Diz que sofre de curiosidade crónica. E que tem cabeça de economista, ainda não consegue pensar com cabeça de político. Tem uma certeza: "É possível criar estímulos e mudar as coisas". "Há um dado que uso muito, e que para mim seria daqueles quase suficiente para qualquer pessoa se meter na política: Portugal é, há demasiados anos, um dos recordistas europeus no consumo de ansiolíticos. A cada momento, 40% da população acabou de tomar, está a tomar ou vai tomar ansiolíticos, uma coisa para a depressão, para a angústia, para o mal-estar geral e a tristeza. Que raio de sociedade criámos em que a única maneira que as pessoas têm de conseguir funcionar, de passar de dia para dia é com ansiolíticos? Não é normal".

O discurso é de João Cotrim de Figueiredo, o deputado eleito pelo Iniciativa Liberal a 6 de outubro. "Não será novidade que não teremos força parlamentar para assegurar que as nossas propostas passem" - o partido teve, aliás, uma conversa sobre logística com André Silva, do PAN - "mas faremos o possível para as fazer passar e para convencer outros grupos parlamentares a aderir ao que quer que venhamos a propor. A primeira batalha desta luta é implantar ideias liberais na agenda. Nunca houve liberalismo em Portugal, nem no tempo do liberalismo, no séc. XIX, muito menos o liberalismo que a Iniciativa Liberal personaliza, que é um liberalismo moderno. As ideias que defendemos não são tiradas do ar, todas elas existem noutros países e todas foram implementadas com sucesso, é importante que as pessoas percebam isso".

Algumas destas medidas já são conhecidas, como uma taxa única de IRS de 15% ou um seguro de saúde obrigatório para todos, uma espécie de ADSE, ou a liberdade de escolha da escola dos filhos. Mas há muito mais, como avança João Cotrim de Figueiredo ao SAPO24. O Estado, esse, estará sempre lá como regulador e nunca perderá o seu papel de garante.

O deputado do Iniciativa Liberal salta das empresas para a política. Numa entrevista à Sábado, de 2015, conta que em junho de 1976 andava por Lisboa a vender cabides "Manequim" porta-a-porta. Eram da marca fundada pelo bisavô João Pinto Figueiredo. Estudou na Escola Alemã de Lisboa, formou-se em Economia pela London School of Economics, em Londres, e de volta a Lisboa tirou um MBA em Administração, Negócios e Marketing, na Universidade Nova de Lisboa. Depois, liderou a Compal e a Nutricafés, passou pela Privado Holding, dona do BPP, já depois da intervenção do Estado, esteve na direcção da TVI e foi presidente do Turismo de Portugal. Agora, um novo desafio: a Assembleia da República. E uma garantia: "Nunca faria alianças com alguém que fosse estatizante, que achasse que a liberdade individual é uma piada".

Tive, de repente, a visão do Estádio da Luz com mais de 60 mil pessoas a olhar para mim com expectativa. Fez-me sentir pequenino

O que pensou imediatamente a seguir a perceber que tinha sido eleito deputado à Assembleia da República?

Estávamos a seguir os resultados com muita atenção, como é natural, e já sabíamos, nessa altura, que tínhamos ultrapassado os 60 mil votos. E eu tive, de repente, a visão do Estádio da Luz com mais de 60 mil pessoas, não a aplaudir, mas a olhar para mim com expectativa. A responsabilidade que isso dá faz-me sentir muito pequenino. Mas abraço com grande alegria esta oportunidade que me deram.

Uma provocação: a imagem do Estádio da Luz é uma tentativa para conquistar simpatia ou, afinal, o Iniciativa Liberal e o PS de António Costa têm algumas afinidades?

Apenas não me lembrei de outro sítio que levasse 65.545 pessoas. Nunca misturamos política com futebol.

Cerca de 860 mil votos não serviram para eleger ninguém. No caso do Iniciativa Liberal, 58,55% dos votos no partido foram "perdidos". Faz sentido?

Essa é uma das características de qualquer método proporcional e do de Hondt em particular. Muitos votos, especialmente quando há uma multiplicidade de candidaturas, não elegem o primeiro mandato ou o mandato seguinte. Só há uma maneira de alterar isso: introduzir um círculo nacional que apanhe, como disse, os votos desperdiçados, e passe a dar-lhes um tratamento proporcional. Isso ajudaria a que não houvesse desperdício de votos e ajudaria a corrigir algumas das assimetrias de representatividade que este Parlamento vai ter.

Portanto, uma das propostas do Iniciativa Liberal é alterar o sistema eleitoral?

Temos isso no nosso compromisso eleitoral, de facto. Ter um conjunto de círculos uninominais complementados com um círculo nacional único, suficientemente grande para corrigir as desproporcionalidades que são geradas no círculo uninominal, tentando obter o melhor dos dois mundos: relação directa entre quem elege e o deputado e a garantia de que as várias opiniões que os portugueses expressam estão representadas no Parlamento.

A proposta do Iniciativa Liberal prevê mexidas no número de deputados?

Não. Neste momento, com o número de pessoas inscritas - e penso que, de uma vez por todas, devia-se auditar os cadernos eleitorais, uma conversa que aparece volta e meia, mas nunca se conclui - admitindo que temos os tais 9,3 milhões de eleitores recenseados, 230 deputados dá cerca de 40 mil eleitores por deputado, o que me parece uma dimensão aceitável. Há países com menos, mas também há países com mais, não me parece que seja esse o problema. Seria demagógico estar a argumentar com o custo para mexer de 230 para 210.

A menos que o tema da abstenção eleitoral seja daqueles que as pessoas gostam de tratar na véspera da noite eleitoral e depois passa ao esquecimento, Portugal é pródigo nisso, o que nos devia levar a pensar

Qual é o problema?

A crise de representatividade e de proporcionalidade, essa sim, merece discussão. Portanto, a reforma do sistema eleitoral é um assunto que deve estar em cima da mesa. Além disso, obriga, nalguns dos modelos que vão ser discutidos, à revisão constitucional, ou seja, a que haja entendimentos entre os grandes partidos. Faremos o possível por pôr o tema na agenda - penso que outros o farão também. Vamos ver se há recetividade dos grandes partidos para discutir isso. A menos que o tema da abstenção eleitoral seja daqueles que as pessoas gostam de tratar na véspera da noite eleitoral e depois passa ao esquecimento,  Portugal é pródigo nisso, o que nos devia levar a pensar. Há outro tema em que se passa mais ou menos o mesmo, que é o da corrupção e das suas formas derivadas, como o compadrio ou as cunhas. Fala-se nisso há 20 anos, já houve discussões mais ou menos profundas por várias comissões, algumas relativamente completas e fundamentadas, mas a verdade é que muito pouco se fez nesse domínio.

Achei curioso que a corrupção não estivesse na linha da frente dos programas partidários. Porquê?

