E se pudesse comprar a imortalidade? O tema é apaixonante para a ciência moderna e nos Estados Unidos já se estão a "apagar" as mudanças genéticas que provocam o envelhecimento em minhocas, mas não em humanos. Claro que entre ambos há um abismo. A infusão de sangue novo em velhos, uma espécie de elixir da juventude, é outro campo em que várias empresas de Silicon Valley estão a apostar todas as fichas.

Todos os dias são investidos milhões no envelhecimento e na imortalidade, e a investigação nestas áreas envolve nomes como Larry Ellison, um dos homens mais ricos do mundo e um dos donos da Oracle, Sergey Brin, co-fundador da Google e da Calico, ou Aubrey de Grey, cientista britânico e guru da gerontologia.

Esta segunda-feira, dia 22 de julho, celebrou-se o Dia Mundial do Cérebro e a este propósito - e muitos mais - o SAPO24 publica uma entrevista com a neurocientista Luísa Lopes, que estuda a neurobiologia do envelhecimento no Instituto de Medicina Molecular (iMM) e é professora convidada na Faculdade de Medicina de Lisboa.

Luísa Lopes ganhou no ano passado o prémio “Mantero Belard” da Santa Casa da Misericórdia para as Neurociências, no valor de 200 mil euros, com um projeto sobre a disfunção sináptica, que desempenha um papel crucial na doença de Alzheimer, já que está na génese do declínio cognitivo. O seu objetivo é encontrar o momento exato antes da morte do neurónio, que não se regenera, de forma a torná-la reversível.

Mas há outras doenças neurodegenerativas em Portugal: a doença de Parkinson é das mais prevalentes e estima-se que afete 18 mil pessoas no país. A incidência da doença aumenta com a idade e é previsível que o número de doentes venha a subir significativamente com o aumento da esperança de vida.

Afinal, porque é que o cérebro deixa de comunicar com o corpo? Por que motivo perdemos memória? Porque envelhecemos? Quais os fatores de risco? Quisemos saber tudo isto e um pouquinho mais, e fomos visitar a cientista ao seu local de trabalho, paredes meias com o Hospital de Santa Maria, em Lisboa. Encontrámo-la entre cérebros em PVC, pipetas, ratos de laboratório e a chegada do primeiro material para o novo projeto sobre o que acontece exatamente antes da morte neuronal.

Sobrinho Simões afirmou há pouco tempo que se pudesse voltar a estudar, gostaria de estudar a cabeça. O que a levou a escolher o cérebro, por que motivo se decidiu pelas neurociências?

Sempre quis ser cientista, desde pequenina. Sempre gostei de explorar coisas. A minha mãe conta que das coisas de que mais se recorda é de eu ter feito um projetor de slides com as lentes dos meus óculos - que resolvi tirar da armação - e um candeeiro. Mas também desmanchava os relógios e voltava a montar, tinha esta necessidade de saber como as coisas funcionavam. E ainda gosto de saber como as coisas funcionam. Sou o género de pessoa que lê os manuais de instruções do princípio ao fim, na minha família gozam imenso comigo, e ralho com toda a gente: "Vamos primeiro ler o manual...", até do carro.

Mas essa não foi a sua primeira escolha, foi?

Escolhi Bioquímica, foi isso que estudei na faculdade. Quando fui visitar os vários cursos, achei que era uma ciência que estudava os mecanismos das células, e eu queria ser cientista, cientista à séria. Também gostava muito da parte criminal, ainda hoje adoro investigação criminal, como se apanha um criminoso através de pistas biológicas. Por acaso, depois do curso cheguei a ver que provas era  preciso prestar para seguir essa via, mas rapidamente percebi que não queria fazer a mesma coisa durante muito tempo e acabei por seguir a via académica.

"Dizia-se que apenas usávamos 10% a 20% da capacidade do nosso cérebro. Hoje sabemos que isso não é verdade"

Quando passou a interessar-se pelo cérebro em particular?

O estudo do cérebro em particular teve a ver com um professor que tive no quarto ano da faculdade, que dava Neurofisiologia e Fisiologia, e que agora está em Coimbra. É o professor Rodrigo Cunha, e na altura o entusiasmo dele era tão grande que acabou por me contagiar. A forma como nos dão aulas é muito importante, como também é importante quando fazemos o primeiro estágio. Digo muitas vezes isto aos estudantes: o primeiro estágio - e imagino que seja igual nos outros cursos -, quando é com pessoas que nos inspiram, pode moldar um pouco esta vontade. E este professor dava aulas com muito entusiasmo, entusiasmo pela ciência, pelo que se faz, pelos dados, e isso apaixonou-me. Lembro-me que na altura ele estava a trabalhar no Instituto Gulbenkian de Ciência e nem sequer tinha um estágio aberto, mas eu insisti muito para ir fazer neurociências, o que não era tão comum, a maioria dos alunos de Bioquímica ia para genética, ia estudar o cancro, seguia essas vertentes. Mas eu insisti para trabalhar com ele porque queria trabalhar no cérebro.

E ele acabou por lhe arranjar um estágio?

Primeiro disse-me: "Nem sei se este ano consigo receber estudantes". Mas, de facto, insisti. Esperei, vamos ver. Na altura tínhamos uma vantagem, havia muitas ofertas de estágio, eu não estava preocupada, se não fosse aquilo, outra coisa surgiria. Mas era mesmo aquilo que eu queria, tanto que comecei um bocadinho mais tarde do que os meus colegas. E foi assim que comecei: na altura o quarto ano era a tese, agora será o equivalente ao mestrado, mas o ano era todo prático, o que implicava um projeto de laboratório. O meu projeto foi já em envelhecimento: estudar proteínas envolvidas no envelhecimento.

