Em plena cidade de Lisboa, perto da Praça de Espanha, há um edifício que se impõe pela diferença. De pedras alaranjadas e azulejos predominantemente azuis, a Mesquita Central de Lisboa desenha-se altaneira entre os prédios comuns. É nos degraus exteriores que Khalid Jamal, um dos membros da direção da Comunidade Islâmica de Lisboa (CIL), recebe o SAPO 24.
Cá fora, um cartaz dá algumas indicações a quem chega: é um guia de vestuário e comportamento para os visitantes — com mais pormenores para as mulheres — mas Khalid sossega as jornalistas. “São meras indicações, a mesquita está aberta a todos”. Portas escancaradas, que comece a viagem pela Mesquita Central de Lisboa, como se lê em português na fachada, ou pelo Bairro Azul, como explica o nosso guia estar ali escrito em árabe.
Se a presença islâmica em Portugal tem memórias incontáveis, a história da Comunidade Islâmica de Lisboa, assim definida, traça-se em menos linhas. Em 1968, pela união de cinco muçulmanos e cinco católicos, é solicitado à Câmara Municipal de Lisboa um terreno para a construção da mesquita. Dois anos depois a Comunidade Islâmica é oficializada em Diário do Governo, mas a construção do espaço só se dá depois do 25 de Abril: foi lançada a primeira pedra em janeiro de 1979 e em 1985 começa a sua construção.
"Nós — os meus pais e tios — éramos bichos raros aqui em Portugal”
“Esta foi a primeira comunidade não-católica a surgir em Portugal. Surgiu em pleno tempo salazarista e daqui ressalta o mérito dos nossos fundadores, um total de nove estudantes que rumaram de África para Portugal”, começa por explicar Khalid D. Jamal. “A CIL tem, fundamentalmente, dois grupos que a compõem: são cidadãos de origem guineense e pessoas que rumaram — como a minha família — da Índia, mas não na Índia Portuguesa (Goa, Damão e Diu) e sim da Índia britânica, para Moçambique e depois para a apetecida capital do Império, a nossa Lisboa”, recorda.
Olhando para o espaço, questiona-se o porquê de um projeto de grande dimensão quando a realidade muçulmana no país era algo diminuta. “Era um projeto megalómano. Alguns entendiam o então presidente como lunático, outros, como eu, como visionário, dada a dimensão do projeto. Havia meia dúzia de muçulmanos em Portugal, ninguém sabia dizer o porquê de nós não podermos comer carne de porco ou de não bebermos bebidas alcoólicas e de só consumirmos carne Halal. Nós — os meus pais e tios — éramos bichos raros aqui em Portugal”, conta Khalid.
Mas agora tudo mudou e a comunidade cresceu. “Hoje posso dizer que a comunidade, na oração de sexta-feira, o Jummah, tem aqui mais de 3 mil pessoas. A mesquita enche. No dia-a-dia não é possível porque há locais de culto em zonas limítrofes. Neste momento temos 52 locais de culto em todo o país, mesquitas pequeninas, mas que são locais de culto. As pessoas preferem, por uma questão de comodidade, fazer as suas orações nos seus locais, junto do seu local de trabalho ou de residência”, explica.
A construção da Mesquita Central de Lisboa, como ela se apresenta, só foi possível devido à generosidade dos países árabes. “Praticamente todas as representações de países árabes em Portugal contribuíram com fundos ou em espécie. Posso dizer que alguns dos azulejos que aqui vemos provém do Irão, da Turquia… Os países árabes juntaram-se à missão da comunidade islâmica em Portugal, na construção de uma mesquita criada de raiz e que procura refletir a diversidade cultural da comunidade”.
O pátio central, local onde se juntam todas as vozes
De inspiração magrebina, o pátio central dá acesso aos restantes locais da mesquita. Este é um espaço de confluência, partilhado por todos os que passam as portas principais do edifício. “Foi feito de propósito: daquele lado direito está a sala de orações, com várias portas. Do lado esquerdo temos outras valências, como uma biblioteca, uma morgue, uma sala de conferências, uma videoteca, um cybercafé, uma sala de reuniões. Lá em baixo temos uma sala de eventos, ou seja, a Comunidade não é apenas religiosa, aliás ultrapassa bem esse espectro. Tem aspetos culturais, serve também para outros fins”, começa por explicar Khalid.