Não fiz uma leitura comparada. A abordagem da Iniciativa Liberal ao tema da corrupção não pode ser confundida com a de outros, que acreditam que vão pegar nisto do ponto de vista demagógico, para tentar dar resposta àquela opinião vox populi de que "eles [políticos] são todos iguais", "são todos ladrões". A nossa opinião é a de que todos devem ter acesso às oportunidades e os melhores devem ficar com os cargos ou com os contratos. Para o bem de todos. Qualquer mecanismo que deturpe isto está a prejudicar a sociedade como um todo e a sua capacidade de desenvolvimento. É muito nesse sentido que encaramos as coisas e é nesse sentido que estanhamos esta inactividade passados 20 anos.

quanto mais poderes concentrados em pessoas que os têm por nomeação, por fazerem parte do Estado, mais oportunidades há para que essas decisões não sejam totalmente meritocráticas

Isso não se torna difícil, quando a Procuradoria-Geral da República, ou o conselho superior do Ministério Público, vem dizer que não vê ilegalidades nos negócios familiares do governo?

Há dois planos onde podemos fazer avanços concretos nessa matéria. Um é a forma como o sistema está montado - e espero que me entendam, não quero dar conotações mais tenebrosas do que elas possam ser: quanto mais poderes concentrados em pessoas que os têm por nomeação, por fazerem parte do Estado, mais oportunidades há para que essas decisões não sejam totalmente meritocráticas. Só a nossa posição de reduzir o peso do Estado e o número de decisões que o Estado toma, reduz muitíssimo as oportunidades para que esses fenómenos ocorram. Outro, mais técnico, e também muito importante, é que se esses fenómenos existem têm de continuar a ser detetados, investigados, produzidas acusações e condenações. E, algures neste processo, muitas vezes as coisas não andam porque se trata de um crime particularmente difícil de provar.

Não têm uma proposta concreta, querem discutir diversas soluções possíveis, é isso?

Não propusemos nada de concreto em elação ao tema, mas queremos declarar a nossa disponibilidade para colocar o combate à corrupção na agenda política. E sem tabus, para voltarmos a examinar, ou para examinar pela primeira vez, várias formas de tornar essas condenações mais possíveis - já se discutiu em Portugal a inversão do ónus da prova nos casos de enriquecimento ilícito, mas é um tema a revisitar, como o estatuto do arrependido, o estatuto do denunciante, a figura de delação premiada, a possibilidade de acordos extra-judiciais promovidos pelo Ministério Público perante casos que envolvam corrupção, mas tenham outras acusações em que, mediante acordo, o acusado possa optar por ser condenado numa das acusações, os famosos plea bargain que vemos nalguns ordenamentos anglo-saxónicos. Todas estas questões têm problemas sérios garantísticos, de Direito Constitucional, até da doutrina do Direito, que não ignoramos, mas por isso não propusemos nada em concreto. A questão é simples: ou estamos a sério no combate à corrupção, e devemos ter a mente aberta para atacar o problema onde ele existe - ou não estamos a falar a sério contra a corrupção. Não quero desistir deste combate, porque para nós, liberais, este é um atentado a uma das coisas basilares numa sociedade evoluída: a meritocracia.

Preferimos dizer que nos queremos sentar o mais longe possível dos extremos

Voltando um pouco atrás, já sabe onde irá sentar-se no hemiciclo?

A nossa posição sore o anacronismo do eixo esquerda-direita é conhecida. Por isso, preferimos dizer que nos queremos sentar o mais longe possível dos extremos. É isso que vamos defender na Assembleia da República.

Qual a primeira proposta que irá apresentar na Assembleia da República?

Em princípio, e como vamos entrar numa altura que praticamente coincide com a entrada da discussão do orçamento, vão ser as nossas propostas de índole mais fiscal, nomeadamente a taxa única de IRS de 15%, que gostaríamos de implementar em Portugal. E que, aproveito para esclarecer, não é só uma medida de desagravamento fiscal, é sobretudo uma medida de simplificação fiscal - o tempo que as pessoas demoram a preencher as declarações, a corrigir e a ratificar, mais o tempo que os serviços demoram a verificar as primeiras e as segundas e as terceiras declarações, representa um valor brutal - e não estou a falar de um ou dois ou dez milhões, estou a falar de muitos, muitos milhões de euros. Além disso, tem o valor do tempo que podia estar a ser utilizado para o próprio. E de retenção de talento, porque facilmente um jovem profissional que fique no terceiro ou quarto escalão - de sete, temos sete escalões de IRS em Portugal, parece um país com um imenso leque de rendimentos - rapidamente está a pagar taxas marginais de 40%, o que é inacreditável quando na maior parte dos países com que concorremos e para onde esses talentos tantas vezes emigram não pagam mais de 20% de taxa marginal.

Pensou em que comissão ou comissões parlamentares gostaria de ficar?

Falei-lhe na corrupção e na vontade de ter esse tema outra vez na agenda, mas não há nenhuma comissão onde isso encaixe com naturalidade, portanto, teria de ser uma comissão eventual. Confesso que não sei quantos votos são precisos para a constituir e, por isso, teríamos de contar com o apoio de outros grupos parlamentares. Das que existem, aquela onde achamos que há mais necessidade de ideias liberais é na Economia [Comissão de Economia, Inovação e Obras Públicas]. Mas imagino que seja das comissões mais pretendidas e mais disputadas, portanto, teremos de ver. Temos uma lista de assuntos que nos interessava pôr na agenda e vamos ter oportunidade de falar neles nesta entrevista.

Antes de avançar, gostava de saber como se estão a organizar em termos de partido, de estudo das propostas que gostariam de levar ao Parlamento.

Na sequência da eleição, obviamente as responsabilidades e o tipo de trabalho que temos de fazer muda e a organização do partido e da presença de um deputado no parlamento também altera as coisas. Recebemos muitíssimas ofertas de colaboração durante a campanha e depois da eleição, vamos aproveitar boa parte desses contributos voluntários, agora, e vamos precisar de pessoas em muitas áreas. Isto obriga a recorrer muito a este tipo de apoio e de disponibilidade.

Não temos sede. A campanha funcionou em minha casa

Onde é a sede do IL?

Não temos sede. A campanha funcionou em minha casa.

A subvenção de campanha serve exactamente para fazer tudo aquilo que não informa, que não promove o debate: comprar materiais, t-shirts, jantares, transporte de militantes, contratação de artistas

Era mesmo necessária a afirmação do partido de prescindir da subvenção pública de campanha? Porque não prescinde do restante?