É mito ou realidade que, da mesma maneira que não usamos um telemóvel ou outros gadgets no seu potencial máximo, também não o fazemos com o nosso cérebro?

A determinada altura dizia-se que apenas usávamos 10% a 20% da capacidade do nosso cérebro. Hoje sabemos que isso não é verdade. As novas técnicas de imagem, sobretudo a imagem funcional - a ressonância magnética funcional, de que agora se ouve muito falar -, que permite ver que zonas são ativadas quando estamos a processar uma informação, a desempenhar uma tarefa, digamos assim, dá-nos muita informação. O que sabemos hoje é que o potencial treina-se. Ou seja, usamos o cérebro em todas as suas áreas - e há até estudos que mostram que usamos áreas que não estaríamos à espera. Sabemos que há uma plasticidade e uma chamada reserva cognitiva, o que significa que temos um potencial maior do que aquele que usamos - e isso vê-se mesmo em adulto, porque se formos treinados para a memória, para exercícios, para processamento de cálculo, conseguimos melhorar o nosso desempenho. Isto significa que temos alguma amplitude, mas não é seguramente esta ideia de que só usamos 20% do cérebro e de que vamos ter superpoderes.

"O cérebro é como uma árvore que vai sendo configurada à altura do desenvolvimento: as zonas que vamos ativar são as que vão ficar reforçadas"

Essa plasticidade, no entanto, é mais "fácil", digamos assim, nas crianças?

De facto, há uma plasticidade que se treina e que é mais visível na altura do desenvolvimento, daí a insistência em estimular a linguagem e os jogos nas crianças em vez de as deixar em frente aos ecrãs, porque isso molda o tipo de configuração sináptica. O cérebro é como uma árvore que vai sendo configurada à altura do desenvolvimento: as zonas que vamos ativar são as que vão ficar reforçadas. Se não as ativarmos nessa altura é mais problemático para depois recuperar essas funções. Daí, por exemplo, o bilingue: diz-se que as crianças têm mais facilidade para aprender línguas. Ou música e por aí fora.

O velho ditado "burro velho não aprende línguas"...

Tudo isto é verdade, mas não implica que mais tarde, e esta é até uma das recomendações para diminuir o risco de demência, a pessoa não continue a ter atividade intelectual, seja ela qual for. O tipo de atividade depende de cada um: continuar a ler, continuar a trabalhar, continuar a escrever livros, continuar a pintar, continuar a fazer puzzles... Tudo isso obrigar diversas áreas a serem ativadas - é um pouco como com os músculos: se o músculo não trabalha, atrofia.

Quanto ao QI [Quociente de Inteligência], há hoje uma desvalorização deste indicador. Concorda?

Não sei responder a isso. Sei o que se sabe em termos de neurociências, que de facto o QI mede uma série de capacidades de desempenho, mas não conheço os estudos mais recentes. Diria que agora há formas de fazer os testes de QI que, se associadas a uma ressonância magnética funcional, permitem saber que áreas do cérebro são ativadas, o que permite saber mais. Mas não sei responder a isso.

Voltando ao envelhecimento. O que é que já se descobriu, nomeadamente na área do envelhecimento precoce, e qual a importância dessas descobertas?

Estudamos muito aquilo a que chamamos o envelhecimento precoce, porque os neurónios, ao contrário de muitas células do corpo, não se regeneram - na sua maioria. Há de facto uma percentagem que se regenera, em adulto ainda temos alguns neuróticos que vão nascendo, mas são residuais. Daí a importância de quando a pessoa tem um AVC, um traumatismo, não perder neurónios, porque se perde, e se a extensão for grande, perde a função que está associada a essa área: se for a área motora perde função motora, se for a área da memória perde memória, se for a área da linguagem perde linguagem, etc. Há uma certa capacidade de redundância de algumas áreas fazerem a função das outras, por isso a fisioterapia, e o cérebro tem alguma capacidade, a chamada plasticidade, mas as células que se perdem não se recuperam. Daí a nossa urgência em estudar a altura exata antes da morte.

"Os neurónios podem disparar até 200 vezes por segundo, são células sujeitas a uma grande tensão durante toda a vida"

Comecemos pelo que já se conhece, primeiro.

Antes de haver morte há muitas coisas, acontecem muitas coisas que nos podem dar pistas. E uma das que estudamos tem a ver com a atividade sináptica. As sinapses são as zonas onde os neurónios comunicam, são zonas muito ativas; os neurónios podem disparar até 200 vezes por segundo, portanto, são obviamente células sujeitas a uma grande tensão durante toda a vida. Acontece que não podemos seguir pessoas e seccionar cérebros, mas nos modelos animais sabemos que há alterações das sinapses que precedem esta morte e que são reversíveis e essa é uma grande vantagem. Um exemplo muito claro tem a ver com o stress crónico e foi revelado por um estudo que fizemos. Estudamos muito os fatores de risco para perder esta atividade sináptica e, no fundo, tentar arranjar pistas para reverter a situação, porque nesta fase ainda conseguimos ter margem de manobra. Alguns estudos que fizemos na área do stress crónico ou do stress pós-traumático mostram que um stress sustentado por um período prolongado causa alterações nas áreas da memória que se refletem no volume do hipocampo, por exemplo. E já se sabia há muito tempo, por estudos de outros colegas, que pode haver atrofia do hipocampo - uma zona crucial para a memória - no caso do stress pós-traumático de soldados de guerra.