Olhando em volta, há de tudo. “Todas as pessoas convergem para aqui. É um ponto comum, um ponto de convívio”. Pessoas que conversam, outras que descansam. Também há aqueles que comem alguma coisa antes da oração que começa dentro de alguns minutos e alguns sapatos perdidos deixam adivinhar um ritual de preparação para o que se segue.
É também do pátio que se tem vista privilegiada sobre o minarete, a torre da Mesquita. E, para reforçar a confluência de culturas, é de inspiração iraquiana. “A mesquita de Samarra, no Iraque, tem um muito semelhante, embora não seja retangular, é mais redondo. Mas em termos da escolha do azulejo, da cor, é semelhante. Este tem uma particularidade: tem umas escadas que nos permitem ir até lá acima. E porquê? Porque nós, muçulmanos, temos o muezzin, um chamador para a oração. A nossa religião foi a primeira em que o chamamento se fez através da voz. No passado usavam-se tambores, vários tipos de instrumentos e de artefactos para chamar as pessoas para a oração”, refere.
De um momento para o outro, a conversa tem de ser interrompida. É impossível ouvir alguém falar ao nosso lado na Mesquita e nas imediações. Ecoa, através do sistema de som, o tal chamamento. Faltam 15 minutos para a oração das 14h e os muçulmanos são convocados a ir até à Mesquita Central de Lisboa. Numa voz que parece cantada sem o ser de facto, há um apelo que vai repetindo, em árabe, chavões do islão. Khalid Jamal ajuda à tradução livre do que se ouve, impercetível para quem desconhece a língua. “No chamamento o que se diz é ‘Alá é grande, Deus é grande. Não há divindade que deva ser adorada exceto Deus e Maomé é o seu mensageiro. Venham fazer o Salát, venham fazer a oração. Venham para as vossas obrigações, cumpram com a vossa obrigação. Não há divindade que deva ser adorada exceto Deus’.
Mas, afinal, onde está o muezzin? No minarete não se vê ninguém, não há movimentação no espaço, mas a voz não passa despercebida a ninguém neste lado da cidade. “Antes o chamador ia lá para cima e chamava as pessoas, era a forma de conseguir alertar a comunidade local. Hoje, com os altifalantes, é muito mais fácil. Faz o chamamento cá em baixo e faz eco”, refere. “É uma pessoa destacada para a função, tal como na igreja católica existem padres, capelães, bispos, pessoas que os auxiliam. Normalmente o muezzin é alguém idóneo, alguém que goza de boa reputação no seio da comunidade. Nos países orientais há uma disputa para o ser, mas no ocidente é uma função para a qual, infelizmente, quase ninguém tem disponibilidade: tem de ser alguém que consiga passar boa parte do tempo na mesquita”, explica Khalid.
"Eu, quando me vou encontrar com o senhor presidente da República ou com alguém importante, purifico-me, visto o meu melhor fato, estou apresentável. Da mesma forma, quando eu me vou encontrar com Deus (...) também o devo fazer”, compara Khalid.
Cinco vezes ao dia, a voz ecoa no ar. A primeira vez, entre o despontar do dia e o nascer do sol, chama para o Fajr e, além das frases base, diz que “A oração é melhor do que o sono”. Mas tem ainda outra particularidade: na oração da aurora o chamamento é mais baixo. “É uma questão de respeito com a comunidade local. Não que alguém nos tenha dito algo, mas a CIL prefere que assim seja”, diz.
Rezar: uma obrigação do Fajr ao Ishá
Alvorada (Fajr), meio-dia (Zuhr), meio da tarde (Assr), pôr-do-sol (Magrib) e noite (Ishá). Na mesquita, noutros espaços de oração ou individualmente, é obrigação de todos os muçulmanos cumprir estes cinco momentos de oração, todos os dias. “No fundo, o objetivo é varrer o dia, para que o fiel, o crente, esteja sempre em contacto com o Criador. Da minha experiência pessoal, muitas vezes estou atrapalhado, fustigado com os problemas do dia-a-dia, e a oração é uma introspeção importante”, confidencia Khalid D. Jamal.
