O Corpo Nacional de Escutas (CNE) está a dinamizar um processo de debate e reflexão interna que conduzirá à elaboração de um plano de formação sobre afetividade, onde se incluem questões como homossexualidade, igualdade de género, namoro ou relações pré-matrimoniais — soube o 7MARGENS em primeira mão.
“Identificámos um risco de a fé se tornar irrelevante nas vidas dos jovens, na dimensão afetiva. Por isso começámos a perguntar como é que a fé cristã é capaz de iluminar essas realidades”, diz o padre Luís Marinho, 49 anos, assistente nacional dos escuteiros católicos e responsável direto por este processo. “Quando ouvimos os jovens dirigentes [22 aos 33/34 anos] e os caminheiros [18-22 anos], reconhecemos o submundo destas questões e a necessidade que eles sentem de ter um espaço onde sejam ouvidos abertamente”, acrescenta.
Não se trata de dizer que o CNE se vai abrir ou fechar a determinadas questões a partir daqui. “O essencial é pensarmos como crentes”, insiste Luís Marinho, de modo a que os jovens “possam ser acompanhados em todas as questões que vivem” sem se sentirem marginalizados. Caso contrário, “corremos o risco, como CNE e como Igreja Católica, de nos tornarmos irrelevantes na existência concreta dos jovens, nas questões da afetividade e sexualidade”.
O processo, baptizado como Entre Linhas, pretende, como objetivos a curto prazo (alguns meses, um ano) delinear módulos de formação para todos os níveis de formação dos dirigentes; a ideia é torná-los capazes de acompanhar crianças e jovens que vivam situações como as referidas sem serem proscritos ou marginalizados.
Esse plano de formação destina-se a ser aplicado em todo o país e em todas as 20 regiões em que o CNE está implantado (equivalentes às 20 dioceses territoriais do país). Para os cerca de 70 000 associados dos 1002 agrupamentos activos neste momento, serão também previstas várias atividades relacionadas com as temáticas indicadas, disponibilizadas ferramentas e organizadas sessões de formação. Dentro de alguns meses (entre o final deste ano e o início de 2023), o CNE propõe-se organizar um seminário nacional aberto a todas as pessoas interessadas nestes temas. Finalmente, um documento geral ficará como guião para o trabalho do CNE nesta área.
A ideia é sintetizada deste modo num documento dos escuteiros católicos: “A sexualidade, como espaço de identidade e relação, dimensão integrante de cada jovem, que o define e condiciona no seu crescimento, é hoje um campo educativo que reclama uma atenção especial por parte do CNE sempre preocupado em apresentar leituras da realidade e propostas educativas relevantes em linha com os questionamentos de cada tempo e geração.”
Para isso, diz ainda o mesmo texto, o CNE constituiu um grupo de reflexão sobre a sexualidade humana, “tendo em conta dimensões como: natureza, cultura e liberdade.” E justifica o documento: “Pretendemos uma análise aberta e atenta às várias linhas de pensamento, explorando toda a amplitude desse espaço. Não queremos seguir apenas uma única linha de reflexão e ação, mas antes, procuramos aprofundar, na complementaridade de diversas dimensões constitutivas da condição humana, uma reflexão cristã acerca da afetividade e sexualidade humanas e, a partir dessa mesma reflexão, desenhar itinerários de formação no contexto do CNE.
As preocupações dos jovens
Este processo, iniciado em outubro de 2020, começou com conversas com vários especialistas – alguns dos quais não-católicos – e incluiu já encontros de jovens escuteiros.
Um inquérito digital permitiu ainda perceber as preocupações dos jovens escuteiros, em si mesmos ou nos jovens seus amigos. Entre os temas que mais apareceram, estavam a homossexualidade e a perceção que têm do olhar da Igreja sobre esse assunto; as questões de género, ou o divórcio entre o discurso eclesial (ou pelo menos a compreensão que têm sobre esse discurso) e as suas práticas quotidianas.