O que é que não se sabe?

Na altura pensava-se: isto é muito grave, estas pessoas nunca mais vão recuperar. Só que depois viu-se que é reversível. Ou seja, o que estamos a perder é um pouco o desbaste dos ramos dos neurónios. E é nessa fase que queremos atuar: o que é que leva a haver uma perda sináptica, muito antes de haver a perda da célula em si, e quais os mecanismos, quais os alvos e de que forma podemos atuar. Temos estudos em stress crónico, temos estudos em disfunção circadiária - quem trabalha por turnos e tem uma dessincronizarão do ritmo de trabalho com o ritmo biológico - e trabalhamos com o envelhecimento. De que forma é que isto pode ser um interruptor para a neurodegeneração.

E já estão a chegar a conclusões, em relação aos estudos de que fala?

Temos alguns estudos engraçados. Este do stress crónico já terminou. Conseguimos perceber que há forma de normalizar e que, curiosamente, alguns dos normalizadores são, por exemplo, os análogos da cafeína. A cafeína é a substância psicotrópica mais utilizada, tem efeitos cerebrais muito claros e toda a gente sabe isso: aumenta a vigilância, a atenção, a concentração da maioria das pessoas, mas, além disso, parece nunca perder o efeito: quem toma dois ou três cafés toda a vida não sente necessidade de tomar mais e continua a sentir os efeitos. O que percebemos foi que a cafeína ou análogos que utilizámos em laboratório são eficazes a normalizar aquilo a que chamamos uma hiperexcitabilidade que está ligada a estes efeitos nefastos, seja do stress, seja do envelhecimento. O que estas substâncias fazem é bloquear, normalizar essa atividade anómala - fizemos isso em ensaios de laboratório e em alguns casos já se estão a ver efeitos benéficos. Não se sabe é o mecanismo e é isto que tentamos colmatar. Parece-nos que o mecanismo é comum, o mecanismo no stress crónico, o mecanismo na demência.

créditos: Rodrigo Mendes / MadreMedia

E os estudos sobre o efeito do trabalho por turnos na memória?

Os estudos do ritmo circadiário estão no princípio. O que já percebemos é que o hipocampo é ativado. A nossa hipótese era: será que nós, ao obrigarmos as pessoas a trabalhar por turnos - enfermeiros, pilotos, jornalistas, operários fabris - sobretudo aqueles que têm turnos rotativos, vinte ou trinta anos depois vão estar mais vulneráveis a doenças neurodegenerativas? Há estudos com enfermeiras que parecem apontar para isso, mas não se sabe porquê. Nas pessoas apenas temos dados observacionais, mas os nossos modelos de estudos são animais - são provocadas mudanças de ritmo para verificar se há ou não alterações nas zonas da memória. Temos resultados preliminares que apontam para alterações e numa primeira fase parece que o cérebro está a tentar compensar a memória, a proteger as zonas da memória, e depois já não consegue compensar. Conseguimos perceber que há uma resposta do cérebro a isto, que tenta preservar a área cognitiva. E depois, a partir de uma certa fase, já é mais difícil. Este estudo ainda não está publicado, ainda estamos a confirmar os dados, a verificar se isto se confirma em todas as situações. Embora haja muita gente que convive muito bem com isto, há outras pessoas que convivem pior e queixam-se de problemas associados: falta de sono, falta da memória associada, falta de concentração, problemas ligados à ansiedade, porque obviamente isto liga-se ao cansaço e ao sistema imunitário. Tínhamos um projeto maior para perceber se o sistema imunitário está alterado, sabemos que sim, por exemplo nos pilotos, mas até que ponto tem um impacto na memória não sabemos. O estudo ainda não acabou, está numa fase preliminar e  estamos muito entusiasmados porque é a primeira vez que se estuda um pouco a sequência da ativação de padrões nesta situação e é uma situação que é muito comum nesta sociedade moderna.

"As projeções da Organização Mundial de Saúde dizem que em 2050 deveremos chegar, em média, aos 105 a 110 anos"

Vivemos cada vez até mais tarde, mas vivemos com mais qualidade? Ou, pelo menos, a longevidade e a qualidade de vida são proporcionais?

Tive há pouco tempo uma discussão interessante sobre este tema, numa mesa redonda em que participou também a socióloga Maria João Valente Rosa [ex-directora da Pordata], que fez duas observações muito curiosas. Uma é que não me parece que a longevidade tenha aumentado, isto é, o nosso potencial de viver. Todos os estudos apontam para que tenhamos um potencial de vida até à volta dos 120 anos. A questão é que temos muito mais gente a alcançar esse máximo e a esperança média de vida está a aumentar muito: as projeções da Organização Mundial de Saúde dizem que em 2050 deveremos chegar, em média, aos 105 a 110 anos. Isto tem duas consequências: uma é que ao vivermos mais tempo temos de alterar estes padrões sociais,  queremos viver bem, ninguém quer viver mal - e vê-se que as pessoas estão em melhor forma até mais tarde. A outra é que queremos um envelhecimento saudável - estar bem física e mentalmente. E isto tem sido um desafio, porque, por um lado, já temos pistas que nos ajudam a fazer isso - e posso falar delas - por outro, temos um risco aumentado das doenças neurodegenerativas. De facto, as doenças neurodegenerativas, sobretudo a doença de Alzheimer, tem como maior fator de risco o envelhecimento.

E o que se pode fazer contra o envelhecimento? Como é que eu me protejo?