Não, nada é preciso. Esta é um boa oportunidade para esclarecer, a começar pelo financiamento geral dos partidos. Achamos que o financiamento geral dos partidos deve competir ao Estado, seria menos transparente e, nalguns casos, mais perigoso se houvesse demasiado financiamento privado, que tem de ser limitado. No caso das campanhas é diferente, não há nenhum motivo para um partido que tenha mais expressão eleitoral ter mais apoios do Estado. Nenhum. Os partidos devem partir em igualdade de circunstâncias quando apresentam as suas ideias, os que estão no sistema já têm mais exposição, como nós teremos mais exposição por estar no Parlamento. Deu-nos foi muito mais trabalho a chegar cá. E as campanhas têm já hoje limitações tão grandes sobre o que pode e não pode ser feito em termos de utilização da subvenção de campanha... As pessoas não sabem, mas a partir do momento em que as eleições são convocadas não se pode comprar espaço comercial nas redes sociais e nos meios online. A subvenção de campanha serve exactamente para fazer tudo aquilo que não informa, que não promove o debate: comprar materiais, t-shirts, jantares, transporte de militantes, contratação de artistas. E se é desequilibrado do ponto de vista do financiamento a favor dos partidos que têm mais representação, acaba por dificultar, atrasar a renovação normal das ideias e até das pessoas. Portanto, a nossa proposta é que haja uma subvenção estatal igual para todos os partidos que concorram a todos os distritos: 30 mil euros, aos quais acrescem os donativos, até um máximo de 100 mil euros. Achamos que ninguém deve poder gastar mais de 100 mil euros por campanha. Relativamente à subvenção aos partidos, ela está perto dos 3 euros por voto [só recebem a partir dos 50 mil votos, estando ou não na AR] e achamos que podia baixar para dois, chega perfeitamente. Normalmente há cinco ou seis milhões de votos expressos, o que dá uma despesa de entre 10 e 12 milhões.

temos duas propostas muito importantes, uma na área da saúde, outra na área da educação. Estas duas áreas padecem de dois problemas graves: em nenhuma delas a opinião de quem utiliza os serviços é tida em conta

Quais são as bandeiras do Iniciativa Liberal? Já falou na reforma do sistema eleitoral, na questão fiscal e, agora, na corrupção. Quais são as outras?

Uma das consequências de sermos um partido pequeno é que não nos vamos dispersar por cinquenta iniciativas parlamentares. No capítulo da liberdade de escolha temos duas propostas muito importantes, uma na área da saúde, outra na área da educação. Estas duas áreas padecem de dois problemas graves: em nenhuma delas a opinião de quem utiliza os serviços é tida em conta e, em ambas, o único financiador é o orçamento do Estado. Os serviços públicos são prestados e financiados exclusivamente pelo Estado, mas a opinião dos utentes/utilizadores/contribuintes/cidadãos não conta para o volume de investimento em cada unidade, para a evolução da carreira dos profissionais que lá trabalham, para a expansão de instalações ou de equipamentos, sejam bons ou maus, preferidos ou preteridos. Nos serviços públicos que se destinam às pessoas, a opinião das pessoas conta zero. E, pelo facto e serem financiados pelo Estado, esses serviços públicos têm uma característica terrível, tornam-se facilmente instrumentos orçamentais. Quando há um aperto, corta. Por isso temos as instalações escolares às vezes num estado lamentável e há listas de espera na saúde e dívidas a fornecedores em ambas; puro interesse orçamental. Não pode ser. As políticas de educação e de saúde não podem depender de apertos orçamentais. As nossas propostas vão no sentido de obviar estas duas características muito limitativas.

créditos: Paulo Rascão | MadreMedia

Pode começar por explicar a proposta na área da saúde, a ADSE para todos, que vários partidos tinham no programa?

A nossa proposta passa por conceber um sistema que comporte vários subsistemas idênticos à ADSE, não é uma ADSE. São diversos subsistemas concorrentes, todos de âmbito nacional, todos com a faculdade de convencionar com qualquer...

É um seguro de saúde obrigatório, é isso?

É uma espécie de seguro público obrigatório.

Mas é obrigatório?

É obrigatório e com preço igual para todos, em termos de percentual de rendimento.

E qual será esse percentual?

Não está calculado ainda porque não temos dados suficientes para fazer esse cálculo. Mas não é muito diferente do que existe para a ADSE.

Que são 3,5% do rendimento.

Não vejo que deva ser muito diferente, mas não me quero comprometer com uma percentagem sem ter os dados. Como em qualquer seguro, o equilíbrio do sistema funciona em função de todos estarem a descontar, mesmo os que precisam menos. As duas dificuldades práticas que se colocam numa transição é o que acontece aos cidadãos que não têm rendimentos - desde logo os menores, os inativos, etc. - e como se garante que, nesse período, o desconto obrigatório não onera os descontos das pessoas. Porque não é um desconto adicional. Obviamente que o sistema passa a ser financiado com um orçamento próprio, tem de sair do orçamento do Estado, logo, o IRS tem de ser corrigido em conformidade. Em velocidade cruzeiro não é difícil, no período de transição é preciso pensar. Mas não é astrofísica. As contas que fazemos relativamente à implementação da taxa única têm a ver com a actual base de IRS que alimenta o orçamento do Estado. Se o sistema de saúde tiver um financiamento autónomo, não precisa de ser coberto pelo OE. É simples desde que não haja bloqueios ideológicos, desde que possamos dizer que precisamos de ter entidades, estes tais subsistemas, que passam a ser as portas giratórias que as pessoas escolhem. Ou seja, as pessoas passam a ter critérios de escolha que são os seus e é isso que é bom numa sociedade aberta e livre: ou porque gostam das convenções, ou porque gostam do conforto, ou porque gostam da facilidade de acesso, ou do tom da comunicação... Cada um sabe de si. Para isso tem de haver concorrência.

E o que é que compete ao Estado?

Compete ao Estado garantir os fluxos financeiros - não o financiamento. A Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS) continuará a ter uma função muito importante na área da regulação, além da importância numa área que hoje é muito negligenciada, a da informação sobre os serviços que estão a ser prestados. Uma das obrigações destes subsistemas, qualquer que seja, é manter informada a ACSS numa base muito regular sobre qualidade do serviço, reclamações, convenções, profissionais à sua disposição.

O SNS, tal como está, tem duas pressões brutais que o vão fazer implodir: a demografia e o aumento de patologias com terapêuticas mais complexas e dispendiosas

Se é assim tão fácil, por que motivo nunca foram criados estes subsistemas?

Porque as pessoas insistem em meter a cabeça na areia. O SNS, tal como está, tem duas pressões brutais que o vão fazer implodir: a demografia e o aumento de patologias com terapêuticas mais complexas e dispendiosas. Se continuar a depender do orçamento do Estado, a única solução para fazer face a isto é ir aumentando impostos. Alguém que assuma isto.

O princípio será um pouco diferente para área da educação, não?

A educação é um modelo ainda mais testado. Em vez de financiar as escolas, financia-se as famílias e os alunos. Isto já foi feito com um rigor técnico bastante interessante no tempo em que havia muitos contratos de associação - que não é o modelo que defendemos, mas que é um trabalho bem feito para determinar o custo por aluno em cada nível de ensino. Depois, é dizer: se é isto que o Estado gasta, é isto que estou disposto a gastar, seja qual for a escolha das famílias. Será um cheque nesse valor que ficará à disposição. E, mais uma vez, total liberdade: a família pode escolher se prefere a comodidade, a proximidade, a abordagem pedagógica, a qualidade das instalações, o conhecimento pessoal de algum professor, a pública ou a privada, o que for. Não estamos muito preocupados com os custos, porque interessa-nos sobretudo discutir o estilo final, e só então tratar de resolver os problemas de transição, quando os houver. As pessoas ficam sempre muito preocupadas com aquilo que deixa de existir, mas nunca parecem preocupar-se com as coisas que não existem. Se se verificar que uma escola tem mais alunos interessados em frequentá-la, por qualquer motivo, essa escola vai naturalmente ter mais possibilidades de se alargar, de investir, de recrutar professores. Onde? Provavelmente nas escolas que deixaram de ter necessidade de tantos professores. A escolha é um direito que está na Constituição e na Declaração Universal dos Direitos do Homem e na Carta Fundamental dos Direitos da União Europeia, coisas que em Portugal ignoramos olimpicamente ao obrigar as pessoas a irem para a escola pública segundo a sua residência.