Notava-se também, resume o assistente nacional do CNE na conversa com o 7MARGENS, uma “grande dificuldade com os conceitos: género, transição de género, LGBTI…” Para muitos, “falar de homossexualidade é o mesmo que falar da questão de género”, exemplifica ainda. Esta confusão “acentua ainda mais a imensa dificuldade de compreensão do discurso eclesial”, admite o assistente religioso do CNE.
Das conversas com especialistas destacou-se a “necessidade de espaços para discutir e aprofundar estes assuntos, com pluralidade de perspetivas que ajude a compreender do que estamos a falar”. Todos sublinharam a importância do processo que o CNE decidiu encetar, acrescenta Luís Marinho, e vários notaram que, “mesmo no espaço académico, há pouco diálogo”.
Nesta que foi até agora uma “etapa de escuta” dos jovens e de especialistas, participaram um casal homossexual e personalidades de áreas como a antropologia, políticas públicas, sociologia, ciências médicas, antropologia cultural, direito ou teologia moral. Entre os nomes que já debateram com os responsáveis do CNE por este processo estão os da ex-presidente da Comissão para a Igualdade de Género, Teresa Fragoso; o antropólogo Miguel Vale de Almeida; a psiquiatra Zélia Figueiredo, que tem acompanhado processos de mudança de género no Hospital Magalhães Lemos, do Porto; a socióloga Lígia Amâncio; a psicóloga clínica Fabrizia Raguso; a diretora do gabinete em Genebra do Fundo das Nações Unidas para a População, Mónica Ferro; a psicóloga Olga Cunha; a professora da Faculdade de Medicina do Porto, Susana Sá; o jurista Pedro Vaz Patto; e o teólogo Aristide Fumagalli (Milão), autor, entre outros, do livro Caminhar no Amor – A teologia moral do Papa Francisco (ed. Paulinas).
Processos paralelos
Da Universidade Católica, cuja Faculdade de Teologia é parceira do CNE neste processo, têm estado envolvidos também os professores João Manuel Duque, Jerónimo Trigo, António Martins ou Juan Ambrosio, que assume também o papel de coordenador pedagógico do projeto. O outro parceiro é o Secretariado Nacional da Educação Cristã, que coordena ações pedagógicas e educativas da Igreja Católica.
“Queremos criar um espaço de reflexão articulada e com alguma profundidade”, diz ainda o padre Luís Marinho. “A proposta cristã é parte integrante de uma vida com sentido. Todas as questões ligadas à afetividade se enraízam na questão de saber como cada um é protagonista de um projeto de vida com sentido.” E sendo o escutismo um movimento que “pretende formar cidadãos e cristãos ativos, a perspetiva desta dinâmica é mais ampla do que descer apenas aos casos sacramentais ou às regras da Igreja”, acrescenta. Não se trata, concretiza, de fazer qualquer “regulamento nem disciplina da Igreja” para os jovens, mas de possibilitar uma “reflexão aprofundada” sobre estes temas.
Há dois processos paralelos com os quais esta dinâmica do CNE não deixará de procurar envolver-se: desde logo, a Jornada Mundial da Juventude de Lisboa 2023. “Ainda não falámos sobre isto com a organização, mas desde o início toda esta reflexão, que fazemos enquanto católicos, é para se fazer e articular com instâncias institucionais da Igreja”, explica Luís Marinho. “Enquanto movimento educativo católico, sentimos a urgência de se fazer uma reflexão deste género, que leve a práticas educativas coerentes” e que dê aos jovens a necessária "consciência crítica perante debates da sociedade”.
Outro processo com que esta dinâmica se deverá cruzar é o do Caminho Sinodal, que terá um ponto chave no Sínodo dos Bispos de 2023. “É uma coincidência feliz: damo-nos conta de quanto este projeto é uma experiência sinodal, que se põe à escuta para procurar caminhos mais fecundos e mais relevantes para os jovens e a sua experiência de fé.”
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