É não envelhecer [risos].

"Muitas vezes a pessoa reforma-se e nota-se um decaimento da função cognitiva. É altamente recomendável que não deixem de ser independentes, ter objetivos. Não é um livro de autoajuda, é ciência"

Conheço muita gente que não quer envelhecer, mas não sabe como travar esse processo.

Mas podemos fazer e muita coisa. Cada vez mais sabemos os fatores de risco, cada vez mais sabemos como nos proteger. Há um estudo famoso sobre a infusão de sangue jovem em pessoas velhas, o síndrome do vampiro, que foi muito discutido. Sabemos que há fatores solúveis do sangue que nos ajudam a recuperar, mas não quero entrar pela ficção científica, pelo elixir da juventude. Já temos muitas pistas científicas sobre os fatores de risco para diminuir a velocidade do envelhecimento cerebral. E não é pseudociência. Sabemos, e há muitas reportagens sobre isso, que o exercício físico diminui o risco das doenças neurodegenerativas, mas também ajuda na progressão mais lenta, diminui o risco de todas as doenças crónicas - diabetes e doenças vasculares - fazer uma dieta equilibrada, sabemos claramente que pessoas com pior qualidade de sono estão em risco - e pior qualidade de sono não significa necessariamente menos horas - ter atenção ao isolamento social, que tem uma base científica: a depressão, aumenta o risco de demência. Portanto, não há um tratamento, mas o mais promissor são estas abordagens que chamamos multidisciplinares. Para nós seria mais fácil pensar que há um comprimido que vai resolver isto tudo, mas sabemos hoje que provavelmente não vai ser assim, vamos ter de ter abordagens muito diferentes consoante o indivíduo, consoante a sua vida, consoante o que conseguimos nesta interação entre a doença e a pessoa.

A questão é: estamos preparados para isso?

O que vai acontecer, e tem sido muito usado nos países nórdicos, é que há projetos de intervenção para pessoas com mais de 60 anos. Por exemplo, estão dois anos num regime de exercício físico, dieta equilibrada e interação social. Muitas vezes basta fazer exercício físico em grupo e já ajuda. Há dados científicos que permitem concluir que diminui o risco de demência. Falávamos de envelhecimento e não de demência, mas tudo isto faz diminuir o envelhecimento cerebral. Se tentarmos que o nosso cérebro esteja mais jovem, para dizer de forma simples, por isso a importância da atividade intelectual. Muitas vezes a pessoa reforma-se e nota-se um decaimento da função cognitiva. É altamente recomendável que não deixem de ser independentes, não deixem de ter uma agenda, compromissos, coisas para fazer, atividades, cultivar o estímulo intelectual, seja de que natureza for, ter objetivos, interagir, manter o exercício físico e uma dieta equilibrada. Sabemos que isto tem resultados. Não é um livro de autoajuda, é ciência. Tendo nós hoje uma esperança média de vida tão grande, a reforma está longe de ser o fim da vida, como era há muito anos, em que muitas vezes as pessoas morriam mesmo antes de chegar à idade da reforma.

"Em Portugal não valorizamos o cérebro como valorizamos o resto do corpo"

É fácil falar de envelhecimento e de demência em Portugal?

Embora Portugal seja um país que está a mudar, que está a melhorar em muita coisa, esta divulgação científica e médica ajuda, tem ajudado. Pela primeira vez em 2015 houve uma diminuição do número de casos novos de demência na Europa. O que significa que algo está a alterar o comportamento. E na altura houve três centros europeus que analisaram os dados e que concluíram que isto provavelmente tem a ver com os hábitos que já mudaram há vinte anos. Antes não se falava nisto, os nossos pais não cultivavam o exercício físico, o sono. Agora sim.

No entanto, e apesar de sermos muito mais conscientes disto, de como prevenir o envelhecimento, das questões comportamentais, estamos a ficar dependentes de medicamentos: ora para dormir, ora para estar despertos.

Claramente, em Portugal não valorizamos o cérebro como valorizamos o resto do corpo. Muitas vezes digo que se temos uma doença do estômago, preocupamo-nos. Se temos uma doença do cérebro, ou é fraqueza ou vulnerabilidade ou não nos preocupamos. Não é um sintoma a que as pessoas estejam tão alerta como uma doença que dizemos sistémica. Sabemos que a neurobiologia muda, e se cuidamos do estômago e da pele e do fígado, temos de cuidador do cérebro. Estas coisas são ativamente cuidar do cérebro, como lavar os dentes. Se vou lavar os dentes, vou dormir bem. Vou ter uma higiene do cérebro. E isto é muito importante.

"A falta de sono é uma negligência séria tão séria como não alimentar devidamente uma criança"

Já falou no sono vários vezes. Não lhe damos a importância que devíamos?

Há em Portugal várias campanhas porque as crianças se deitam muito tarde. Sabemos que isso tem efeitos perniciosos. Há dados científicos que nos mostram que o sono tem duas funções importantes: uma é consolidar as memórias - em termos de memória o sono é tão essencial quanto a vigília - porque diminui toda a atividade cerebral. Na fase de repouso até os sentidos se perdem, por isso é difícil acordar, tem a ver com a diminuição de todos os estímulos, reduzidos à atividade mínima; a outra é uma espécie de limpeza, se quisermos, que não se consegue fazer quando o cérebro está na sua atividade normal. Há estudos que mostram que o que acontece nas doenças neurodegenerativas em geral é que há uma acumulação de agregados tóxicos de proteínas que resultaram da atividade neuronal e o sono é importante nessa limpeza.

