Na sua época, que coincide com o período do Estado Novo, José Leitão de Barros foi uma figura nacional de grande relevo, conhecido por toda a gente e muito ligado a grandes iniciativas culturais. Fez filmes icónicos, como “Ala-Arriba”, “A Severa” e “Camões”, (foi premiado na Bienal de Veneza), fez parte do grupo que criou a Exposição do Mundo Português e inventou as Marchas Populares de Lisboa e a Feira Popular; teve um papel preponderante nas grandes festas nacionalistas que o regime utilizava como propaganda. Alargou o seu sucesso a Espanha e ao Brasil, em vários projetos que nem sempre resultaram, mas impressionaram. Também foi cenógrafo e dramaturgo. Pintava, embora não se considerasse um pintor; e escrevia com verve e humor. O seu último projeto, a reconstrução duma nau da época dos descobrimentos, nunca chegou ao fim, o que o amargurou bastante.

Na fase decadente do Estado Novo, depois da II Guerra Mundial, Leitão de Barros afastou-se da vida pública e passou a fazer uma crónica semanal no Diário de Notícias, “Os Corvos”, que era lida pelo país inteiro. Entre 1953 e a sua morte, em 1967, a coluna mostra toda a vivacidade, inteligência e crítica dum homem brilhante que não se conforma com a mansidão e a censura que o regime impunha. Casado com Helena, artista plástica e filha do conhecido aguarelista Alfredo Roque Gameiro, viveu rodeado de arte e  levou a arte ao cidadão comum.

Não é estranho, uma neta fazer a biografia do avô?

Não acho estranho, acho estranhíssimo. Ilegítimo, mesmo. Muito suspeito. Eu sabia que isso seria uma questão que seria levantada por muitas pessoas e, apesar disso, resolvi fazer!

Foi por amor ao avô?

Não sei se tinha muito amor ao avô. Não o conheci, morreu quando eu tinha cinco anos, portanto não me recordo. Só me lembro do dia em que ele morreu, de ver o meu pai triste. Mas não me lembro da voz dele. Fiquei escondida num quarto de vestir, a tentar perceber o que se passava no quarto ao lado. Sentia um cheiro a acetona e fiquei muito quietinha.

Então foi por achar que a obra dele era importante?

Também não. Eu tinha consciência de termos tirado aquelas papeladas do Leitão de Barros da casa quando a desmanchamos. Foi para uma arrecadação. Tenho uma irmã historiadora e todos sabíamos que as coisas estavam lá. Depois, houve uma altura em que trouxe os papéis e comecei a consultá-los, sem saber se tinham alguma importância. Havia fotografias, dossiês. Então comecei a perceber que ele tinha guardado as coisas com um sentido, com importância. Não eram papelinhos.

Portanto ele arquivou as coisas que achava que podiam ter interesse.

Sim. Houve dois incêndios nas casas da família e desse período falta informação. Além disso estava tudo muito disperso e era difícil estabelecer uma sequência. Mas havia um processo separado e bastante completo, o da Nau São Vicente. Ao ver aquele trabalho, aquela teimosia, tenacidade, a reinvenção do processo ao longo de 17 anos, os parceiros que desistiram, as traições, as grandes e pequenas desilusões – quer fosse meu avô, quer não fosse, foi uma voz que me deixou de ser indiferente. E comecei a partir aí.

Acha que conseguiu ser imparcial?

Acho. Foi um risco calculado. Sabíamos que a figura de netas iria ofuscar a de biógrafas. É muito ilegítimo e suspeito, isto de escrever sobre um avô. Tivemos um cuidado redobrado no rigor sobre o qual construímos o livro. Todas as fontes estão referenciadas. Em vez de fugir dos temas mais suscetíveis, escolhemos partir deles e [quisemos] ouvi-lo. Formalmente isso é evidente, cada capítulo abre com uma citação de Leitão de Barros.