A escolha é um direito que está na Constituição e na Declaração Universal dos Direitos do Homem e na Carta Fundamental dos Direitos da União Europeia, coisas que em Portugal ignoramos olimpicamente ao obrigar as pessoas a irem para a escola pública segundo a sua residência

Durante a campanha eleitoral o Iniciativa Liberal afirmou que o Estado tem, pelo menos, 70 organismos a mais. Pode dar-me o exemplo de três que poderia fechar já?

Ah, não consigo dizer, assim de repente. E aliás, muito mais do que fazer desaparecer os organismos em si, o objecivo é fazer desaparecer a necessidade que lhes deu origem. Ou seja, se calhar esses organismos estão a emitir licenças ou a produzir pareceres sobre coisas para as quais o Estado não tem competência ou onde nem sequer devia estar envolvido. Muito mais importante do que os institutos em si, são as competências e o nível de intervenção do Estado.

Privatizar a TAP, a RTP e a Caixa Geral de Depósitos. Porquê?

Porque o Estado não tem de ter nenhuma dessas coisas - e muitas outras, mas é destas que estamos a falar agora. Não tem de ter um banco público, que acaba por ser igual a qualquer banco privado, com a diferença de que nem sequer é mais barato, nem sequer dá mais apoio às pequenas e médias empresas e nem sequer é rentável - veja-se as capitalizações que tivemos de fazer, todos nós, de milhares de milhões de euros nos últimos anos, já lá enfiámos, entre capital e outros compromissos, 5 mil ou 6 mil milhões de euros.

O risco que existe hoje em relação à RTP é o de ser usada, como tantas vezes continua a ser, como máquina de propaganda e de transmissão das ideias do governo de turno, seja ele qual for

E no caso da RTP?

No caso da RTP, porque não faz sentido algum gastar 200 milhões por ano, ainda por cima pagos em facturas da electricidade, mais ou menos às escondidas, uma licença de televisão para produzir aquilo que os canais privados também produzem. O que pode ser considerado serviço público, pode ser contratualizado com os canais que já existem e as matérias que podem ser historicamente mais importantes, como o arquivo, podem perfeitamente ser asseguradas por outra instituição que não a televisão pública. O risco que existe hoje em relação à RTP é o de ser usada, como tantas vezes continua a ser, como máquina de propaganda e de transmissão das ideias do governo de turno, seja ele qual for. Ainda hoje estamos para saber por que motivo o "Sexta às 9" foi suspenso durante duas semanas, e o primeiro programa que aparece depois das eleições é sobre favores do governo a grandes grupos económicos. Até para evitar este tipo de leituras, não faz sentido que o Estado lá esteja. Relativamente à TAP, não faz sentido o governo ter uma companhia aérea, já lá vai o tempo em que havia companhias de bandeira, uma coisa estratégica, não sei bem porquê - se para transportar armamento ou medicamentos ou tropas ou para evacuação de portugueses refugiados. Não faz sentido o Estado ter uma companhia aérea, para mais quando tem tantos problemas de gestão, que deve ser entregue a quem sabe efetivamente lidar com problemas de aviação, que são complexos.

Perguntas à queima roupa

O que faziam o seu pai e a sua mãe?

São os dois vivos, têm ambos 90. O meu pai foi economista e empresário - como eu, a maçã nunca cai longe da árvore - a minha mãe era funcionária pública, uma das primeiras mulheres em praticamente todos os serviços por onde passou, o que sempre me aprouve registar.

Quem são os seus amigos?

Eish, os meus amigos... Tenho facilidade em fazer amigos, mesmo amigos. E estas eleições, por acaso, trouxeram-me muitas provas de grandessíssima amizade. Guardo grandes amigos, aqueles de contacto regular, próximo, do meu tempo de escola: dois ou três desde os quatro anos, dois ou três do meu tempo da faculdade, em Inglaterra, e três ou quatro do tempo de tropa - alguns já começam a coincidir. Depois tive a sorte, se calhar, de conseguir fazer bons amigos nos sítios por onde passei profissionalmente. E tenho o círculo de sair à noite - ia dizer que é o mais animado, mas não é verdade, uma das caraterísticas das pessoas com quem me dou é que são muito animadas, gente divertida.

Quem foi o pior primeiro-ministro de Portugal?

Agora tenho de me lembrar de todos... Ah, o Vasco Gonçalves, claro. Era louco.

Qual o seu maior medo?

Não quero dar a ideia de ser destemido, mas não tenho um medo. Talvez o de desiludir as pessoas que gostam de mim e que confiam em mim.

Qual o seu maior defeito?

[Ri] Dizem-me que sou impaciente. E sou, sou um bocadinho impaciente.

Quem é a pessoa que mais admira?

Não disse que íamos parar à curiosidade? É tanta gente... Toda a gente que faz coisas melhor do que eu - que é quase toda a gente no mundo. A sério, vejo um oleiro e fico fascinado, vejo aqueles rapazes que andam na rua a fazer malabarismos e acho fantástico... Mas não vou fugir à questão: há uma pessoa, que até por não ser da minha área política - e não tinha de ser - que tem o tipo de erudição, de humor, de espírito e que aparenta ser boa pessoa - nunca falei com ele na vida, não o conheço: Stephen Fry. Só o conheço dos livros que escreve, dos programas de televisão que teve, dos discursos que faz. Tem, e talvez por isso me toque particularmente, o dom da palavra, o domínio da palavra, que deve ser a coisa mais próxima do ser humano com a divindade.

Qual a sua maior qualidade?

[Pensa] Estou a hesitar, não porque ache que não tenha... Penso que entendo bem as pessoas e com alguma velocidade.

Qual a maior extravagância que alguma vez fez?

Não sou muito de extravagâncias. Mas, no sentido de, no dia seguinte, me perguntar "Eh, pá, o que é que eu fiz?" aconteceu-me em Londres, uma vez. Não tinha muito dinheiro, contava, literalmente, o dinheiro para comer, mas gostava tanto de música que, um dia, extravagância pura, comprei um gira-discos com umas colunas, péssimas. Devo ter pensado qualquer coisa como "posso viver sem comida, mas não posso viver sem música" [ri]. E no dia a seguir estava com a mão na cabeça. E passei alguma fome à conta do gira-discos. Nunca me arrependi.

Qual a pior profissão do mundo?

Em geral? Depende da vocação e da personalidade de cada um... Para mim, burocrata. Estar sentado a uma secretária a enviar regulamentos para outros, acho que me suicidava.

Qual a virtude mais sobrevalorizada?

Essa é fácil: a prudência.

Quem foi o melhor presidente da República de sempre?