Acredita que médicos (pediatra, médico de família) estão conscientes da importância do sono para a saúde do seu paciente? Ou as escolas (educadores e professores)?

Posso falar da minha experiência pessoal. Como cientistas trabalhamos muito com escolas, alertamos muito para este facto e há uma pessoa que tem advogado muito a falta de sono como uma negligência séria, que é a professora Teresa Paiva [especialista em sono], uma questão tão séria como não alimentar devidamente uma criança. Enquanto mãe, não acho que haja grande atenção a esta questão. A professora do ensino básico do meu filho dizia-me: "Tenho imensas crianças que só precisam de dormir. Vêm irritados, desconcentrados, e só precisam de dormir". Claro que não precisam todos de dormir as mesmas horas, mas, de uma maneira geral, todos precisam de dormir muito. E não faz sentido uma criança levantar-se às oito da manhã e ir para a cama às onze da noite. Não faz sentido. Tem de dormir dez a doze horas. E se os deixarmos dormir, eles dormem. E isto é muito importante na fase de desenvolvimento, sobretudo nessa fase. Porquê? Porque estamos a condicionar o seu cérebro. Num adulto já passámos essa fase, não estamos numa fase em que as sinapses estejam a ser formadas. As crianças estão. Portanto, assim como lhes damos os nutrientes, temos de lhes dar o sono necessário. Há, por vezes, pessoas que têm menos opções. Umas por escolha própria, outras por falta de solução, por pressão dos horários a que estão sujeitas. Não temos e ser moralistas sem ter também alguma compaixão - e isto é uma opinião pessoal. Eu tenho a felicidade e o privilégio de ter um horário que posso gerir na medida do possível, e se tenho momentos em que trabalho muitas horas, noutros consigo compensar. Há pessoas que não têm essa hipótese. Ainda assim, penso que as empresas, as escolas, os professores, o Ministério da Educação, o Ministério da Saúde deviam ter campanhas muito mais ativas. Temos muitas crianças com problemas de défice de atenção, de falta de concentração que podíamos identificar e devíamos ser muito mais rigorosos a identificar claramente problemas de sono. E em algumas situações, não digo que em todas - porque depois é também uma escolha da família e tem a ver com a autonomia que as pessoas têm e com a liberdade de escolha -, mas se alertássemos as pessoas e conversássemos sobre ciência, mostrássemos os factos, talvez muitas alterassem os seus comportamentos.

créditos: Rodrigo Mendes / MadreMedia

A propósito de sono e comportamentos: o que se passa na cabeça dos adolescentes que dormem a manhã inteira, se puderem. É mesmo preguiça ou há mais qualquer coisa?

Por acaso fazemos uma coisa gira com os adolescentes que tem a ver com o sono, que é o cronotipo. Os adolescentes têm sempre imensas perguntas: sobre droga, sobre dopping intelectual, este género de questões. O cronotipo é uma coisa simples de fazer: podem responder a um questionário online - como qualquer pessoa - e em função disso vamos saber se é mais madrugador ou mais noctívago, as horas de sono, e se está ou não desajustado. Há várias coisas que se podem identificar, como a pessoa precisar ou não de despertador, deixar-se dormir até mais tarde no fim de semana se não tiver despertador - quer dizer que compensa porque habitualmente não vive no seu ritmo... Uma das coisas que se sabe da ciência é que os adolescentes precisam mesmo de dormir mais. Aquilo que os pais acham que é preguiça, quando a partir dos doze, treze anos até aos dezasseis, dezassete anos começam a ver os filhos a dormir mais de manhã e a ficar acordados até mais tarde - e queixam-se muito de que são uns preguiçosos, não querem fazer nada, só querem telemóvel e jogos - é de facto preguiça, também, estão numa fase de interação social, mas tem mesmo a ver com o desenvolvimento cerebral. É muito interessante: os adolescentes, de facto, têm alterações no ritmo, aquilo é uma névoa. Se obrigamos um adolescente de 14 anos a fazer um exame às 8 da manhã, aquilo é uma névoa. Isto é biologia. Sabemos pela neurociência que não é a altura certa.

Fazer isso é uma maldade, um requinte de malvadez?

É uma maldade em média. Se alguns vão conseguir, em média é uma maldade. Há estudos muito engraçados em escolas da Alemanha, onde os exames são feitos, por exemplo, às 10 ou às 11 horas. Porque aí sabemos que os adolescentes estão no seu potencial máximo em termos cerebrais ou, pelo menos, podem usá-lo no seu potencial máximo. Mas isto também é válido para as pessoas que são noctívagas e que às seis da manhã têm de estar alerta ou o contrário. De facto, a neurociência diz-nos que não é preguiça, não é falta de boa vontade, é só o cérebro que é um bocadinho diferente. A diferença não é muito grande, é de mais ou menos duas horas. Mas mais ou menos duas horas de diferença, para a frente ou para trás, pode fazer toda a diferença. Eu faço aqui um estudo piloto: temos no laboratório pessoas que são noctívagas, outras madrugadoras. Eu sou das madrugadoras. No início fazia as reuniões às 8h30, quando já estou superturbinada [riso]. Depois comecei a perceber o sofrimento que era para os mais noctívagas ter de processar tudo àquela hora da manhã. Para quê fazer aquilo numa profissão onde até tenho alguma liberdade de escolha? Agora tenho estudantes com quem faço reuniões às 11 horas. E o engraçado é que há traços em que tendencialmente as pessoas que gostam destes ritmos são também as mais noctívagas. Às vezes é possível adequar perfis, mas o problema é esta normalização. Há países que usam este conhecimento técnico e científico para melhorar a vida das pessoas. E quando o podemos fazer, porque não?