Além do chamamento, a preparação das orações implica uma série de cuidados. O ritual de purificação — a ablução (wudú) — é feito por homens e mulheres, mas em locais separados. O balneário masculino tem as portas abertas e consegue-se ver lá para dentro a partir do pátio central. Sapatos e meias espalhados não são sinal de desarrumação ou desorganização, mas sim de respeito pelo que vai acontecer. “Nós paramos para fazer a oração, purificamo-nos. Devemos lavar três ou quatro partes principais do corpo: as mãos, a cara, os pés, os braços. É um ritual que, para além de simbólico, é também físico, porque vamos entrar em contacto com Deus. Eu, quando me vou encontrar com o senhor presidente da República ou com alguém importante, purifico-me, visto o meu melhor fato, estou apresentável. Da mesma forma, quando eu me vou encontrar com Deus, quando me vou relacionar com Deus por meio da oração, também o devo fazer”, compara Khalid.
O espaço equivalente para as mulheres fica mais escondido, mas a função é a mesma e a forma de fazer a ablução também.
Mais uma vez, a conversa tem de ser interrompida. Faltam dois ou três minutos para a oração das 14h. Despedimo-nos por instantes: as mulheres rezam no piso superior, ficando assim “mesmo por cima do local onde os homens fazem a oração”.
“Costumo dizer, na brincadeira, que aqui as mulheres fazem [a oração] no piso superior, por isso estão acima dos homens”.
Antes de entrar, um cuidado: tirar os sapatos e deixá-los arrumados numa estrutura com vários compartimentos de madeira. De pés a tocar o tapete em que se desenham várias divisões — um retângulo por pessoa —, entramos na sala feminina. Tem a forma de U e a vista para o piso de baixo, onde estão os homens, é feita através de uma espécie de gradeamento irregular de madeira. Há ‘janelas’ maiores do que outras, que permitem espreitar o que se passa.
É terça-feira, mas nem sempre a mesquita é assim tão pacata, explica depois Khalid. “À sexta-feira vêm muitas mulheres à mesquita. Durante o dia, mesmo lá em baixo [na parte dos homens] estavam poucas pessoas". E há pormenores a considerar. "Fazemos as orações sempre virados para Meca. Aliás, em qualquer mesquita a primeira grande preocupação é perceber em termos funcionais como é que o espaço vai estar orientado”.
Quanto à divisão do espaço entre géneros, a justificação é, para Khalid Jamal, bastante simples: “Costumo dizer, na brincadeira, que aqui as mulheres fazem [a oração] no piso superior, por isso estão acima dos homens”. Mas, na verdade, tudo isto tem uma lógica. “Sabemos que a mulher distrai o homem e o homem distrai a mulher. No nosso caso, isso ainda aumenta mais porque, quando fazemos a oração, esta não é somente espiritual, tem movimentos físicos: genufletimos os braços, fazemos a prostração. Seria desapropriado uma senhora que estivesse de saias prostrar-se à frente de um homem. A razão física é que impossibilita que homens e senhoras façam a oração no mesmo espaço”, explica.
Durante os cinco minutos que dura a oração na mesquita - há um relógio de ponteiros no espaço feminino e um digital lá em baixo, com grandes números vermelhos - as pessoas vão chegando. Afinal, a hora de oração é ampla, pelo que não significa que quem chegue depois não cumpra a sua duração. “A oração inicia-se a uma determinada hora e tem uma hora limite. Está tudo feito em função do calendário lunar. Há uma hora que é a hora do Jamah, que significa ‘congregação’. A oração em congregação tem uma hora fixa, que neste caso são as 14h aqui na mesquita. Mas se alguém chegar atrasado pode juntar-se, sem qualquer problema”, explica Khalid.
“Todo o ser humano terá de provar o sabor da morte”
Uma mesquita, centrada na comunidade e em todas as suas necessidades, tem também de pensar na morte. Tal como os católicos, os muçulmanos acreditam numa vida quanto esta, terrena, acabar: há-de chegar o “dia do Juízo Final”, diz Khalid. Seguindo uma lógica “quase faraónica”, no islamismo há preocupação com o corpo do defunto. E foi precisamente por isso que surgiu, na Mesquita Central de Lisboa, a primeira morgue islâmica a nível nacional.
