Que arquitetura teremos depois da covid-19?
Há quem diga que o vírus não tem ideologia, mas tem, de facto. O vírus da covid não vai transformar o sistema capitalista — quando muito vai obrigá-lo a adaptar-se; o vírus veicula uma mensagem ideológica. Aquilo que vai acontecer — a transformação da cidade, da habitação, dos próprios edifícios — corresponde a uma estratégia e a uma transformação que já vinha de trás e já estava em curso. Concretamente, em Portugal, diria que pelo menos a partir do ano 1998, o ano da Expo em Lisboa.
Estas questões já se têm desenvolvido e irão cada vez ser mais implementadas. Agora, o que há, sim, à saída da covid, é uma transformação sobretudo ao nível das pessoas. A experiência traumática das consequências do vírus e da maneira brutal e inesperada como se abateu sobre o planeta — e concretamente sobre o nosso país —, uma pandemia tardiamente declarada como tal pela Organização Mundial de Saúde. Obviamente, quanto mais aumenta a mobilidade do planeta, mais a questão do contágio é fulgurante.
Hoje, a primeira grande consequência da declaração de pandemia foi parar praticamente, pôr todos os aviões em terra e parar a mobilidade, obrigar as pessoas a estar em casa e fazer o tal confinamento.
Essa experiência [do confinamento], que é de facto muito brutal, é uma espécie de corte enorme na vida quotidiana, de que não há memória no planeta — tão abrangente e tão intensa. Essa [experiência] sim, está a produzir fenómenos com efeitos sensoriais, psíquicos e em certa medida a chamar a atenção das pessoas para coisas que, embora até já fossem conhecidas, não eram sentidas tão proximamente.
A história das pandemias e das epidemias desde sempre tem uma característica um pouco estranha, inesperada: é que uma vez ultrapassada a pandemia, gera-se progressivamente uma grande amnésia sobre o que se viveu — ao contrário de uma guerra, por exemplo, que deixa memórias muito marcantes.
Para dar como exemplo o que aconteceu com a grande pandemia, que coincidiu com a guerra de 1914-18, a I Guerra Mundial, e que matou mais gente do que a própria guerra. Há uma observação muito curiosa: a Europa e o resto do mundo estão pejados de monumentos aos mortos da I Grande Guerra, incluindo no nosso país, encontra monumentos aos mortos da primeira guerra em pequenas vilas da província, para não falar das grandes cidades — na avenida da Liberdade há um, e ainda hoje se celebra a parada.
Mas não há um único monumento, em nenhum país nem em nenhuma vila, nem em nenhuma cidade que se saiba, dos mortos da Gripe Espanhola — o que quer dizer que de facto há uma espécie de amnésia que se projeta sobre isso.
E percebe-se, porque os tempos são de sofrimento e tempos de compressão, e, neste caso, de confinamento, que é uma coisa terrível, porque obriga as pessoas a estarem confinadas, muitas vezes em situações extremamente chocantes e difíceis de gerir. Há uma experiência que é traumática, difícil — de resto, nota-se que assim que é dado um sinal de abertura, as pessoas têm tendência a passar do zero para o tudo, do oito para o oitenta, o que é absolutamente natural.
As pessoas que, por exemplo, têm a sorte de ter uma casa na província e que conseguem viver este período numa pequena aldeia, onde o risco do bicho chegar é baixíssimo.
Qual o impacto da pandemia nos arquitetos?
Nós tínhamos saído há muito pouco tempo de uma crise, essa sim terrível, e eu creio que com consequências mais alargada e abrangentemente graves do que esta — espero eu, porque quero manter um otimismo moderado sobre a sobrevivência da arquitetura e dos arquitetos a esta crise, embora consciente de que vai haver consequências.
Uma das mais pesadas consequências da crise de 2008-09, a famosa crise do 'subprime', foi a enorme diáspora dos arquitetos, sobretudo os jovens, que tiveram de abandonar o país, porque Portugal estava claramente a ser sacrificado com a política da 'troika', do ponto de vista económico-financeiro, e encontraram mercados acolhedores ao longo e toda uma Europa que, obviamente, não estava a sofrer essa crise.
Hoje, essa motivação para mais uma emigração não teria muito sucesso, porque esta crise está a afetar a Europa toda por igual, portanto, sair daqui e ir para onde?