O que responde ou que conselhos dá aos jovens que lhe perguntam sobre dopping intelectual?

Essas perguntas são sempre engraçadas, porque eles estão numa fase provocatória e os ídolos são normalmente rockstars a quem a experiência com drogas não é muito alheia - e estou a falar de drogas duras, que são as que têm consequências cerebrais mais intensas. Dizem-me sempre: "Sim, mas aquela pessoa não seria criativa se não se drogasse". E eu respondo: "Imagina como seria sem drogas, a começar pelo facto de que provavelmente duraria muito mais tempo". As drogas alteram o funcionamento cerebral e ao desequilibrar os neurotransmissores podem exacerbar uma parte mais criativa, uma parte com menos censura, mais social. A questão aqui é que todo o consumo crónico de drogas altera o funcionamento cerebral, e numa fase em que estes jovens ainda estão em desenvolvimento é ainda mais crítico expormos o cérebro a substâncias de forma prolongada e constante, ou seja, que comprometa este equilíbrio das substâncias que estão a ser libertadas. O ideal é que as deixemos ser o mais natural possível. E eles são muito sensíveis a isto. Nós explicamos como é que funciona e que alterações pode haver.

Mas já não estamos a falar de teenagers...

O dopping intelectual é uma coisa sobre a qual nos falam nas faculdades.  São anfetaminas, substâncias que aumentam a capacidade de trabalho. Nos Estados Unidos houve até um caso que ficou conhecido como as "Ritalin Moms", mães que tomavam a medicação das crianças e conseguiam trabalhar imensas horas, continuavam magras e ativas - efeitos da ritalina, como da cocaína. O que dizemos é que devia ser regulado. Há amplitude para falarmos em dopping intelectual, substâncias que podem melhorar o desempenho - e há várias que podem: há pessoas que tomam beta-bloqueadores antes das apresentações para não terem os efeitos da adrenalina (como acontecia no filme "O Lobo de Wall Street", em que eram os empregadores que estimulavam o seu uso). A pressão hoje é tão grande para se ser sobre-humano, neste aspeto de trabalhar muitas horas, ter um desempenho fantástico, que estamos a entrar numa fase perigosa. Tentamos sensibilizar os mais novos sobretudo para esta questão, de que há consequências, sequelas que podem ser muito graves, algumas irreversíveis para o cérebro. Se isto funciona ou não é outra coisa, e é óbvio que todos querem saber - e que é fascinante para um adolescente perceber que pode aumentar o seu desempenho ou a sua capacidade criativa, estão naturalmente despertos para isso nessa idade.

"Não temos ainda um sistema que dê apoio à saúde mental como deveria dar e que permita haver grandes alternativas aos fármacos"

Um dos problemas de que se falava há pouco tinha a ver com o perigo dos desinibidores e outras pastilhas colocadas à socapa nas bebidas de uns e outros em bares e discotecas. Falam-lhe nisso?

Falam. São cautelosos, riem muito. Há uns anos havia mais a preocupação com a parte recreativa, agora noto que há mais preocupação com o desempenho escolar. O que se calhar devia ser alvo de análise, mas essa já não é tanto da minha área. Fazemos sempre o panorama do que está a acontecer no cérebro sem ser moralistas, e mostrando que há dois tipos de fármacos: os que podem ter alterações com sequelas muito graves e os que têm um grande poder de dependência. Os que têm um grande poder de dependência, o ideal é eles não experimentarem sequer, porque há os que vão ficar sem controlo - opioides, heroína, álcool, tabaco estão neste grupo. Há outros que, não tendo tanto efeito de dependência, como a canábis ou o ecstasy, dependendo da dose e de como são tomados, podem causar danos irreversíveis. E depois temos todos opioides sintéticos, que são altamente descontrolados e a que os jovens têm muito acesso e que podem ter sequelas irreversíveis para o cérebro e são de efeitos muito agudos e diferentes das drogas que havia nos anos oitenta. Tínhamos epidemias de heroína, que agora são muito menores, felizmente, nada comparado com os EUA - mas aí as drogas são legais - e isso daria outra entrevista: a responsabilidade do Estado. Porque as drogas têm uma capacidade aditiva muito grande, é quase como dizer: toma lá, vais ficar agarrado. É a história de como se faz uma epidemia com fármacos prescritos.

A outro nível - não estou a comparar - quando se fala da sobreprescrição de antidepressivos em Portugal, é disso que estamos a falar?

Também. É outro nível, e a sobreprescrição, na minha opinião, e agora como cidadã, não como cientista, tem duas razões: uma é que nós não temos ainda um sistema que dê apoio à saúde mental como deveria dar e que permita haver grandes alternativas aos fármacos, à farmacoterapia. Querem-se tratamentos mais rápidos, mais baratos e tudo o que seja psicoterapia, acompanhamento das pessoas, são tratamentos mais prolongados, exigem mais recursos e são mais caros.  O nosso sistema não defende a saúde mental nesse aspeto, não tratamos as causas. E se há doenças mentais e que devem ser tratadas com medicação, sabemos que há muitas em que a medicação não é necessária. Pela tal razão: sempre que estamos a expor o cérebro a fármacos, estamos a mudar o equilíbrio. Dos dados em neurociências sabemos que só se deve prescrever quando é necessário. Temos clínicos em Portugal que sabem muito bem quando é necessário, mas que não têm um sistema de suporte que os ajude nisto. E eles têm de tratar as pessoas, as pessoas têm de se sentir bem.