Assim que a porta se abre, um aviso: “Atenção que tem um cheiro muito próprio, porque nós, muçulmanos, quando existe uma morte na comunidade, primeiro damos um banho ao corpo”. O odor é forte, mas agradável pela diferença repentina. Cheira a incenso e a cânfora. O objetivo é, além do ritual de ablução do corpo, uma forma de tirar o cheiro da morte que porventura se pode fazer sentir.
É no Alcorão que se baseia a tradição. “Da terra viestes, para a terra ireis e da terra ressurgireis”. “Ressurgiremos depois da morte. A alma não morre, o que morre é o corpo físico. Um dos rituais que está prescrito na nossa religião é, no fundo, um banho, uma preparação. Aqui há uma lei que obriga à autópsia e o princípio religioso do islão é o enterro propriamente dito, pelo que a inumação deve ser feita o mais breve possível. Isto para não fazer sacrificar o de cujus [o defunto]”, explica Khalid.
Contudo, as regras do país não são ignoradas. “Às vezes, por ignorância, as pessoas acham que no islão as leis da religião se sobrepõem às leis do país. Eu não penso assim, na comunidade também não pensamos assim. No fundo, a lei religiosa não entra em conflito com a lei local. Quando a lei local ou o ordenamento jurídico obriga a que se faça uma autópsia, nada a obstar nesse sentido”.
Os ritos, esses, são diferentes do habitual. Além do banho, a forma de sepultura é singular. “O corpo é sepultado apenas com uma mortalha. Não há qualquer tipo de caixão. A única coisa que pode haver muitas vezes é uma pequena madeira que é colocada em cima, mas tipo serrapilheira, para que quando comecem a colocar a areia esta não bata diretamente sobre o corpo. Mas é mais por uma questão de respeito por nós que estamos ali, do que a nível de respeito pelo corpo que nada sente”, diz.
Numa mesinha, alguns objetos deixam adivinhar o ambiente dos velórios. Há caixinhas, restos de incenso, algumas folhas perdidas que com certeza guardam orações. Mas o que ressalta é o azulejo, imponente, a meio da sala. Ali está escrito “todo o ser humano terá de provar o sabor da morte”. E a ideia é aparentemente simples: “Serve para que as pessoas se recordem que vida é terrena, a vida é passageira. E a vida do além é a vida em que vamos estar em comunhão com Deus”.
Nem só de oração vive a mesquita
Aos olhos de quem nunca lá havia entrado, a mesquita é um mundo onde é possível perder-se. Ao longo de quatro pisos encontra-se de tudo. Além dos espaços de oração, há uma biblioteca, salas de reuniões, salões para as mais variadas atividades, um restaurante de raízes indianas e um refeitório e, imagine-se, um pavilhão multiusos. David Munir, o imã, tem também a sua habitação dentro da mesquita.
"A mesquita deve ser um local aberto e que não deve estar circunscrita ao aspeto religioso. Se não, perde graça."
Contudo, na mesquita, que tem as portas abertas a todos, cabe tudo. Até desporto. Khalid explica que o pavilhão “sempre existiu, mas não tinha as mesmas condições. O espaço assim como está é recente, tem pouco mais de um ano. Agora está mais nobre. Foi feito para vários desportos, tem balneários, todo um apetrecho tecnológico”. Ali jogam pessoas da comunidade, sempre que querem, organizam-se torneios e também já foi um espaço utilizado para treinos do Sporting Clube de Portugal.
Há uma perceção instantânea da ambivalência do espaço: marcações para basquetebol, andebol, voleibol, badminton, futsal, aparelhos para ginástica. Na mesquita reza-se, mas também se joga. E com um objetivo muito específico. “Isto também é um factor de agregação. A prática do desporto, a assimilação e a culturação dos nossos jovens é muito importante, porque de outra forma não vamos conseguir ter uma comunidade pacífica e integrada. O nosso grande objetivo é a integração no seio da sociedade portuguesa e isso só se faz através de atividades de outra índole. Não é só religião! Há espaço para tudo. Há espaço para a religião, mas eu quero promover aqui outras atividades no âmbito desportivo, cultural, exposições, mostras de arte. A comunidade tem de ser ativa”, explica Khalid.
"O meu ego pode embriagar-me, o meu orgulho pode embriagar-me. Uma mulher pode embriagar um homem e o contrário, não é?”, pergunta.
