A conversa decorreu no final da tarde do último dia de 2020, via Skype, e o compromisso foi o de não a publicar em dia de debates televisivos. Depois da queda que deu em Aveiro, na qual fraturou duas costelas, Marisa Matias, candidata à presidência da República, garante que está em franca recuperação, tão melhor que já consegue rir sem quase sentir dores.

Diz que foi bem atendida no Centro Hospitalar Baixo Vouga, talvez porque o acidente aconteceu a 27 de dezembro, entre o Natal e o Ano Novo, e não havia muita gente nas urgências. Nem de propósito, é na questão do SNS que centra a sua campanha eleitoral, que não representa apenas o projeto político do Bloco de Esquerda, "estou a falar de um projeto muito mais vasto que isso", assegura.

Apesar de não tem ilusões sobre quem será o presidente eleito a 24 de janeiro, acredita que o seu resultado - "não o meu, o do projeto político que represento" - lhe dará mais ou menos força para lutar por uma alternativa. Por isso, não queria menos do que os 10,12% (469.582 votos) alcançados em 2016.

Não sabe exatamente porquê, mas come as doze passas da praxe à meia-noite do último dia do ano. Embora não peça os doze desejos, o que pede tem a ver com saúde, família, amigos "e paz no mundo, já agora". Para 2021 quer "o que não tivemos em 2020: uma resposta adequada à crise".

Socióloga e investigadora da Universidade de Coimbra, em tempo confessou ao SAPO24 que o seu principal defeito é ser "um bocadinho teimosa". Já chegou a ser a única representante do Bloco de Esquerda no Parlamento Europeu, onde exerce agora o seu terceiro mandato, e não esconde que tem "muita dificuldade em desistir até ao último minuto".

Marisa Matias nasceu no início de 1976, em Alcouce, Condeixa-a-Nova, uma aldeia com menos de 100 habitantes e onde a democracia demorou a chegar. “Quando andava na primeira classe tinha de ir a pé para a escola, seis quilómetros para um lado e seis quilómetros para o outro. Depois passámos a ter escola, a ter uma extensão do centro de saúde na freguesia, a ter transportes públicos. Senti na pele essas conquistas e o valor da democracia na vida das pessoas. E também acompanhei o retrocesso de tudo isso, o desmantelamento do Estado social”, diz. 

Uma queda levou-a ao Hospital de Aveiro. Foi bem tratada?

Fui, fui muito bem tratada. Obviamente que leva o seu tempo, têm muito que fazer, mas não tenho nenhuma razão de queixa. Deve ter sido por ser dia 27 de dezembro, logo a seguir ao Natal, não estava muita gente nas urgências. Estive lá umas três horas e não vi nada que me escandalizasse. Entraram apenas duas pessoas depois de mim, uma delas, porque era mais urgente, passou à frente, como é normal, e correu tudo bem. Penso que por ser Natal, mas também por causa da Covid, as pessoas tentam evitar as urgências, só se vai mesmo em situação limite.

"Não foi a pandemia que criou os problemas no SNS, nem foi a pandemia que colocou o SNS em perigo, mas foi a pandemia que mostrou as insuficiências"

Será por isso que até final de outubro - agora os números são superiores - havia mais 6.434 mortes do que no ano anterior, mais de metade por motivos não Covid-19?

Ah, sim. Há as vítimas diretas da pandemia e há as indiretas. É óbvio que com os serviços sobrecarregados e, infelizmente, não havendo capacidade de resposta, há muita gente que tem os tratamentos adiados. Ainda por cima houve urgências que fecharam nesta altura, por causa da pandemia... É por isso que precisamos de reforçar o Sistema Nacional de Saúde.

Afirmou várias vezes que o SNS é um pilar da democracia. Acredita que está em perigo?