"Os jogos de computador, que ativam as zonas do cérebro ativadas pelas drogas, são aditivos. Portanto, nós, enquanto educadores, pais, governo, deveríamos limitá-los"

Voltando um pouco atrás: e os pais, o que é importante que saibam, em todo este processo?

É importante que os pais percebam isto: há uma base científica para não se deixar que as crianças e adolescentes sejam expostos a álcool, a drogas e juntaria os jogos de computador [telemóveis, tablets, etc]. Os jogos de computador, que ativam as zonas do cérebro ativadas pelas drogas, estão a ser muito estudados, e de vez em quando há notícias de investigadores para se perceber que também são aditivos, podem ter um grande grau de dependência. Portanto, nós, enquanto educadores, pais, governo, deveríamos limitá-los. Já temos dados científicos que nos ajudem a tomar uma decisão. Se não temos álcool nas escolas, se não temos drogas nas escolas, porque é que temos jogos de computador? Parece-me que é apenas uma questão de bom senso. E já temos dados, mesmo que preliminares. Basta haver esta suspeição para nós, enquanto decisores, agirmos e termos uma posição conservadora e cautelosa. Tudo aquilo a que expomos o cérebro nos nossos filhos numa fase em desenvolvimento tem de ser com muita cautela.

Se a sociabilidade, se a inteligência e o cérebro são comuns a quase todos os seres vivos, afinal, o que e que nos distingue?

O ser humano é gregário e sofre quando não é. Mas, nesses termos médios, não distingue; todos temos capacidade cerebral, todos somos potencialmente gregários. Depois, claro, todos somos diferentes. Eu sou a favor da não normalização, de explorar os talentos que cada um tem, a criatividade, o talento para a música, o talento para o desenho, o talento de quem fala ou não fala. Essa é a riqueza de uma sociedade, a diferença das pessoas. E isso levava-nos a outra conversa: a escola normaliza e formata um padrão que não é desejável. Mas depois temos extremos psiquiátricos e cerebrais e aí entramos nos extremos que têm a ver com uma combinação de fatores genéticos e de desenvolvimento: os psicopatas, os sociopatas, que são casos mesmo extremos. De resto, em parece-me que agora é que somos uma sociedade mesmo muito pouco tolerantes à diferença. Às vezes brinco porque um colega meu costuma dizer: "Se fossemos diagnosticados, tínhamos todos défice de atenção. Estamos sempre super-impacientes e queremos andar para a frente". Com a ressonância magnética funcional, há estudos que mostram que a resposta às coisas pode mudar, mas que as áreas cerebrais ativadas são semelhantes, às vezes a sequência de ativação é que é diferente, e que somos todos muito diferentes. Eu acho isso engraçado. Engraçado e um tesouro. Não lhe sei responder o que é que nos faz tão diferentes, o que quero dizer é que o que quer que seja que nos faz diferentes - e sabemos que tem a ver com uma componente genética, ambiental e familiar, em termos cerebrais são os três grandes fatores, na ausência de doenças - é bom.

Sobrevalorizamos hoje a inteligência em relação à emotividade ou a outros valores?

Penso que não. Acho que já valorizámos mais, e não falo apenas do currículo académico em Portugal. Portugal ainda valoriza demasiado as aptidões académicas em detrimento das emocionais - se bem que parece que a avaliação dos rankings das escolas vai entrar em linha de conta com quão bem integradas estão as crianças e este género de questões, o que é importante. Mas, curiosamente, nas empresas a chamada inteligência emocional já é muito tida em conta. Portanto, penso que já estamos na fase inteligência emocional, esta capacidade de ser empático, de amadurecer, de se sentir bem consigo próprio, de saber comunicar com os outros de uma forma assertiva e de não haver raiva ou agressividade. No fundo, esta capacidade de comunicar com os outros de uma forma saudável e eficiente. A inteligência emocional, no fundo, é isso. E do que eu conheço há muito mais esse cuidado no recrutamento das pessoas. Trabalhei na Nestlé, na altura do meu pós-doutoramento, entre 2003 e 2006, e a nossa capacidade psicológica, a gestão do conflito, o trabalhar em equipa, estas componentes que não são só de desempenho técnico, já eram uma parte importante. Tenho a certeza de que neste momento estamos outra vez a ligar muito mais a isso. E há muito mais livros, muito mais palestras, muito mais estudos sobre esta capacidade de gerir as emoções.

O que fazia uma neurocientista na Nestlé?

Tive um doutoramento misto, feito parte em Lisboa, parte em Estocolmo e parte em Cambridge - Portugal ainda não tinha o fantástica ecossistema científico que tem agora para as neurociências, agora estamos aqui como em qualquer lugar do mundo, felizmente -, e fui para fora até para, técnica e culturalmente, ter outras experiências. Na altura, por motivos familiares, fui para a Suíça, onde os empregos eram muito técnicos, não me estimulavam muito em termos de projeto. E a Nestlé tinha aberto em Lausanne um lugar para um neurocientista, para estudar a interação sistema nervoso-entérico (intestino-cérebro), que agora está super na moda, mas que na altura dava os primeiros passos. A Nestlé já trabalhava muito com probióticos, com esta capacidade de modelar a flora intestinal, e queria perceber de que forma modelar isto interferia com o cérebro. E não tinham neurocientistas. Achei o projeto engraçado e estive lá durante três anos, foi uma experiência muito boa. A minha única exigência foi poder publicar, para que a minha carreira académica pudesse progredir - muitas vezes nas farmacêuticas não podemos, por causa do sigilo profissional. A minha função era estudar se esses probióticos, que existem em bebidas como o Actimel, tinham ou não propriedades neuromodeladoras, ou seja, de modificar o sistema nervoso entérico, e se isso dava ou não sinais em doenças inflamatórias intestinais, por exemplo na doença de Kron, em que o sistema imune reage, e de que forma é que isso interferia ou não no funcionamento cerebral. E daí o meu interesse no stress como indutor das doenças neurodegenerativas. Na altura ainda não havia tecnologia para perceber qual era o mecanismo. Hoje, por exemplo, já há a ideia de que a doença de Parkinson começa no intestino: há uma deposição de proteínas tóxicas que vão do sistema nervoso entérico para o sistema nervos central - embora isso ainda não seja regra há resultados preliminares sólidos.