Ramalho Eanes.

Se fosse uma personagem de ficção, que personagem seria?

Era mais fácil se me tivesse perguntado isso quando eu tinha dez anos, teria respondido super-homem ou James Bond ou qualquer coisa assim. Ah, mas lembro-me de um que acho que funciona, o MacGyver. Sou muito mais de fazer do que de ficar a pensar e gosto de soluções expeditas e imaginativas.

Que traço de perfil obrigatório tem de ter alguém para trabalhar consigo?

Nenhum em especial, já trabalhei com tanta gente diferente... Uma das coisas que faço bem é ir buscar as pepitas de ouro, que estão escondidas nos feitios mais difíceis. Por terem feitios difíceis, essas pessoas estão muitas vezes um pouco à parte. A única coisa, e isto é válido ao nível profissional e pessoal, é que tenho de sentir que são pessoas de bem, que não me vão apunhalar pelas costas só porque sim. Se sentir um resquício disso tenho uma reação muito epidérmica. Preciso de sentir que há ali uma pessoa bem formada, com caráter, uma pessoa de bem. Têm de ser boas pessoas.

Qual o seu filme de eleição?

Só neste bocadinho desde o início da conversa até agora já me lembrei de três ou quatro: "Chinatown", "A Vida de Brian" e "Cinema Paraíso", até já chorei com o filme. Mas não é nenhum destes que elegeria como o melhor, terá de me tocar de uma forma diferente... Vou dizer - é como os livros - um a que volto sempre: "Cyrano de Bergerac".

O que o deixa feliz?

Tanta coisa... Sou muito fácil. E pequenas coisas... Gosto muito de fazer alguém feliz, fazer alguma coisa por alguém. Ver essa pessoa ficar contente enche-me. Ou fazer uma coisa bem. Por exemplo, gosto muito de cozinhar e tenho imensa dificuldade em fazer a mesma coisa duas vezes. E arrisco. Por isso, conseguir aperfeiçoar uns ovos mexidos, que é uma coisa que parece fácil, mas que depois, quando as pessoas provam, caem para o lado.

O que o faz perder a cabeça?

Uma crueldade a um miúdo. Ou a um animal (não ponha na mesma frase, parece que estou a fazer equivaler os dois). Mas já perdi a cabeça nas duas situações. Ou ver alguém fazer mal a uma pessoa indefesa, mais fraca. Sou daquelas pessoas que se mete nas discussões alheias - e sei que não devia, provavelmente, mas como se trata de perder a cabeça, não tem de fazer sentido.

Um adjetivo para Marcelo Rebelo de Sousa?

[Ri] Hiperativo.

Como gostava de ser lembrado?

Um gajo porreiro.

Descreva-me a última vez que se irritou?

[Pensa] Lembrei-me, mas não sei se posso dizer. Tem conotações políticas. Vi-me confrontado com uma situação em que o conjunto de condições combinadas não foi respeitado. Irritei-me porque é uma deslealdade, uma quebra de compromisso com um laivozinho de desrespeito pessoal, porque quem ficava com a batata na mão era eu. Não sei se me irritei mais com a deslealdade ou com a ferida narcísica de alguém me ter desrespeitado, mas, provavelmente, a conjugação das duas.

Tem uma comida de conforto ou de consolo? Qual?

Tenho muitas. Ainda anteontem falei nisso com os meus filhos - coitados, foram os que sofreram mais com a campanha, nem me viam. Estou com saudades de ir a Almeirim, à sopa da pedra, ao "Toucinho" (um abraço ao João). Toda a beleza da cozinha num prato.

É deputado, mas se fosse primeiro-ministro, qual a medida que tomaria imediatamente?

É uma medida simbólica: reintroduzir um sistema de avaliação profundo e bem feito em toda a função pública.

A que político compraria um carro em segunda mão?

Não conheço muitos políticos, só da televisão. Mas acredito que a vários. Voltamos à questão do ser-se boa pessoa... Penso que, apesar de tudo, a persona política não tem de ser necessariamente a mesma do cidadão privado. Imagino, porque noutras profissões não é.

Esteve na direcção da TVI. Não receia que digam que está a favorecer os privados?

A posição sobre a venda da RTP é de princípio, as minhas anteriores responsabilidades não têm qualquer relevância para essa  opinião. Já saí da TVI há oito anos, não me passa pela cabeça condicionar seja o que for em negócios privados.

Gostou da passagem pela TVI?

Gostei muito. Não tinha o melhor acionista do mundo, porque estava em situação financeira difícil e olhava para a Media Capital como um porquinho mealheiro. Mas, por isso ou por escolha, não sei, tinha uma visão tão pragmática e pouco imaginativa do que era o negócio da comunicação, que me surpreendeu muito. Eu não era de comunicação e rapidamente percebi que este, em particular, é um negócio mesmo de pessoas - temos criadores a escrever, a desenhar cenários, a fazer iluminação, a apresentar, a dançar... A nível técnico é preciso pessoas com grande capacidade. Gerir esta criatividade e esta liberdade para se adaptar àquilo que vai sendo preciso era uma das minhas funções. O acionista não achava nada disso: as pessoas tinham de fazer de determinada forma e, se pedissem mais, era para tratar ao pontapé.

Portugal tem um problema de liderança?

Não gosto de generalizar. Vejo muito pouca gente capaz de tirar o melhor das pessoas que trabalham com elas. Seria talvez a parte mais rica, mais indutora de produtividade. Vejo poucas pessoas a fazê-lo. Há motivos para isso, eu trabalho muito com CEO [Chief Executive Officer], sempre trabalhei.

Quando as pessoas não têm a tal formação, o caráter, acabam por contrair uma carapaça de certezas e de omnipotência por não ter uma zona de equilíbrio, e isso torna-as muito permeáveis

Quais?

O exercício do poder é bastante solitário, quando não se pode confessar as fraquezas, as dúvidas. Quando as pessoas não têm a tal formação, o caráter, acabam por contrair uma carapaça de certezas e de omnipotência por não ter uma zona de equilíbrio, e isso torna-as muito permeáveis.

Falou numa parte "indutora de produtividade". Portugal tem, há muito, um problema de produtividade.

É o principal problema deste país do ponto de vista económico. Nos últimos 25 anos passámos de ter 68% da média europeia, que já de si é um número embaraçoso, para 64%. E é a produtividade que garante que eu posso, ou não, subir salários. Mas estamos a andar para trás.

E porquê, a que se deve esse problema de produtividade e como resolvê-lo?

A visão clássica destas coisas é que para aumentar a produtividade teria de investir em máquinas e em qualificações, que me permitiriam melhores processos e organização na empresa e, logo, produzir mais unidades por hora. Mas esta visão está a ficar ultrapassada, não no sentido de estar errada, mas no sentido de ser incompleta. Nos últimos dez a quinze anos assistimos à introdução de dois elementos muito mais eficazes no aumento da produção do que quaisquer outros: conhecimento e inovação. Dentro desta temática, há uma matéria particularmente importante, a introdução de uma marca. Temos de saber gerir o conteúdo emocional em Portugal. E foi isto que fiz no turismo, andar à procura do conteúdo emocional para promover Portugal.