Sim. Já estava, não é de agora, mas com a pandemia tornaram-se mais evidentes as insuficiências do SNS, a falta de financiamento, aquilo que é preciso investir para termos um Sistema Nacional de Saúde decente e que possa responder às necessidades das pessoas. Precisamente porque é dos dos pilares da nossa democracia, porque é aquilo que nos garante um mínimo de igualdade no país. O pior que podia acontecer era estarmos a chegar ao fim da pandemia com um Serviço Nacional de Saúde ainda mais enfraquecido do que no início. E neste momento isso é visível. Por exemplo, temos menos médicos no SNS do que tínhamos no início da pandemia e não é só porque alguns saem, reformam-se, o que é normal, é sobretudo porque não há capacidade para os fixar. Essa é uma das áreas que precisamos mesmo de trabalhar. Tem de se aumentar não só o número de médicos, mas de profissionais das diversas áreas, enfermeiros, técnicos, auxiliares. As insuficiências são vistas em todo o lado, mas traduzem-se numa dimensão ainda mais dramática quando pensamos nos serviços associados ao Serviço Nacional de Saúde no interior do país. Não foi a pandemia que criou os problemas no SNS, nem foi a pandemia que colocou o SNS em perigo, mas foi a pandemia que mostrou as insuficiências e destapou os problemas estruturais do SNS.

créditos: MÁRIO CRUZ/LUSA

Mantém a sua atividade de eurodeputada, mesmo em campanha?

No Parlamento Europeu não existe suspensão de mandato. O que existiu e existe - e eu tenho estado a assumir as minhas funções todas, ainda - é a pausa entre o Natal e Ano Novo. Ao longo da campanha, e também da pré-campanha, continuarei a assumir algumas responsabilidades. O que fiz em 2016 e farei agora é, antes do período de campanha, informar o presidente do Parlamento Europeu. Mas este ano, até pelas circunstâncias que estamos a viver e por podermos fazer muitas coisas à distância, consigo assegurar o essencial da atividade de eurodeputada mesmo estando em campanha.

Porque é que a União Europeia é importante para si, o que é que a convence no projeto europeu?

Penso que normalmente podemos ter uma melhor resposta aos problemas e podemos viver melhor se vivermos numa lógica acompanhada e de cooperação e não numa lógica fechada e de isolamento. Fomos um país fechado e de costas voltadas para o mundo durante muitos anos, muitas décadas, e isso não nos trouxe nenhum benefício. Isso não significa que tenhamos de aceitar todas as condicionantes associadas a projetos comuns, que muitas vezes são castigadores - tivemos a prova disso recentemente, com a troika. Acredito numa lógica internacionalista da política e da vida e acho que a ideia de pensarmos a humanidade em conjunto traz mais benefícios para as pessoas do que se for cada um a pensar por si.

Foi deputada única do BE no Parlamento Europeu em 2016. Se pudesse ser substituída por alguém durante o tempo que dedicou à campanha para as presidenciais, preferiria? Pergunto isto também por causa do pedido feito por André Ventura, para ser substituído na Assembleia da República, que foi chumbado. Concorda com a decisão? Porquê?

Acho que não se deve suspender o mandato para fins de campanha. Cumpri as regras, como agora.

Portugal assume agora a presidência portuguesa do Conselho da UE. O governo reuniu com os deputados europeus portugueses para definir uma estratégia comum?

Sim. Representantes do governo, em particular o ministro dos Negócios Estrangeiros e, mais diretamente, a secretária de Estado dos Assuntos Europeus, reuniram com todos os eurodeputados e tiveram esse cuidado de apresentar o que eram as linhas estratégicas e o programa para a presidência portuguesa e, também, recolher opiniões. Esse trabalho foi feito, sim.

"Espero bem que o governo português tenha a decência de ter mecanismos de prestação de contas transparentes e claros"

A presidência portuguesa terá uma dimensão apenas formal ou espera-se que tenha resultados práticos?

Tem uma dimensão formal muito grande. Desde logo porque há dossiers que estão ainda em discussão, dossiers legislativos, cuja negociação não foi possível terminar com a presidência alemã, e que têm a ver com o próximo quadro de financiamento comunitário [que teve início a 1 de janeiro], incluindo um meu, que tem a ver com um regulamento do financiamento da investigação e da inovação. Mas, desse ponto de vista, penso que a presidência alemã teve um papel muito mais formal do que terá a presidência portuguesa, porque teve de fechar muitos dossiers, muitas negociações. A presidência portuguesa da UE tem condições para fazer um mandato muito mais político, desde logo porque vai iniciar as suas funções com um novo quadro de financiamento, um plano de recuperação definido, um Fundo para a Transição Justa, um plano verde, a discussão do Pacto para as Migrações... Ou seja, há um conjunto de instrumentos políticos novos que começarão a ver a luz do dia no período em que a presidência portuguesa está em exercício. A presidência portuguesa poderá ser marcada por ser a primeira presidência do Conselho numa pandemia e em situação de crise profunda, mas é aquela que tem novos instrumentos para pôr em prática, para implementar.