Em Portugal, cada vez mais há uma abertura dos espaços religiosos para a realização de eventos culturais. Nas igrejas já não se ouve apenas música sacra: concertos de pop e rock têm também lugar. Há também exposições ao longo das paredes, dando uma outra vida - mais inusitada - ao espaço. E na mesquita tal seria possível? “Não vejo qualquer objeção nesse sentido [de abrir portas a atividades], antes pelo contrário. Como disse, defendo que a mesquita deva ser um local aberto e que não deve estar circunscrita ao aspeto religioso, se não perde graça. Qual é a piada de ter um espaço destes, enorme, com as valências que nós temos, se não o usarmos?”, questiona Khalid Jamal.
Contudo, há especificidades do islamismo que têm de ser respeitadas. A mesquita pode acolher “uma mostra fotográfica ou algum evento dessa natureza, desde que atinente aos princípios, aos cânones islâmicos, aos bons costumes”, mas a questão da música já é mais controversa e Khalid explica o porquê. “A música no islão é um tema controverso e a doutrina diverge. Há pessoas que a entendem proibida e outras que não. O quê que o islão condena verdadeiramente? Condena o estado de embriaguez, que não é exclusivo das bebidas alcoólicas. O meu ego pode embriagar-me, o meu orgulho pode embriagar-me. Uma mulher pode embriagar um homem e o contrário, não é?”, pergunta. “Tudo aquilo que me tire a minha capacidade de clarividência e discernimento e me esvazie a capacidade de tomar decisões racionalmente é condenável [para o islão]. Deste modo, a música também pode embriagar.
É, então, uma questão de interpretações. “A doutrina é muito larga e há teólogos que defendem coisas distintas. Uma das belezas do islão assenta precisamente nesta multiculturalidade e nesta interpretação diversa. Porque não há uma interpretação autêntica. Nós não temos uma autoridade tradicional hierarquizada ou piramidal como o Vaticano que nos indique como é que devemos interpretar o Alcorão. Eu posso interpretar de uma forma e outra pessoa de outra”, afirma Khalid.
Quando a religião e a política se misturam
Se quem conta um conto acrescenta um ponto, quem lê também pode olhar em demasia para as entrelinhas. Falando de religião, é isso que muitas vezes acontece. Quem o prova é Khalid, de olhos postos no islão e no caso específico da Arábia Saudita.
“A Arábia Saudita tem as duas grandes mesquitas, os santuários do islão, e o rei é o seu guardião. Há muitas pessoas que se reveem no rei e acham que ele é o grande líder da comunidade Umma, que significa povo, nação, continuação do profeta, os herdeiros da palavra do profeta. Maomé deixou-nos um legado: esta religião e a palavra de Deus. É por isso que nós nos vemos como uma comunidade, um rebanho”, começa por dizer. É neste sentido que, para os sauditas, o rei é o líder da Umma. Contudo, há quem não o reconheça como tal.
"A nossa cultura é muito importante - para não dizer determinante - na forma como vivenciamos o fenómeno religioso”
Mas, afinal, poderia uma autoridade máxima, tal como acontece na igreja católica, criar maior coesão? “Falaríamos a uma só voz, a palavra e o discurso tornar-se-iam mais homogéneos e mais pacifistas. Mas também há riscos. Imagine-se o exemplo desta autoridade ir parar às mãos de um tirano. Então teríamos uma III Guerra Mundial e uma Revolução. É preciso ter alguma cautela”.
As interpretações são mais que muitas e, com elas, surgem alguns mal-entendidos. Mas até esses fazem parte, diz Khalid. “Deus diz no Alcorão que nos criou de várias tribos, de vários povos, de várias culturas porque assim quis. Se Ele quisesse ter-nos-ia criado de um só povo, mas não foi isso que Ele fez. E, portanto, acreditamos que fez isto desta forma para que o ser humano soubesse conviver”.
Imbuído num espírito de comunhão e partilha, o islão quer mostrar a sua multiculturalidade. “Um português, como eu, que professe a religião islâmica vivencia a religião de forma diversa de um muçulmano que está na Indonésia, de um saudita, de um magrebino de Marrocos ou até mesmo de um chinês. A nossa cultura é muito importante - para não dizer determinante - na forma como vivenciamos o fenómeno religioso”, remata.