Agora, não sei se terei feito ou não um trabalho isento ou mesmo se será possível biografar com isenção. Estou a acabar um romance baseado na vida de uma escritora do início do século XX e passei precisamente pela mesma que conversa que não se esgota na razão. Espero que aí não me venham a julgar como neta.

O Leitão de Barros está completamente esquecido. Perguntei a várias pessoas na casa dos cinquenta anos e ninguém sabe quem ele foi.

Ele está esquecido, sem dúvida nenhuma. Tenho uma sobrinha que tirou o curso da Escola Superior de Cinema e nunca ouviu falar dos filmes dele. E mesmo na família, havia os silêncios da minha avó. Contou-nos muito pouco. Era uma senhora melancólica e pouco dada a evocar glórias ou amarguras passadas.

Somos sete netos. A ideia que temos de Leitão de Barros e da nossa família é absolutamente diferente entre nós. Nem preciso de ir mais longe, a rapariga sensível que encontro na avó, Helena Roque Gameiro, é outra pessoa para as minhas irmãs. Não me lembro de a ouvir falar no marido ou nalgum filme. Penso que não quis transportar saudades e memórias pesadas às netas mais pequenas, precisamente as que pouco ou nada se lembravam do avô.

Eu penso, não sei se você concorda, que houve um corte, com a Revolução (de 1974) e tudo o que é Estado Novo, bom ou mau, pelo facto de ser ancien regime, foi emparedado, digamos assim. O Estado Novo teve grandes figuras, e só dizer isto já é...

Uma provocação!

Exatamente. E eu, que vivi nesses tempos, sou completamente anti Estado Novo. Fiz a tropa, sofri todo o obscurantismo e absolutismo ideológico por que todos os portugueses passaram. Mas conheço a História, e o Estado Novo tem dois períodos, o primeiro até 1945 e o segundo no pós-guerra. Outra coisa que não se pode dizer é que no primeiro período o regime era popular; as pessoas gostavam daquilo.

Pois, tinham esperança que o país crescesse, que mudasse.

Joana Leitão de Barros créditos: Pedro Marques dos Santos | MadreMedia

E a partir de 1945 deixaram de ter. Aos poucos, essa esperança foi-se desfazendo. As razões serão muitas e variadas, da pobreza endémica à guerra sem sentido, mas o facto é que só encontramos grandes figuras culturais – estéticas, mais propriamente – no primeiro período. O segundo período, que é o que eu conheci, é esteticamente miserável. Não tem nada que se aproveite.

E o Leitão de Barros sentiu isso. Há uma carta em que ele fala do “ambiente pífio” em que se vivia. Houve ali um esmorecimento de toda a criatividade. Não havia liberdade para grandes voos.

A dúvida que fica, e você nem tocou muito nisso, é que o Leitão de Barros, o Cottinelli Telmo, o Almada, todos esses que eram muito bons, os arquitetos, o Cristino da Silva, o Keil do Amaral – uma gente fantástica –, nós não sabemos se eles eram mesmo salazaristas, ou se a única possibilidade que tinham de trabalhar era alinhar com as iniciativas oficiais.

Eu acho que, durante a primeira fase, o Leitão de Barros acreditou que havia ali uma possibilidade de crescimento para o país e aceitou o regime. Mas na biblioteca dele não há livros ideológicos. Sobre chefes de Estado e coisas assim. Ele não tinha qualquer culto do sucesso político. O que lhe interessava era a estética.

Ele era amigo do Duarte Pacheco, não era?

Tiveram uma relação profissional. Não diriam que eram amigos. Mas admirava-o.

O Duarte Pacheco e o António Ferro eram fascistas assumidos e foram eles os responsáveis pela imagem do primeiro período salazarista. Os outros, que citei, queriam sobretudo criar – e a única possibilidade que tinham de realizar alguma coisa era através desses dois.

