há imensos anos mas nunca tinha pensado sobre ela, e de repente uma amiga minha diz-me: "estive a ouvir e acho que vocês deviam cantar". E perguntei-lhe porquê e ela disse-me para ir ler o poema. E vou ler e "ahhh". Há esta história para trás e estas manifestações que chegam até nós dentro do fado e que estão escondidas...
J: Estão refugiadas no tempo, no espaço e nas circunstâncias em que foram criadas e agora podemos trazê-las... e acho que é mesmo isso. Mostrar-lhe as costuras e a forma como hoje em dia já podem viver livres e respirar.
Estava a pensar na resposta à pergunta 'quando é que o fado saiu do armário' e veio-me à memória, sabes aquelas bonecas russas, as Matrioscas, que estão dentro uma das outras? Acho que o fado foi, ao longo do tempo, saindo de um armário e entrou num um bocadinho maior, onde já cabiam mais pessoas; foi saindo desse armário para outro ainda maior. Não foi uma coisa estanque, foi mudando. Mas o armário ainda existe, talvez hoje as dimensões sejam um bocado maiores, e nós tentamos partir essas madeiras.
"Não foi só aquela pessoa que naquele momento gritou "seus paneleiros". Aquela pessoa representa o que acontece diariamente a pessoas que têm muito menos ferramentas para saber lidar com isso"
Vocês passam nas rádios? Ou já tiveram algum convite para marcar presença no daytime em televisão?
T: Não porque não temos nada gravado. Fomos ao 5 para a Meia Noite.
J: Mas é engraçado que outro dia estávamos com alguém que trabalha na BBC Radio e que nos perguntou como é que ninguém nos convidou para falar. Uma coisa é não termos nada gravado, outra coisa é um convite para uma entrevista. Já falámos para uma rádio espanhola e outra norte-americana. As entrevistas lá fora nunca fomos nós que procurámos [já foram alvo de peças no Globo e no El Mundo] e cá dentro nunca tivemos esse interesse.
T: Com exceção de meios mais alternativos, como o Divergente.
E já tiveram o convite de algum festival de média ou maior dimensão?
J: Vamos agora ao Fólio [a entrevista foi feita um dia antes do Festival Literário de Óbidos].
T: Mas lá está, nós não temos nada gravado.
Mas já tiveram algum contacto de uma editora?
T: Não.
Ou de outra pessoa da indústria que vos tivesse dito 'bora, vamos para estúdio' ou 'quero gravar convosco'?
T: Não.
E isso limita-vos?
T: Por enquanto não, sinto que estamos a fazer o nosso percurso. Estamos dedicados a 100% ao Fado Bicha. Queremos gravar e quando o fizermos não será apenas o João a tocar guitarra e eu a cantar. Precisa de mais corpo, queremos desafiar-nos a esse nível. Mas eu sinto que vai acontecer, sinceramente não estou muito preocupado.
J: De certa forma isso dá-nos alguma liberdade de movimentos.
Então sentem que têm as mesmas oportunidades que os outros projetos?
T: Sinto que em algumas coisas até temos mais. Nós damos imensos concertos. Sinto que há muita vontade de várias pessoas de nos receber e de nos ter a atuar. E penso, será que todas as bandas que começaram há um ano têm assim tantas oportunidade de fazer concertos pagos? Acho que não, ou pelo menos haverá muitas que não têm.
J: Acho que temos tido estes convites todos porque o Fado Bicha é um projeto pertinente e que traz uma coisa nova. Mas percebo a pergunta. Este tipo de música periférica e mais marginal fica sempre à porta. Fica à porta das rádios, das TVs e do Coliseu na noite dos Globos de Ouro. Há muita música multicultural, suburbana e ativista que continua a não ter espaço.
E quando é que dão esse passo e vão para estúdio e começam a gravar?
J: O mais rapidamente possível.
Há alguém com quem gostassem de trabalhar do meio do fado?
J: Do fado não, em termos de produção. Agora colaboração, sim. Com a Aldina [Duarte]...