"Os Direitos Humanos, e o valor da vida, são indispensáveis e absolutos”, diz Khalid.
Para um muçulmano, independentemente do local do mundo onde esteja, a religião é o centro da vida. “Ainda não se viu e não sei se vai haver no futuro muçulmanos que digam ‘eu sou muçulmano, mas sou não praticante’, explica Khalid. “Isto não existe ainda, fundamentalmente porque o islão tem 1439 anos de história e porque deixa pouco espaço para o vazio de prática. Este argumento cronológico não pretende ser uma justificação, mas julgo que é uma explicação razoável para um islão que ainda está a atingir o ponto de maturidade”.
Contudo, o oriente e o ocidente vivem os fenómenos de modo diverso. No ocidente há uma clara separação entre Estado e religião, mas o mesmo não se passa no oriente. Esse é, para Khalid Jamal, um dos pontos que é preciso explorar.
“Há uma franja de sobreposição entre a religião e o Estado nos países de maioria islâmica, porque não há uma sociedade dita laica ou secular. Geralmente, os líderes, muitas vezes reis ou emires, são líderes religiosos e líderes políticos. Comulam na sua figura esta autoridade central, do ponto de vista religioso e político. Isto baralha aqui um bocadinho as coisas”, ressalta. Assim, há medidas que são associadas à religião quando podem ser apenas do foro político.
"As religiões têm sido injustamente julgadas e tem-lhes sido atribuída a culpa de todos os males, em casos de terrorismo. São o elo mais fraco"
Neste sentido, é impossível não se falar nos Direitos Humanos, que por vezes parecem ser atropelados no oriente. Khalid faz, ele mesmo, a pergunta-chave: “Será que os países árabes têm de amadurecer no respeito dos direitos humanos?”. A resposta, essa, é imediata. “Quando se atropelam ou quando há medidas que são contrárias aos Direitos Humanos, pois então sacrifique-se a religião ou qualquer outro valor em prol disso. Os Direitos Humanos, e o valor da vida, são indispensáveis e absolutos”, diz. Mas é preciso referir, também, que a religião não é incompatível com o respeito pelos Direitos Humanos.
Apesar disso, é difícil resolver a questão dos grandes líderes que, por vezes, surgem com medidas mais restritivas. Nos países de maioria islâmica o rei não é somente uma figura simbólica. “É o garante de estabilidade, é o garante da paz. E será que a figura do monarca é dispensável? Esta é uma pergunta legítima que eu faço. É importante que se faça esta e outras perguntas para que depois não assistimos a algumas revoluções nos países árabes que não sei se serão profícuas”, refere.
“Sob a falsa capa da religião existem outros tipos de agenda. Não sei de que índole. Política, económica, seja o que for. Mas as religiões têm sido injustamente julgadas e tem-lhes sido atribuída a culpa de todos os males, em casos de terrorismo. São o elo mais fraco. Também há alguma culpa dos religiosos, porque não se impõem o suficiente. Porquê que é tão impopular falar sobre religião? Porque é que, quando se fala sobre religião, as pessoas acham que é um assunto enfadonho? Baniu-se completamente a religião da discussão pública. A religião passou para outro plano. Não diria para segundo plano, mas para um plano distinto. Não sei se essa separação é muito saudável”, remata.
Portugal. Não precisamos de ter medo
Olhando para a Europa dos últimos anos, é normal que se fale em extremismo religioso e que surja o medo de ataques terroristas. Contudo, a CIL tem uma visão que vem, certo modo, apaziguar os anseios dos portugueses.
"Diria, com toda a segurança, que Portugal, este retângulo à beira-mar plantado, é um país que acolhe muito bem”.
“Em Portugal não faz sentido [ter medo]. A experiência que temos é que as pessoas que vêm para cá são pacíficas e mesmo as que possam ter outras pretensões ficam tão agradadas com a nossa vivência e com a nossa ‘portugalidade’ que rapidamente acabam por se envolver no nosso espírito nacional. Como é óbvio, dizer isto não significa que não olhemos para o fenómeno com atenção e que não sejamos observadores atentos — alguém que olha as realidades e que, na medida do possível, faz tudo e exerce toda a sua influência, todos os seus filtros, todo o seu savoir-faire e toda a sua sapiência no sentido de prevenir —, porque estamos no âmbito da prevenção, face a qualquer tipo de fenómeno de extremismo ou de radicalização, não só no seio da comunidade mas também naqueles que, não sendo membros da comunidade, a nível nacional se digam muçulmanos”, refere Khalid.