Portugal vai receber cerca de 6 mil milhões por ano até 2027 - nos anos anteriores recebeu entre 2 mil e 3 mil milhões por ano. Quem vai assegurar o controlo da aplicação deste dinheiro, quer do ponto de vista da transparência, quer da riqueza que esse investimento vai gerar para o país?

No que diz respeito à decisão e aplicação dos fundos estruturais as regras variam de país para país. Há países em que são as regiões as responsáveis por essa distribuição e aplicação, mas, no caso português, essa definição estratégica da aplicação de fundos é centralizada, dependerá dos governos em exercício. E também já teve de ser desenhado um plano estratégico para a aplicação desses fundos. Obviamente, do meu ponto de vista têm e terão de ser muito escrutinados e sujeitos a uma distribuição muito justa. Sobre o facto de irmos receber mais dinheiro, depende da perspetiva: os montantes são mais elevados, mas por causa da existência do Fundo de Recuperação. Sem ele, no que diz respeito ao orçamento comunitário, vamos receber menos dinheiro; vamos ter menos dinheiro para a coesão, menos dinheiro para a agricultura, menos dinheiro para setores que são essenciais para a economia portuguesa. Mas o Fundo de Recuperação não vai durar para sempre, ou seja, tem uma aplicação durante os primeiros anos do quadro de financiamento e, depois, deixando de existir, os cortes vão sentir-se de forma ainda mais evidente nos últimos anos de execução. Mas é óbvio que é preciso garantir que há transparência, até porque, no que diz respeito ao Fundo de Recuperação, todas as despesas relacionadas com a pandemia que foram executadas pelos Estados-membros a partir de fevereiro de 2020 já são elegíveis, portanto, muito desse dinheiro vem para cobrir despesas que já foram feitas, na área da saúde e noutras. E espero bem que o governo português tenha a decência de ter mecanismos de prestação de contas transparentes e claros para que possamos perceber onde é que esses recursos vão ser utilizados.

"Não tenho a arrogância de dizer às pessoas como é que cada uma se deve definir politicamente"

Porque é que não existem estudos sobre a aplicação dos fundos? Não são conhecidos resultados da aplicação desses fundos...

Sim, não temos muito essa prática - e, do meu ponto de vista, é errado que não a tenhamos -, mas penso que há uma clara perceção, no que respeita a Portugal, de que houve fundos muito bem aplicados e outros claramente mal aplicados. E muitas vezes, em muitos momentos da nossa democracia, os fundos europeus foram usados como instrumentos para campanhas eleitorais, basta pensar, sobretudo ao nível das eleições autárquicas, na quantidade de infra-estruturas que se construíram com dinheiro do fundos, desde polidesportivos a piscinas, passando por centros culturais ou multiúsos. Era muito aquela coisa de se apresentar obra feita, quando muito disso foi feito sem qualquer planeamento, por isso hoje muitas dessas infra-estruturas estão vazias por esse país fora. É claramente falta de coordenação, porque olhamos para municípios pequenos, que estão em cima uns dos outros, e todos têm os seus equipamentos. Isso não é necessariamente sinal de boa gestão, podia ter-se trabalhado em rede.

créditos: TIAGO PETINGA/LUSA

Afinal, é socialista ou social-democrata? Pode ser-se as duas coisas?

[Ri] Acho interessante que só agora isto tenha dado algum problema. Sem nenhuma ironia, percebo bem que possa gerar alguma confusão, porque em Portugal temos esta particularidade de ter um partido social democrata de direita, que é uma exceção. Mas a social-democracia histórica é uma ideologia de esquerda. Seja como for, sou socialista. E defendo, e continuarei a defender todos os dias, as conquistas da social-democracia histórica. Trabalho todos os dias para defender a valorização dos salários, a distribuição justa dos rendimentos, uma política fiscal redistributiva, maior controlo público de setores estratégicos. Tudo isso são ganhos e conquistas das social-democracia. Acho que quem está à minha volta percebe - quem não percebe é porque quer fazer disto uma questão - o que estou a dizer. Já disse isto imensas vezes, a minha surpresa foi que desta tenham feito disso um problema.

