Diário de um pai em casa. Dia 35


De véspera, já tinha decido. Corrida citadina. De manhã. A escolha do local adaptou-se aos acontecimentos recentes. Falo de comemorações e manifestações em tempo de covid-19.

Segui, pelo meu próprio pé, as pisadas de uma manifestação, à qual nunca fui: o 1.º de maio. E antecipei, às portas de onde é feito, celebrações que toda a vida li, ouvi e vi, sem nunca ter ido para a rua ou para as galerias de São Bento.

Inverti as datas. Comecei pelo 1.º de maio. Propositadamente, não escolhi o roteiro da organização sindical, CGTP, que vai sair à rua em tempo de Estado de Emergência. Optei pelo percurso de outra entidade sindical, a UGT, que fica em casa.

As primeiras impressões foram na Igreja de Santa Isabel. Fechada. Seguiu-se o Largo do Rato. Presença notada da Polícia Municipal. Serviços de limpeza e salpicos de gente nas paragens de autocarro.

Perante a ausência de carros, senti-me com coragem. Fui a galope, pela faixa de rodagem da Alexandre Herculano, Rua Braamcamp, em direção ao Marquês do Pombal. Assim que pressentia o bafo de um autocarro, pulava para o passeio.

Aquela rotunda que parece um carrossel em dias normais, assemelha-se, hoje, a uma feira a fechar portas. Sem o anúncio: “só mais uma voltinha”.

Tive o ímpeto de rebolar pela Avenida da Liberdade abaixo. Juro, que se tivesse, à mão, o carro de rolamentos da minha infância, colocaria o capacete da mota que comprei com a impetuosidade da meia-idade e voaria até aos Restauradores.

Nem dei por passar o tempo. Hotéis fechados. Tivoli sem porteiro e sem carros que contribuem para o PIB. Detive o olhar num casal, de máscara, sentado, num dos bancos. E no monumento dos heróis da Grande Guerra. Um múpi de publicidade sobressai dos que declamam “vai correr bem” e “obrigado”. Tem o nº1. É a Remax a dizer presente em tempos de economia de guerra.

O Elevador da Glória, sem elétrico, antecede um Rossio de postal. Uma praça sem viva alma. E o Nicola sem café. Na Rua do Carmo, nem uma sombra de uma mulher bonita. Mais um anúncio. McDonald’s.

No Chiado, Pessoa, sem direito a selfies, ganha pó. Inversão de marcha. Do silêncio do São Carlos, descida até à Praça do Comércio. Vultos de ciclistas urbanos. O sol reflete todos os milímetros quadrados deste deserto à beira-rio. Mais um postal na minha cabeça. Desta vez, a preto e branco.

Um polícia, de mota, lava as mãos e come uma maçã. Percurso interior pelo Cais do Sodré, Rua Cor-de-Rosa e Rua de São Paulo sem vestígios de noites agitadas. Elevador da Bica de portas fechadas. Um ciclista vestido à Volta a Portugal.

As máscaras fazem parte do guarda-roupa de quem anda na rua. Um casal arrasta trolleys. Questiono-me de onde vieram e quando vão partir.

Largo de Santos e Assembleia da República. São Bento, Casa da Associação José Afonso, Casa Amália Rodrigues, Largo do Rato, Álvares Cabral, Igreja de Santa Isabel e chegada a Campo de Ourique.

Lisboa está irrepetível. Se fosse fotógrafo, fotografava-a com um rolo a preto e branco. Necessitei de a sentir, assim, para um dia contar aos meus netos.

Chego a uma casa que desperta lentamente.

O meu filho António, 6 anos, estreia equipamentos de futebol cedidos pelo primo Jaime. Fez do quarto um balneário. Um lugar sagrado. Dormiu com o equipamento do Bayern Munique, tomou o pequeno-almoço vestido de Messi (Barcelona) e almoçou como o Ronaldo (seleção nacional). Camisola, calção e meias. Dormiu de caneleiras e, mal acordou, calçou chuteiras. No intervalo, confidencia-me que é outra personagem: está na faculdade, tem 19 anos, trabalha, tem um Lamborghini e uma mota.

A Teresa, 11, pintou-se. Sorriso rosa choque. Permaneceu de pijama ao longo do dia. Mesmo quando foi para o quintal, com os irmãos, brincar com as cadelas. A Francisca, 13, vestiu-se condignamente pela primeira vez desde que entrou em casa, há um mês. O José Maria, 15 anos, quis respirar. Pedalou por uma Lisboa dos Descobrimentos.

Por fim, a minha mulher foi ao baú, desembrulhou fotografias, algumas a preto e branco, recuperou outras do computador, trocou e acrescentou molduras e pregou quadros que estavam alinhados no corredor. Aproveitou a pausa em que vivemos para recuperar um capítulo da nossa história.