O isolamento faz-nos reparar mais nos espaços onde estamos?
Ser-se forçado e confinado a viver numa casa desencadeia mecanismos quase espontâneos de perceção das limitações — ou das potencialidades — de aspetos da habitação, que no dia a dia não eram sequer sentidos. Essa experiência dramática, por ser forçada e intensa, mostra que há casos e casos e isso é sentido nas diferentes camadas sociais. Quem vive precariamente está muito mais vulnerável ao vírus; para não falar dos sem-abrigo, que nem casa têm.
Daí até à casa de classe média, a moradia de uma classe mais alta, que tem um terreno à volta com piscina, com jardim, onde consegue gerir este tempo com outra qualidade de vida. Obviamente, há diferenças muito grandes. Estas questões, sim, estão a fazer-se sentir de uma maneira mais forte.
Por exemplo, na habitação coletiva, na habitação de dimensão mais reduzida, questões que a arquitetura tem meios para poder melhorar, claramente.
Devo dizer que essa questão também já vinha de trás. Os programas que estão neste momento em curso para a implementação da chamada habitação da renda acessível, pelo menos em Lisboa já partem de pressupostos programáticos que exigem determinadas condições que já vêm antes da covid: ter um mínimo de exposição solar em todos os compartimentos da casa durante o dia; evitar casas que só tenham janelas para norte, porque já se sabe que essas recebem pouco sol; como, até, uma lógica de as áreas e de os espaços de habitar serem mais generosos, para se poder, de algum modo, não só ter condições de maior privacidade, como também poder estar em casa, permanecer o dia todo em casa e ao mesmo tempo ter espaço para trabalhar e ter uma mesa, um computador — porque esta é uma consequência de que agora toda a gente fala, mas já vinha de trás.
Mesmo os espaços de escritórios poderão reduzir, porque se o trabalho começa a ter alguma dispersão em casa das pessoas, poderá haver aí um redimensionamento. Os próprios escritórios podem também aproximar-se da residência, sobretudo para as pequenas e médias empresas e de trabalho partilhado.
O vírus só veio obrigar as pessoas a saírem de si e a estarem mais atentas às consequências negativas de um modelo de evolução deste planeta que caminhava a passos largos para a autodestruição.
Esta paragem forçada pode levar também a um repensar da compartimentalização do centro das cidades, para que fossem postos ao serviço do turismo e não tanto da habitação?
Essa questão do turismo também já vinha de trás. Talvez a covid tenha contribuído para muitas pessoas se darem conta do que se estava a passar — mas não só já vinha de trás o problema, como já vinham de trás algumas medidas para o resolver ou enfrentar.
A globalização não vai parar, vai provavelmente transformar-se e isso já é um indicador bom. A pressão é que a globalização cada vez mais não seja apenas económico-financeira, mas que comece a pensar noutro tipo de questões, como a atenção ao planeta, ao espaço onde vivemos, à qualidade, à sensibilidade, e eu diria, até, à própria solidariedade, que é um pouco o antídoto da concorrência desenfreada e exclusivamente financeira.
Há um fenómeno, esse sim muito empurrado pela covid-19, que estou a querer acreditar, se calhar num otimismo ainda não comprovado, que finalmente a Europa se vai comportar como um continente que não é apenas do euro, do dinheiro e da finança, mas que também é um continente da solidariedade.
As eleições para a Ordem dos Arquitetos arrancaram nesta quarta-feira, 17, e contam com quatro nomes à frente das listas — Daniel Fortuna do Couto, Cláudia Costa Santos, Célia Lourenço e Gonçalo Byrne. O processo prolonga-se até ao dia 26 deste mês e introduz alterações na própria estrutura da instituição.
O SAPO24 foi conhecer as propostas, mas, sobretudo, aquelas que anteveem ser as mudanças na forma como as casas, as cidades e a própria profissão vão refletir os efeitos da pandemia: do confinamento, do distanciamento e do turismo.
Para ler também:
- Daniel Fortuna do Couto: Não devia ser permitido "fazer habitação sem pelo menos duas frentes"
- Cláudia Costa Santos: "Vamos ser obrigados a aumentar o metro quadrado por pessoa para manter as distâncias de segurança"
- Gonçalo Byrne: "Os escritórios podem também aproximar-se da residência, sobretudo para as pequenas e médias empresas"
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