Mas há coisas que não se provam, há coisas que se sabem. A intuição, muitas vezes, não é mais do que um conjunto de raciocínios inconscientes e aparece-nos como uma conclusão mais ou menos inesperada

Um professor de Economia, conselheiro da Nova SBE, Nadim Habib, afirmou recentemente que um dos problemas das empresas portuguesas é que são geridas com emoção em vez de serem geridas com ciência. Discorda?

Oiço muitas vezes essas coisas discutidas como se fossem uma dicotomia, e não acho que sejam. Não acho que a razão e a emoção sejam duas coisas separadas, e não sou só eu. António Damásio [neurocientista] anda há 30 anos a escrever sobre isso. Ele vai mais longe, e diz que sem corpo, sem células, não há sequer cultura, que é ainda mais extraordinário. Portanto, essa dicotomia entre o lado esquerdo e o lado direito do cérebro, entre a emoção e a razão, nunca a comprei. Penso que quando uma pessoa tenta dividir o mundo, as coisas, a forma de gerir, de discutir política nessas duas dimensões, está propositadamente a querer diminuir a outra - ou porque não sabe ou não quer saber ou não lhe dá jeito. Eu abraço as duas com igual vigor: sou incapaz de tomar uma decisão se não a "sentir" e sou incapaz de fazer uma coisa sem pensar se não estarei a ser enganado por alguma emoção menos útil. São duas faces da mesma moeda, a pessoa é feita disto, a vida é feita disto e a política é feita disto. Quem gere, provavelmente, é habituado desde os dez anos a ser racionalista e analítico e a provar que a conta está certa. Mas há coisas que não se provam, há coisas que se sabem. A intuição, muitas vezes, não é mais do que um conjunto de raciocínios inconscientes e aparece-nos como uma conclusão mais ou menos inesperada. A partir de determinada altura de ter alimentado a base de dados, com a experiência, há que confiar nisso. A economia também funciona assim. Penso que as sociedades que funcionam melhor são as que têm este equilíbrio mais bem conseguido. Portugal ainda está muito no lado racional e analítico, que provoca aversão ao risco, medo de errar e, até, o estigma do falhanço.

créditos: Paulo Rascão | MadreMedia

Foi presidente do Turismo de Portugal entre 2013 e 2016...

O Estado tem muita intervenção em sítios que não devia, na nossa opinião. Mas há duas exceções de que me lembro: a AICEP e promoção turística, dentro do Turismo de Portugal. Ou seja, captação de investimento e promoção do turismo. Uma das coisas que fizemos na altura em que lá estive foi tomar a decisão difícil de deixar de ter comunicação em meios tradicionais e passar a ter todo o orçamento no online, com o argumento, para nós decisivo, de que o volume de orçamento que tínhamos era tão diminuto em função do que estava a ser gasto pelos nossos concorrentes, que são quase todos os países do mundo, que não valia a pena combater nas mesmas arenas. Mas não nego, foi um sacrifício, porque a administração pública não só não está preparada em termos de recursos humanos...

Falei no Turismo de Portugal por outro motivo. Tem sido um dos motores de crescimento da economia, mas é pouco provável que se mantenha eternamente assim.

Mas não foi o Estado que fez crescer o turismo. Se algum mérito houve, foi exatamente desregular, tirar complicação nos registos de actividade turística, aumentar a velocidade com que tratávamos os pedidos de licenciamento. E, sobretudo, a forma como tínhamos organizada e a maneira como falávamos aos agentes do turismo, aos privados, as oportunidades que lhes mostrámos, o que estávamos a fazer e porque é que eles deviam arriscar. Quando se criam as condições e se dá o estímulo e o exemplo, as coisas acontecem. Houve milhares de pessoas a entrar na indústria turística entre 2013 e 2015. Vão existir ciclos, mas há coisas que são irreversíveis. Muita gente que entrou de novo tem uma enorme capacidade de ler os mercados e de adaptar a sua oferta, de se transformar. Quando cheguei ao turismo não havia uma conta satélite, não se sabia quanto valia o turismo na economia. Agora sabemos, vale cerca de 12%. Porque, com o INE - não é barato, mas tomei essa decisão - reinstituímos a conta satélite do turismo, que apanha todas as actividades. Quando o turismo cresce a 10%, significa que 1,2% vai para o crescimento do PIB. Mas isto é um sector, devíamos ter muitos mais.

Passou pelo crivo da Cresap - Comissão de Recrutamento e Seleção para a Administração Pública. É uma boa solução para as contratações públicas?

Não, porque foi desvirtuada. Na ideia inicial era boa, mas acabou por funcionar de outra forma.

É diferente de um concurso por fotografia, como se dizia antigamente quando já se sabia quem ficaria em determinado lugar?

Sei que era eu quem o Ministério gostaria de ter recrutado. Pode-se dizer que tive a sorte de ficar na shortlist ou pode-se dizer que aquilo foi combinado, não sei. Nem sei quem eram as outras pessoas que estavam comigo na shortlist, nunca soube. Prefiro não falar sobre o tema dos concursos nesta altura porque não tenho ainda uma proposta mais concreta sobre como deveria funcionar, tenho algumas dúvidas sobre qual seria a melhor solução para melhorar substancialmente a forma de nomear dirigentes públicos. Mas há nuances que eu gostava de acautelar, por exemplo, fui nomeado para presidente de um órgão coletivo sem poder escolher nenhum dos meus colegas. É pouco eficiente. Se querem melhorar o funcionamento do Estado, põem equipas que funcionem. Claro que aprendi a funcionar com as pessoas todas, e não funcionou mal, mas podia ter funcionado melhor e, nalguns casos, pode até funcionar muito mal.

Aproveito para lhe perguntar sobre um assunto que nunca ouvi mencionar durante a campanha, o mercado da habitação. Uma casa em Lisboa custa tanto como uma casa numa grande cidade alemã. O liberalismo, aqui, tornou-se assustador, ou não?

Sempre que se fala no mercado habitacional fala-se na dificuldade que as pessoas têm em pagar as rendas. E então discute-se o valor das rendas quando, mais uma vez, o que se devia discutir é o rendimento das pessoas. Chamo a atenção, porque quando queremos resolver um problema é bom que se conheça a sua raiz, que chegámos aqui com leis de condicionamento de rendas sucessivas, que tornaram desinteressante o investimento para arrendamento e tornaram quase obrigatória a compra de casa. Portugal é dos países da Europa com maior número de proprietários de casa. Já houve duas vagas de liberalização, melhorou relativamente pouco, mas continua a ser mais favorável para a economia das pessoas comprar do que arrendar casa.

O desequilíbrio está criado. Como se resolve?

Ah, e tem uma consequência adicional, um contributo forte para o imobilismo social. Dou-lhe um exemplo: no ano passado os salários médios subiram 2,4%, mas entre as pessoas que mudaram de emprego, subiram mais de 9%. Ou seja, mudar de emprego parece ser uma forma de quadruplicar a melhoria salarial. Mas, para isso, preciso de estar disponível para mudar. Quando sou dono de uma casa e estou a pagá-la essa decisão é dez vezes mais difícil.