O Leitão de Barros até tentou sair do país, trabalhar lá fora. Mas ele amava isto. Nesse sentido era patriota, queria fazer um cinema português. E foi lá para fora porque via que aqui não era possível realizar certos projetos. Além disso era um tremendo individualista, estava mais interessado em fazer do que na aceitação e integração em qualquer círculo. “O Homem que Passa”, pseudónimo que usa nos primeiros anos de jornalista e crítico teatral, não está preso a julgamentos. Ele disse-o mesmo, não lhe interessavam as Escolas e as estéticas. O que acabou por suceder foi que os modernistas não lhe perdoaram a inicial proximidade a Columbano, a Júlio Dantas, Roque Gameiro ou Raul Lino, enquanto os académicos desconfiavam eternamente do seu desalinhamento.

Eu vejo que ele, sempre que podia, era bastante crítico. Tinha um grande humor.

As pessoas dizem que ele era um conversador nato, tinha muito humor e sarcasmo, e também era um sentimental. Não há ponta de cinismo nas suas relações, acaba a vida rodeado de afecto. Um trabalhador com uma energia inesgotável, que desenvolve cada ideia do princípio ao fim. Um criador compulsivo, um lutador incansável por cada filme, por cada projeto, já sempre a sonhar com o próximo. Escolhe o argumento, planifica-o, procura os atores – o que não devia ser nada fácil naquela altura. Por diversas vezes lança concursos nacionais, na ânsia de descobrir talentos – produz muitas vezes, dirige, filma, alimenta a imprensa, monta, pensa nos sound bytes com que deve ser apresentado ao público, cria os eventos do lançamento, promove o filme. E era muito bom em muitos destes passos, na alimentação da imprensa e na sua comunicação, por exemplo.

Pessoalmente era muito elegante, dá para ver nas fotografias.

Era. Mas também chegava ao estaleiro e punha o seu fato de macaco, andava de moto com sidecar. A trabalhar, era um operário.

Tem uma obra muito vasta e diversificada, não é? As Marchas Populares, cenários...

Os cenários foi numa fase inicial, na década de 1920. Ele era um pintor, começou como pintor, mas interessou-se rapidamente por jornalismo, pelo teatro e começou a fazer cinema logo em 1918, com a Lusitânia Filmes.

É interessante que ele não tenha querido fazer aquele filme de propaganda do Estado Novo, que acabou por ser feito por António Lopes Ribeiro.

Sim, “A Revolução de Maio”. É sintomático, porque ele nunca recusava um filme. Gostava de filmes históricos, com produções espetaculares para a época, e igualmente filmes sobre o povo, como os da Póvoa do Varzim.

Os filmes históricos serviam aos nacionalistas, mas assim ele evitava uma postura ideológica direta porque eram sobre personagens do passado. Como o “Camões”, uma figura que o regime queria promover, mas que era sobretudo um património que pertence ao país, seja qual for o regime.

Penso que todos os artistas dessa época tinham a mesma postura, que era a consciência de que a única maneira de fazer alguma coisa era passando pelo António Ferro. E o Ferro era muito moderno, queria experimentar. As pessoas preferem ignorar que o fascismo antes da guerra era um movimento com intelectuais. A esquerda é que depois os associou às barbaridades nazis. Mas nesse período havia intelectuais fascistas e comunistas, do mesmo nível. Com grandes debates ideológicos. Com a queda dos fascismos, os de direita caíram em desgraça e desapareceram.

Mas, voltando ao António Ferro, os artistas tinham de passar pelo filtro dele e, como era uma pessoa tratável, aberto a propostas (que fossem úteis aos seus objetivos, claro), civilizado, modernista, casado com uma poetisa...

Sim, a Fernanda de Castro, que era amiga da família Leitão de Barros.

Mas então, se eles não alinhassem, não teriam feito nada. Não tinham a ideia de que estavam a ajudar um regime, mas sim o país.

Acho que houve um entusiasmo naquela geração pelo o que o Ferro permitia que fizessem, porque era sensível aos seus ideais estéticos.

Em 1945 o Salazar achou melhor afastar o Ferro e mandou-o para a Suíça, para fazer uma maquilhagem nova do regime. Com a morte do Duarte Pacheco, em 1943, e o desterro do Ferro, o Estado Novo entrou numa decadência estética, cultural. Porque o Salazar não percebia nem se interessava pelas artes, pela arquitetura, pintura... Por falar de pintura, há material suficiente do Leitão de Barros para fazer uma exposição?