Vocês são ativistas, o Fado Bicha é um projeto ativista. Mas para além do ativismo pela expressão musical, onde é que atuam?
T: Já fiz várias coisas diferentes. Fiz trabalho voluntário em várias organizações, como a ILGA ou a Rede Ex Aequo e envolvi-me na campanha pela mudança de nacionalidade. De um modo geral, envolvo-me numa data de iniciativas que se passam na cidade...
J: Acho que o teu maior atributo [Tiago] passa mesmo pelo discurso no dia-a-dia.
Deixem-me trazer para a conversa uma publicação recente do Fado Bicha, assinada por ti, Tiago, à saída do CheckpointLX e sobre a importância da realização de testes regulares (VIH, HPV, clamídia ou gonorreia). Ativismo não é apenas abanar uma bandeira...
T: Acaba por ser uma postura. Fiz os testes e pensei, já que temos uma mini plataforma, deixa-me passar a mensagem. Se puder causar impacto numa pessoa que seja, já é ótimo.
J: Eu tenho um projeto de educação da Rede Ex Aequo em que vou às escolas, qualquer escola e inclusive Universidades, falar sobre estas questões LGBT.
Como é que é falar com miúdos sobre estes temas? Há uma maior recetividade de uma criança em comparação com um adulto?
J: Sem dúvida, e é muito engraçado. Já aconteceu algumas vezes ser mais difícil falar com os professores. Situações em que todos os alunos concordam, mas o professor levanta o dedo em sinal de discordância. É tão engraçado ter, depois, e eu nem preciso de intervir, dez miúdos a levantar a mão para responder ao professor.
Mas ainda somos uma sociedade homofóbica?
J: Claro. Existe muita homofobia, muita passivofobia, muita discriminação em relação aos homossexuais afeminados. Ainda trazemos para a comunidade LGBT as normas do mundo heterossexual. Podes ser gay, mas quanto mais masculino fores melhor.
Vocês vão participar na Conferência "O homem promotor da igualdade - Homens e mulheres lado a lado pela igualdade de género", a 15 de novembro. Farão parte do painel "Heteronormatividade e cisnormatividade", sob o ângulo "Linguagem contranormativa numa arte conservadora". Não podemos começar por simplificar a forma como nos referirmos a estas questões. A linguagem não é ela própria uma barreira à compreensão e à comunicação?
J: São quase termos médicos.
T: Há contextos. Não podemos planear tudo o que dizemos ou qualquer intervenção como se fossemos falar para um grupo de miúdos. Há contextos e falamos de maneiras diferentes nesses contextos. Depois há termos como "heteronormatividade" ou "cisnormatividade" que podem parecer, à primeira vista e a quem não os conhecer, complexos e difíceis de compreender. Mas uma vez explicados... Até para que a pessoa possa entender na sua própria experiência e como é que ela se relaciona com esses fenómenos em sociedade. Acho que é por aí. As pessoas que irão a essa palestra, mesmo que não saibam o que é, espero que saiam a entender.
J: A questão é: quem não sabe e à partida não vai à conferência, como é que pode compreender?
T: Como é que tu dizes "heteronormatividade" sem dizer a palavra "heteronormatividade"? Poderá haver maneiras... não digo que não haja. Mas só a "normatividade" já é algo que pode ser complicado de entender ou de fazer passar.
E o que é que podemos esperar da vossa participação no painel?
T: O Ângelo [Fernandes] convidou-me a mim, inicialmente. Depois de ler o título, e entendê-lo [risos], achei interessante que o João fosse também. E propus ao Ângelo, não porque somos o Fado Bicha e onde vou o João tem de ir, mas porque acho que neste contexto, neste tema, podíamos trazer abordagens complementares. Porque temos os dois experiências de vida muito diferentes no que toca à expressão de género, à vivência da nossa orientação sexual… experiências que acabaram por se cruzar e aprendemos um com o outro. Vamos levar ainda a nossa experiência enquanto artistas e as barreiras que se nos levantam — e que já se levantavam antes de começarmos o projeto, e que se inserem nesse contexto de heteronormatividade e cisnormatividade.