Não se pode ficar à espera que os salários subam. Qual a solução intermédia?

Para mitigar o problema, e garanto que se as casas estiverem vazias os senhorios baixam as rendas, há falta de oferta no mercado de arrendamento. O Estado, que é senhorio de dezenas de metros quadrados nas grandes cidades, que dê o exemplo: coloque os seus imóveis no mercado, diretamente ou vendendo-os a quem se comprometer a colocá-los no mercado de arrendamento. Segundo: facilitar e acelerar os licenciamentos - e aqui não falo dos centros das cidades, que têm outras características - de todos os projectos que possam conduzir a um rápido aumento da oferta. Estas das medidas ajudariam muito a que o mercado se reequilibrasse. Agora, não peçam aos liberais para resolver um problema que está criado por aplicação,  durante décadas, de medidas anti-liberais.

achamos que o senhor presidente da República usou a sua capacidade de intervenção muitas vezes para chamar a atenção para problemas, muitos deles sérios, mas tocou muito pouco no tema da falta de ambição.

Esteve há poucos dias com o presidente da República, que teve de ouvir os partidos para indigitar o primeiro-ministro. Como olha para a relação do presidente da República com o governo ao longo destes quatro anos?

É uma coisa difícil de responder, pelo seguinte: temos uma posição tão crítica em relação ao que este governo não fez, sobretudo, que nos choca sempre quando alguém em posições de influência e poder não tem a mesma opinião e não tenta mudar esse estado de coisas. Ou seja, achamos que o senhor presidente da República usou a sua capacidade de intervenção muitas vezes para chamar a atenção para problemas, muitos deles sérios, mas tocou muito pouco no tema da falta de ambição. Este governo foi de uma falta de ambição que, para mim, teve o seu cúmulo na discussão do Estado da Nação, no final de junho. Eu só pensava, se este é o país com que as pessoas devem estar satisfeitas, percebo que os meus filhos não queiram viver cá para sempre. E isso é angustiante. Se a bitola é estar melhor do que nos tempos da troika, não é grande ambição.

Enquanto não tivermos uma discussão séria sobre o tamanho do bolo a que chamamos produto interno bruto, a discussão sobre o tamanho das fatias é um pouco vácua

Descobrimos, já depois das eleições, que, afinal, Portugal não converge, ou seja, não cresce, desde 1995. Não cresce porquê?

É engraçado, há coisas que se passam nos dias a seguir às eleições que seria bom que se tivessem passado antes. Mas a Iniciativa Liberal falou disso a campanha toda, esteve quatro semanas na rua, e onde a quiseram ouvir, a clamar que este era o problema. Aliás, é o nosso mantra. Há uma pergunta em Portugal que nunca é colocada e muito menos respondida: porque é que há 25 anos não crescemos e outros crescem? Enquanto não tivermos uma discussão séria sobre o tamanho do bolo a que chamamos produto interno bruto, a discussão sobre o tamanho das fatias é um pouco vácua.

infantilizamos os portugueses, tratamo-los como se não soubessem escolher sozinhos ou então como malfeitores, exigindo quase o registo criminal para poder comprar o passe social

Tem uma resposta para essa pergunta?

Temos. A nossa resposta, simultaneamente simples mas verdadeira, é que faltam políticas liberais. Porque vamos ver e todos os países que nos ultrapassaram no ranking do PIB per capita, sem exceção, têm marcadamente ou substancialmente políticas liberais implementadas. E já falámos de todas elas. Mas fazemos ao contrário: infantilizamos os portugueses, tratamo-los como se não soubessem escolher sozinhos ou então como malfeitores, exigindo quase o registo criminal para poder comprar o passe social. Estamos a infantilizar e a desconfiar dos cidadãos e o Estado não é isso, o Estado somos nós. Todos os poderes que o Estado tem, todo o dinheiro que o Estado tem vem das pessoas. Fomos nós que permitimos que esses podes existissem e que esse dinheiro lá estivesse. Portanto, em qualquer momento temos o direito de dizer não, quero o meu poder e volta, quero o meu dinheiro de volta, porque este Estado não está a funcionar para mim, e ainda por cima trata-me como uma criança ou como um malfeitor. Esta é uma equação que não faz absolutamente sentido nenhum, especialmente quando se pode colocar em contexto e dizer que é isto que nos está a atrasar. Os PIB não crescem por decreto, essa é a primeira coisa que tem de ser dita. Os governo têm muito pouca alavanca directa nos crescimento do PIB, o que deve fazer é confiar nas pessoas. O que a Iniciativa Liberal gostava que acontecesse é que houvesse confiança nas pessoas para que lhes fosse dado espaço suficiente, liberdade suficiente, desagravamento fiscal suficiente para poderem decidir sobre as suas vidas, na esfera privada, mas também na esfera profissional. O sistema que temos em Portugal sufoca de tal maneira a iniciativa que não permite que este crescimento aconteça, por isso o temos tão escasso há 25 anos e já se perspetiva que os próximos quatro serão iguais.

Todos os poderes que o Estado tem, todo o dinheiro que o Estado tem vem das pessoas. Fomos nós que permitimos que esses podes existissem e que esse dinheiro lá estivesse. Portanto, em qualquer momento temos o direito de dizer não, quero o meu poder e volta, quero o meu dinheiro de volta

Essa é a solução para todos os problemas?

É uma espécie de mapa da mina em relação ao crescimento: confiar na capacidade de iniciativa dos portugueses, que foi assim que os outros países fizeram. Ninguém chegou lá por dirigismo estatal. As pessoas, largadas às suas próprias decisões, produzem boas escolhas, há que confiar nisso.

O que se passou nos diversos casos no sector financeiro não foi liberdade a mais, foi regulação (supervisão) a menos

Ao ouvi-lo falar penso na confiança do Banco de Portugal em relação ao BPN, BPP, BES, Banif, BCP, etc. Os resultados não foram os melhores...

Como digo sempre: com maior liberdade virá maior responsabilidade. Defendemos a redução do peso do Estado, mas o aumento da importância das funções reguladoras e inspetivas desse mesmo Estado, para que exista efectiva responsabilização. O que se passou nos diversos casos no sector financeiro não foi liberdade a mais, foi regulação (supervisão) a menos.

Há pouco, quando falou na proposta para a saúde e para a educação, disse que sempre que há apertos é lá que se corta. O IL, confrontado com apertos, onde cortaria?

Olhe, no investimento público.

Mais? Quase não houve investimento público...

Ainda houve algum, apesar de ter sido, de facto a legislatura deste século com menos investimento público. Mas já ouvi dizer que a próxima vai ser um bodo. O que digo é que as decisões discricionárias avançam ou não avançam, tipicamente os chamados consumos intermédios e investimento público. Sendo certo que, se juntarmos as despesas com pessoal, as prestações sociais e alguns gastos de segurança social, são 83% ou 84% do orçamento. Fica muito pouco.

a informação que chega a quem não conhece Portugal, nesta altura, é que não é um sítio particularmente brilhante para investir

Também não conseguimos captar investimento privado...

