Não é consensual, mas há quem considere que não há temas proibidos no que toca ao humor — e nem a religião escapa. Por exemplo, em dezembro de 2019 o programa humorístico Porta dos Fundos lançou um especial de Natal na plataforma Netflix, com o título “A primeira tentação de Cristo”, na qual Jesus é representado como um jovem que terá tido uma experiência homossexual e também insinua que o casal bíblico Maria e José viveram um triângulo amoroso com Deus.

A sátira, de 46 minutos, protagonizado pelos humoristas brasileiros Gregorio Duvivier e Fábio Porchat, não agradou a grupos religiosos, que criticaram a temática. A produtora foi até alvo de um ataque com 'cocktails molotov', reivindicado por um grupo de extrema-direita.

Foi também lançada uma petição contra o filme, com mais de dois milhões de assinaturas de pessoas que consideraram que a obra “ofende gravemente os cristãos”.

Já em dezembro de 2021, um outro programa de temática religiosa (“Te Prego Lá Fora”, um exclusivo da Paramount+) surgiu na mesma produtora. Em entrevista ao SAPO24 a propósito da série documental para a RTP baseada na obra “Viagem a Portugal”, de José Saramago, Fábio Porchat imaginava como o Nobel português iria reagir a estas polémicas. "O argumento de que você não pode falar porque é um assunto religioso é um argumento que não faz sentido e que ainda perdura. Então, acho que ele diria para mim: 'Não é novidade, eu já sabia disso'”, frisou na altura.

Ateu assumido, Porchat lembrava nessa conversa que a"O Evangelho segundo Jesus Cristo" serve como base para tudo o que faz na Porta dos Fundos com temas religiosos. "Volta e meia, quando escrevo os especiais de Natal, mando para pastores ou padres lerem e para ouvir a sua opinião. E eles me perguntam: 'Fábio, como é que você pensa uma coisa destas? Que olhar é esse?'. Falo que é o olhar de quem não acha isso sagrado, de quem acha que é um acontecimento histórico".

Por cá, Ricardo Araújo Pereira, ateu com formação cristã, não hesita em fazer piadas com temática religiosa. "Eu sou um ateu que não vacila. O facto de eu entabular esse diálogo com frequência não significa que tenha alguma reserva relativamente ao meu ateísmo, não se trata disso. Eu nem sequer sou agnóstico, sou mesmo ateu. Isso não significa que o diálogo não seja possível. Talvez seja uma questão de formação", disse em entrevista à Rádio Renascença.

Mas também há casos em que o riso nestas temáticas atrai fãs, como é o caso do sucesso dos filmes "Do Cabaré para o Convento", protagonizados por Whoopi Goldberg, que desempenhou o papel de uma cantora que se disfarça de freira. Neste caso, a atriz encontrou-se com o Papa Francisco no ano passado e referiu que o pontífice "até parece ser fã do filme". Numa conversa com  Jimmy Fallon, Whoopi frisou que teve até oportunidade para perguntar se Francisco gostaria de fazer uma participação especial num próximo filme — e a resposta foi semelhante a um "veremos como será o meu tempo até lá".

Fábio Porchat, Ricardo Araújo Pereira e Whoopi Goldberg estiveram presentes, esta sexta-feira, num encontro do Papa Francisco com 105 humoristas de todo o mundo no Vaticano, promovido pelo Dicastério para a Cultura e a Educação — liderado pelo cardeal D. José Tolentino Mendonça — e pelo Dicastério para a Comunicação.

No que diz respeito aos portugueses no encontro, além de Ricardo Araújo Pereira participaram Joana Marques e Maria Rueff. Um vídeo publicado pela Rádio Renascença nas redes sociais mostra o momento em que os três cumprimentaram o Papa Francisco.

Um Papa que valoriza o humor

Considerando que o próprio Papa Francisco não hesita na hora de dizer piadas sobre os mais diversos temas — como no caso em que disse que os brasileiros não têm salvação porque "é muita cachaça e pouca oração" ou quando brincou com os problemas no joelho, que só acontecem "com os velhos" —, não é de espantar que queira dirigir algumas palavras a quem tem no humor objeto de trabalho. Por isso, o encontro serviu para promover o diálogo entre a Igreja Católica e os humoristas.

Com esta iniciativa, o chefe da Igreja Católica pretendeu “celebrar a beleza da diversidade humana e promover uma mensagem de paz, amor e solidariedade”.

Já num encontro com artistas, em junho de 2023, o Papa disse que os humoristas, nomeadamente os atores, artistas, cartoonistas, escritores, têm “a capacidade de sonhar novas variáveis para o mundo”, através da ironia, que é “uma virtude maravilhosa”.

E também não é segredo que o pontífice reza, todos os dias, a "oração a pedir o bom humor", de S. Thomas More, que hoje também foi rezada no encontro com os humoristas.

Antes disso, Francisco questionou se “é possível rir também de Deus?”, dando de imediato a resposta: “É claro que sim, isto não é blasfémia, assim como brincamos e fazemos piadas com as pessoas que amamos. A tradição sapiencial e literária hebraica é mestra nisso! Pode ser feito, mas sem ofender os sentimentos religiosos dos fiéis, especialmente dos pobres”.

Segundo o Papa, “o humor não ofende, não humilha, não cola as pessoas aos seus defeitos” e, dirigindo-se aos humoristas presentes, disse que eles “denunciam os excessos do poder, dão voz a situações esquecidas, evidenciam abusos, apontam para comportamentos desadequados”.

“O que vou dizer a seguir não é uma heresia: quando conseguem fazer com que sorrisos inteligentes brotem dos lábios, mesmo de um só espectador, vocês também fazem sorrir Deus”, disse Francisco, sublinhando que o riso “ajuda a quebrar as barreiras sociais”.

Para o pontífice, é necessário aprender com os humoristas, pois “o riso do humor nunca é contra alguém, mas é sempre inclusivo, proativo, desperta abertura, simpatia e empatia”.

Na sua intervenção, no Palácio Apostólico, o Papa exortou os humoristas a continuarem a “animar as pessoas, especialmente aquelas que têm mais dificuldade em encarar a vida com esperança”.

Depois desta mensagem do pontífice, a humorista Joana Marques referiu à RR que este foi um "bom recado para a humanidade e que vai acabar com muitas discussões, que não dão em nada". "Sim, pode-se rir de tudo: umas pessoas podem gostar e outras nem tanto, mas não deixa de ser só isso", lembrou.

A humorista considerou também “muito emocionante” ouvir o Papa afirmar que é “importante fazer rir os outros” e que isso “pode ajudar pessoas em alturas complicadas das suas vidas”.