No início desta entrevista disse que as experiências são feitas em animais, que é uma coisa que impressiona muita gente - mas ainda não é possível seccionar cérebros humanos saudáveis. No entanto, é possível contribuir para o avanço da ciência de muitas formas, às vezes bem simples, e as pessoas, muitas vezes não sabem. Como?

Temos tido uma experiência muito engraçada com a generosidade das pessoas e nas palestras costumo dizer, a brincar, que já sei que ninguém vai doar o seu cérebro saudável à ciência voluntariamente. A verdade é que não temos muita capacidade de acesso ao tecido cerebral para o estudar - nem queremos ter [riso] - porque obviamente não se tira secções de cérebro a não ser em situações excecionais clínicas, como cirurgias de epilepsia, casos de tumores ou algumas biópsias necessárias. E, normalmente, esse tecido é tecido doente. Ora para nós é importante perceber a função sináptica do cérebro saudável. E agora temos projetos novos que nos permitem, a partir da pele, a partir de fibroblastos, fazer com que sejam induzidos neurónios a partir dessas células, e podemos estudar as propriedades desses neurónios, na expectativa ou na esperança de que possam de alguma forma reproduzir o funcionamento neuronal. É o que temos de mais próximo e não invasivo para estudar a função das sinapses. E portanto, no biobanco do iMM [Instituto de Medicina Molecular] temos não só uma coleção de amostras de sangue, mas também vamos começar a ter pequenas biópsias de pele para estudar, por exemplo, o envelhecimento, para perceber se o registo, a assinatura neuronal de uma pessoa de 25 anos, é igual à de uma de 65.

Este é o projeto que ganhou o prémio “Mantero Belard”, da Santa Casa da Misericórdia?

Sim. Tem subjacente a ideia de que para estudarmos a neurodegeneração temos de estudar o envelhecimento. Estamos entusiasmados, recebemos agora o equipamento e já temos autorização para fazer a colheita. Claro que para isso é muito importante ter estas referências, os controlos saudáveis, que não têm nenhuma doença neurodegenerativa. E temos feito um apelo para que as pessoas participem - não só porque isso nos ajuda neste projeto em particular, mas porque as amostras de sangue ajudam o biobanco em muitas outras doenças: no cancro, na malária, em doenças do sistema imunitário, todas as que se estudam no iMM. Vêm ter connosco pessoas a dizer: "Eu quero doar o meu cérebro depois de morrer. Como faço isso?" Algumas não se importam de dar uma amostra de sangue ou de fazer uma pequenina biópsia da pele para ajudar da forma possível.

Tem ideia de quantos cérebros já foram doados ao iMM?

Não tenho, mas o biobanco de cérebros é no Porto, no Hospital de São João. Seria importante saber. E as pessoas podem, de facto ajudar.

O que procura que ainda não encontrou?

Isso é uma boa pergunta... Neste momento, em termos científicos, gostava de perceber esta assinatura do envelhecimento. E quando digo isto, assim, parece um bocadinho ficção científica, mas em termos de imagem não invasiva conseguirmos perceber que áreas do cérebro são ativadas: sabemos que alterações ocorrem no envelhecimento, sabemos o que acontece quando as pessoas estão a relembrar uma lista de supermercado, conseguimos ter acesso a isso, através dos tais estudos de ressonância magnética funcional. Mas não temos uma lupa para ir à função sináptica, que é aquela a que quero aceder. Porque as áreas são importantes, mas alteram-se já quando é um bocadinho irreversível para nós intervirmos e pararmos o processo de morte neuronal. Eu gostaria muito de perceber qual é a assinatura do envelhecimento. Fascina-me o facto de termos células que estão connosco quase desde que nascemos, sujeitas a uma atividade muito intensa, a forma como se comportam e porque há diferenças entre as pessoas. E nós até sabemos que há pessoas que envelhecem sem nenhum défice cognitivo, que estão ótimas - eu participei no programa da RTP, "Os Extraordinários", e vi um senhor de 89 anos, fascinante, que fazia raízes quadradas com cálculo mental. E há um projeto em Coimbra de tentar perceber por ressonância magnética funcional estas pessoas. Mas eu gostava de saber: e então esses neurónios? Como é que está o neurónio desta pessoa comprado com o de uma pessoa da mesma idade que, mesmo não tendo doença neurodegenerativa, só com o envelhecimento normal, tem tantos défices. Será que temos uma assinatura? O que é que nos distingue? Será que o que nos distingue é mais em termos de circuito? Como neurocientista gostaria mais de chegar à sinapse, que isso ainda não conseguimos fazer. Daqui a três quatro anos, quem sabe.