As pessoas investem onde acham que podem ter melhores condições de retorno. A partir daí, é ver onde Portugal está. Ainda há poucos dias saiu mais um relatório sobre a competitividade da economia portuguesa, e mantivemos o nosso "brilhante" 34.º lugar. Quando se vai ver as coisas que estão particularmente mal classificadas, voltamos a entrar em tudo o que disse aqui: fiscalidade, ineficiência do sistema judicial, existência de corrupção ou ambiente de negócios pouco transparente. São as coisas que as pessoas tipicamente não gostam de ver quando estão a considerar investir, independentemente de serem nacionais ou estrangeiros. Não tem grande segredo, mais uma vez as pessoas comportam-se conforme os estímulos que recebem e a informação que lhes chega. E a informação que chega a quem não conhece Portugal, nesta altura, é que não é um sítio particularmente brilhante para investir.

Há uma medida que gostaria ainda que explicasse, que é o salário mínimo por município. Como seria isso?

Faz parte, mais uma vez, da lógica da liberdade de decisão. Que, idealmente, é tomada pessoa a pessoa. Em regras administrativas, como é o caso do salário mínimo, não pode haver decisão pessoa a pessoa, mas deve ser tomada o mais perto possível das populações e dos problemas reais. Temos uma série de medidas de descentralização e esta é uma delas. É uma forma de dizer às pessoas que, localmente, elas sabem melhor o que as afeta do que o Estado central. Uma vez mais, um Estado central no sentido de delegar o máximo possível, não perdendo importância, mas perdendo peso. O que dizemos é: havendo necessidades económicas diferentes região a região, havendo custos de vida diferentes região a região, havendo necessidades de atração diferentes região a região, por que motivo há um salário único a nível nacional? Os municípios deviam ser livres e poder fixar o seu salário mínimo. Sendo que não pode haver reduções de salários, portanto a base teria de ser a do salário mínimo nacional. Mas esta é uma medida de descentralização.

O Iniciativa Liberal defende a descentralização e não a regionalização. Não é só uma questão de semântica?

Descentralizar é a melhor barreira à regionalização. A regionalização, da maneira que antecipo que vá ser posta em cima da mesa já nesta legislatura, é pouco mais do que a introdução de uma nova camada de decisão política, que vai perpetuar o poder dos grandes partidos do sistema. Viu-se pelas CCDR [Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional] o que significa quando há nomeações políticas do ponto de vista do funcionamento. E, como há, de facto, problemas de centralismo em Portugal, como há demasiadas decisões tomadas em Lisboa sobre coisas que Lisboa conhece mal, qualquer delegação de competências tem de ser acompanhada pelo respetivo emagrecimento do orçamento do Estado, senão estamos a brincar às duplicações. É por este motivo que aparecem algumas medidas, como a do salário mínimo, que faz parte de uma lógica mais geral de descentralizar tanto quanto possível. De resto, a máquina do Estado não é inerte, tem de ser contrariada ou cresce.

Quais são, afinal, as imposições necessárias e desnecessárias do Estado, o que as define?

A nossa vida diária está cheia da necessidade de reportar coisas que fazem muitíssimo pouco sentido. O Carlos Guimarães Pinto costuma descrever a saga que foi entregar as listas do IL ao Tribunal Constitucional e, só nesse pequeno mundo, grande para nós, havia coisas inacreditáveis, como entregar ao Tribunal Constitucional coisas que tínhamos de pedir ao Tribunal Constitucional. Mas no dia-a-dia das pessoas isto acontece muitíssimas vezes. Uma das medidas que propomos, mais profiláctica e didáctica, é que cada vez que haja uma necessidade de preencher um formulário seja obrigatório que constar o tempo que demora a dar a informação pedida.

São coisas incrementais, a pessoa não parece ligar muito e no fim tem um monstro burocrático ou fiscal em cima. Portanto, se não quero que isto aconteça, devo resistir. E a pequena resistência tem muito mais poder do que se julga

Assim ainda vai aumentar o tempo um bocadinho mais...

Não, está lá escrito, é o próprio serviço que tem de dizer se demora seis, doze ou quinze minutos, que é para um dia podermos pegar nos 14 mil formulários que andam por aí e fazer contas. Sendo que boa parte da informação pedida é redundante. O nosso objectivo, e voltamos à estratégia de um partido com um deputado no poder e que nasceu há dois anos, é colocar os temas na agenda e despertar consciências. São coisas incrementais, a pessoa não parece ligar muito e no fim tem um monstro burocrático ou fiscal em cima. Portanto, se não quero que isto aconteça, devo resistir. E a pequena resistência tem muito mais poder do que se julga.

Que política fiscal defendem para as empresas?

Demos prioridade à fiscalidade sobre as pessoas, mas não esquecemos a fiscalidade empresarial. O nosso ponto de partida é que só as pessoas devem pagar imposto. As empresas, as associações são abstrações. Neste momento, em Portugal, há aquilo a que se pode chamar uma dupla tributação, porque os lucros das empresas pagam imposto e o que sobra, se for distribuído como dividendos, volta a pagar imposto quando entra na órbita da pessoa accionista. Isto conduz a taxas de tributação que, em muitos casos, ultrapassam os 50%. Queremos olhar para isto como um processo gradual de eliminar esta dupla tributação, reduzindo ao máximo possível o IRC. Os limites vão depender do orçamento, mas também dos compromissos europeus que temos de respeitar e da própria lógica do sistema. Porque para eliminar a dupla tributação, o ideal seria acabar com um dos impostos.

as pessoas estão hoje muito mais preocupadas a manter o que têm do que a ambicionar algo mais. Porque lhes venderam esta ideia. Mas o que têm é muito, muito pouco

Consegue imaginar qual será a sua primeira discussão com António Costa?

Não. Mas talvez gostasse de lhe perguntar que país vê, que visão tem para o país, que tipo de pessoas vê a viver em Portugal, se pessoas particularmente avessas ao risco e à espera da mão do Estado, num quase assistencialismo, se vê e privilegia a segurança e a classitude, ou se quer um sítio dinâmico e vibrante, que receie os riscos, mas goze um bocadinho com eles, e se sinta tão bem consigo próprio que também está mais preparado. Porque isto não é individualismo, só as pessoas que estão bem consigo próprias, as pessoas bem resolvidas são capazes de dar a mão aos outros. A mudança de qualquer coisa que tenha mais do que um elemento implica a mudança de cada um dos elementos. Mas as pessoas estão hoje muito mais preocupadas a manter o que têm do que a ambicionar algo mais. Porque lhes venderam esta ideia. Mas o que têm é muito, muito pouco. Continuamos com um salário médio base de 953 euros, 45 anos depois do 25 de Abril. É uma vergonha.

Ambicionamos poucochinho?

Muito poucochinho. A falta de ambição saudável é das piores consequências do socialismo que nos tem governado. Ou desgovernado.

O que mais separa o IL do socialismo?

O PS não vê grande diferença entre o poder de um Estado benévolo e o poder das pessoas. E nós vemos uma oposição nessas duas coisas: cada vez que o Estado ganha um poder, as pessoas perdem-no.

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