Há. A publicação da biografia fez com que várias pessoas que têm peças dele viessem falar connosco. Mas foi uma fase da vida dele, porque depois deixou de pintar. E as coisas do fim – ele voltou à pintura em 1958, quando esteve doente em Londres – já são menos naturalistas. Numa entrevista quase no fim da vida, ao Igrejas Caeiro, disse que se pudesse destruiria tudo o que tinha pintado porque a sua obra não estava na pintura. Ele morreu muito insatisfeito com tudo o que fez. Acho que se encontrava e revia no filme “Maria do Mar”, mais do que nos filmes históricos. Apesar de que fazer filmes históricos naquela altura era uma aventura; tinha tudo para correr mal. Havia muito pouca profissionalização, poucos especialistas em guarda-roupa e acessórios dessas épocas. Mas, mais do que o rigor, ele queria o espetáculo. Não ficava sem sono por saber que na “Severa” não usou a guitarra portuguesa, que só foi inventada 50 anos depois.

créditos: Pedro Marques dos Santos | MadreMedia

Queria era transmitir a sensualidade da Severa.

Exatamente. Mas ele também quis experimentar outro tipo de registo, como na “Maria Papoila”, com pessoas que não eram atores. Na tal entrevista no fim da vida diz que gostaria de voltar a filmar com amadores, a fazer uma história do dia-a-dia, humana, sem cenários.

Nessa fase final ele já não tinha uma vida pública intensa.

Pois, a casa dele, a Toca, foi construída em 1955, e a partir daí o único projeto a que se dedicou foi a Nau, que inicialmente se chamava a Nau do Vinho, para promover os vinhos portugueses pelo mundo. Era um galeão, não uma caravela. Foi uma ideia que testou os seus limites da perseverança, diplomacia, credibilidade e influência, ao longo de 17 anos, até morrer. Na primeira fase recebeu o entusiasmo de Júlio Castro Fernandes, ministro da Economia, e o seu financiamento foi prometido pelo Fundo de Fomento de Exportação. Entre 1950 e 1959, Leitão de Barros fez 179 reuniões com o Ministério da Economia, foi 11 vezes ouvido pela Presidência do Conselho e Salazar recebe-o duas vezes.

Neste período há um grande esforço no planeamento de todas as áreas ligadas a esta ideia, enquanto a Nau, réplica de um galeão do século XVII, era construída na Gafanha da Nazaré. Em 1950 escreve a Chianca de Garcia que “a Nau não é a representação pública do governo, queremos tirar-lhe o caráter político da situação e dar-lhe caráter genérico e e nacional... Apoiam a Nau desde Teotónio Pereira até Nuno Simões, do contra”.

Depois de atracada no Cais da Rocha, para inspeção oficial, a Nau garrou na tempestade de 1967 e foi encalhar num baixio frente ao Barreiro. Acabou pilhada e o seu desaire financeiro silenciado.

É nessa carta que ele diz que o Salazar não se vai aguentar muito tempo, não é?

Não, é numa carta de 1958. Ele era um homem do mundo, estava a par da situação internacional.

Então e os “Corvos”?

O Leitão de Barros era muito pouco convencional. Em tudo, inclusive em questões que só muito depois entraram no debate público. A mulher dele tinha conta bancária, viajava sozinha.

Então, os Corvos foi um espaço onde ele navegava com muito cuidado, mas ia dizendo o que queria. E, não poucas vezes, queixa-se da censura, que considerava um sinal da mediocridade nacional.

Estive na Torre do Tombo a ver a correspondência dele, e não há cartas a pedir favores ou benesses, nem choradinhos para financiamento de filmes. É preciso não conhecer nada dele para achar que era um servidor do regime ou de alguém como o Ferro. Era um criador, um homem cheio de iniciativa, e sê-lo-ia em qualquer regime.