No que diz respeito à discriminação religiosa, a Comunidade Islâmica de Lisboa tem também um papel ativo no país. “Nós temos um observatório e fazemos parte da Comissão da Liberdade Religiosa e de vários organismos que pretendem combater estes fenómenos de xenofobia e eventual racismo religioso”, refere Khalid. “Sentimos um ou outro caso pontual, mas eventualmente as pessoas também são mais sensíveis e confundem um bocadinho as coisas. Diria, com toda a segurança, que Portugal, este retângulo à beira-mar plantado, é um país que acolhe muito bem”.
“Há a questão da Jihad que dizem que significa guerra santa e não é nada disso. Significa empenho. Eu sou um jihadista, e sou um talibã. (...) Talibã significa estudante e eu sou um estudante, vou ser sempre um estudante eterno (...)”, explica.
Portugal é, segundo Khalid, uma “página em branco” no que toca a discriminação e extremismo religioso. “Não há, felizmente, nenhum registo de algum extremar de posições, de parte a parte. Mas essa conquista, para mim, deriva da conjugação de duas variáveis: por um lado, países de acolhimento simpático, como é o caso de Portugal, que recebe bem, seja emigrante ou não, mesmo com uma realidade religiosa diversa da dominante que é a católica-cristã; e por outro, somos muçulmanos exemplares, digo-o de forma vaidosa e fazemos por isso. Há muitos portugueses que professam a religião islâmica e que, como disse, dão mostras de aceitação e boa colocação", diz.
Contudo, alguns mitos persistem. Não apenas em Portugal, mas a nível mundial. E são, principalmente, más interpretações, expressões que não são lidas da forma certa. E Khalid brinca com isso, porque é a rir que se desmancham equívocos. “Há a questão da Jihad que dizem que significa guerra santa e não é nada disso. Significa empenho. Eu sou um jihadista, sou um talibã. Às vezes digo isto na brincadeira e as pessoas assustam-se. Talibã significa estudante e eu sou um estudante, vou ser sempre um estudante eterno. Na área jurídica todos são estudantes, mesmo como na medicina e no jornalismo”, explica.
“O diálogo intercultural e interreligioso não é uma realidade cor-de-rosa”
Apesar de Portugal ser um país cooperante, a verdade é que a questão do diálogo religioso, atual e pertinente, ainda precisa de ser mais implementada. Um dos grandes problemas é não se compreender exatamente o que este significa. É não discriminar? Aceitar mesmo que não se concorde com aquilo que é defendido? Em que consiste este diálogo?
“O diálogo intercultural e interreligioso não é uma realidade cor-de-rosa, não é uma realidade idílica, romântica. Não é dar as mãos e dizer ‘vamos ser todos amigos’. É mais do que isso: é percebermos as nossas diferenças, identificarmos as nossas diferenças e, dentro dessas diferenças, criarmos e trilharmos um caminho comum. É isso que eu defendo, porque na realidade aquilo que nos aproxima é o valor da compaixão, a religiosidade do ser humano — porque a religiosidade é uma prática, um plano sublime e transcendental que todo o ser humano deve experienciar.
Seguindo esta ideia, o islão diz que o ser humano deve andar no mundo como um barco anda sobre a água. “O barco precisa da água para ‘viver’, nós também precisamos do mundo para satisfazer as nossas necessidades de comer, beber, de nos relacionarmos com as pessoas. Mas não podemos mergulhar no mundo. Um barco, se mergulha, ou se torna um submarino ou vai ao fundo. É como o crente: deve relacionar-se com o mundo mas não viver em prol disso, porque há uma outra realidade metafísica além desta realidade terrena, que deve orientar e reger as nossas decisões e o nosso conhecimento”. E, para o barco ser levado a bom porto, é também preciso agir. Superar ventos, com boas técnicas, e saber olhar em volta, sempre com tolerância para a diferença que nos pode rodear.
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