"Ainda trazemos para a comunidade LGBT as normas do mundo heterossexual. Podes ser gay, mas quanto mais masculino fores melhor"
Podem adiantar um pouco da vossa experiência individual?
T: Para mim este projeto, o que ele me permite e o que lhe permito, acaba por ser uma materialização a nível da expressão de uma não normatividade que senti desde sempre na minha vida, desde que me entendo como género: que é não me identificar como homem. Auto-identifiquei-me como homossexual muito cedo, tinha 12-13 anos, a primeira vez que disse "acho que sou gay", que pensei "nunca ninguém vai poder saber" ou "vou morrer de SIDA"... uma série de mitos. E arrumei a questão de género na minha cabeça. Só mais tarde, bastante mais tarde, já nos vinte e tais, é que recomecei a pensar na minha experiência de género. Passados uns tempos, acabei por me assumir, para mim próprio, como agénero. É essa a minha identidade atual.
Para quem não sabe o que é agénero, podes explicar?
T: Agénero é uma identidade de género em que a pessoa, neste caso eu, sente que não se identifica com nenhum género criado socialmente — nem com homem, nem com mulher, nem com nenhum dos outros. Basicamente é uma pessoa sem identidade de género. O meu género sou eu.
Quero durante as palestras organizar as ideias e o discurso de forma a passar exatamente isso. Como é que esta experiência do projeto Fado Bicha me permitiu experimentar uma concretização física e visual de uma experimentação de género que eu nunca tinha feito até então.
Num caso concreto, quando és obrigado, por exemplo, numa ficha ou num boletim, a preencher um género. Que opção colocas? E quando a opção é limitada, portanto binária?
T: Masculino, porque é o meu sexo oficial e o que está no cartão de cidadão. Mas por exemplo, quando fui o CheckpointLx — eles fazem parte de um estudo europeu que está a ser realizado —, tive de preencher uma ficha e mesmo aí tinha masculino, feminino e trans. E disse que trans não é um género. Trans pode ser masculino, feminino ou mais do que isso. O enfermeiro que estava comigo acabou por assumir que sabia mas que era assim que estava. Mas já se encontra em Portugal, inscrevi-me para uma conferência há uns meses e tinha opção masculino, feminino e outras.
Essa é opção mais correta?
T: Eu pergunto-me, "para quê?". Para quê perguntar o género? Há pessoas a escrever sobre isso e a fazer ativismo. Não é uma coisa preto no branco, mas devíamos reconhecer as pessoas que não se identificam com o género masculino ou com o feminino. Não sei qual seria a formulação, mas já que o Estado obriga a esse reconhecimento ao menos que [individualmente] seja reconhecido o seu género verdadeiro e não apenas se nasceram com pila ou com vagina.
O que é preciso fazer para Quebrar o Silêncio?
J: Acho que a palavra-chave é visibilidade. Costumo dar isto nas escolas... É como se fosse um ciclo em que existem três pontos: o insulto, a invisibilidade e o isolamento. Faço nas escolas mas é aplicável na sociedade. Se oiço os meus colegas todos a insultar, mesmo que seja direcionado, vou tentar ser transparente, nunca vou dizer que sou homossexual, o que cria isolamento. Esse isolamento vai criar invisibilidade e consequentemente sofrimento, depressão e tudo mais. Para quebrar o ciclo é preciso visibilidade, ao assumirmo-nos na nossa família, no nosso trabalho... as pessoas vão criar uma empatia com a nossa experiência e vão deixar de insultar e começar a ter outra linguagem. Por isso é que as paradas e as marchas gay são tão importantes, não são exibicionistas, dão visibilidade.
T: Queria só acrescentar a empatia. Falo muito nos concertos e estou sempre a insistir para que o João faça o mesmo porque ele fala muito bem. Para mim é importante trazer a minha história de vida precisamente por isso. Projetos como o nosso, ou outros, trazem essa experiência. Claro que temos de provocar, mas criar pontos de empatia entre as pessoas é fundamental.
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