Ter coração é um exclusivo da esquerda? A direita não quer uma distribuição justa de rendimentos, não quer salários melhores, mais empregos?

Não, de maneira nenhuma. Mas temos projetos diferentes para a sociedade. E um projeto como aquele que é representado pela direita em Portugal, nomeadamente pelo Partido Social Democrata, dificilmente seria chamado social-democrata noutro contexto europeu, seria muito mais um projeto de natureza neoliberal, mais centrado no mercado, não tanto nos serviços públicos e no papel do Estado. Agora, eu não tenho a arrogância de dizer às pessoas como é que cada uma se deve definir politicamente.

O Bloco de Esquerda tem tentado, desde o início, criar um cordão sanitário à volta de André Ventura. O espaço que o Chega conquistou não foi conseguido de forma democrática?

Não tem a ver com isso. O cordão sanitário tem a ver com uma defesa intransigente da democracia e dos valores democráticos. A esse respeito, acredito que é uma obrigação de todos os partidos, sejam de esquerda ou de direita, fazer essa defesa, sob pena de pôr em causa a própria democracia. Temos visto, ao longo dos últimos anos, e sobretudo desde que surgiu uma força política de extrema-direita na Alemanha, com muito maior representação parlamentar do que tem o Chega em Portugal, o que tem sido o comportamento de Angela Merkel, da CDU alemã, que é de claro cordão sanitário, de quem preza os valores democráticos. Sou insuspeita de achar que tudo o que Angela Merkel faz é bem feito, mas até ela percebe a necessidade de, num contexto que a levou a ter perdas eleitorais - porque a única forma de formar governo de direita seria uma aliança com a AFD [Alternativa para a Alemanha] e com a extrema-direita - recusar esse passo para proteger a democracia. Da mesma forma que agora se manteve muito firme na defesa de um Estado de direito e da questão da democracia na Hungria e na Polónia, com muito mais força do que qualquer outro líder europeu. Tenho dificuldade em perceber o que leva pessoas a defender os eixos programáticos que o Chega apresenta, mas não tenho dificuldade em perceber quais são as dificuldades que as pessoas estão a atravessar e os seus descontentamentos e a forma como se sentem abandonadas. E também não tenho dificuldade em perceber que, quando deixamos as pessoas sem resposta ou na pobreza ou nas desigualdades permanentes, na injustiça social, esse vazio é ocupado rapidamente. E, infelizmente, a história mostra que o vazio é ocupado por linhas populistas e de aproveitamento das desgraças alheias, não por quem tem respostas. É para se aproveitarem desse sofrimento, desse abandono, para fazer render resultados eleitorais. Tenho urticária a quem vê a política dessa maneira. E tenho o maior respeito por quem vive nessas dificuldades. É por isso que digo que o problema do Chega não é da esquerda nem de direita, é de todos os democratas. A necessidade de um cordão sanitário em relação às forças de extrema-direita não altera a de termos a obrigação de encontrar solução para os problemas das pessoas que se sentem desamparadas e abandonadas.

O PSD devia perceber que há formas e formas de se chegar ao poder e que nenhuma delas pode depender de um partido de extrema-direita

Concorda que partidos como o Chega vieram dar um abanão naqueles que já estão instalados, nos que estão no chamado arco do poder?

Sim e não. Se eu visse os partidos todos deste país mobilizados para defender os valores democráticos para encontrar soluções para os problemas das pessoas, podia servir para isso. Mas em Portugal não estamos a viver isso, pelo contrário, estamos a assistir a um cenário muito perigoso de naturalização do programa do Chega - e raramente discutimos o programa do Chega -, um programa que é perigosíssimo para a democracia. É obvio que não cabe aos partidos, aos candidatos e às candidatas, definir se um partido deve ou não deve ser legalizado, isso é um trabalho do Tribunal Constitucional. Mas cabe aos partidos, aos candidatos, aos órgãos de soberania deste país perceber o que a legalização deste partido está a fazer e se ele representa ou não uma ameaça à democracia. E a mim  parece-me mais do que evidente que representa, porque toda a narrativa está nos antípodas daquilo que é a Constituição portuguesa.

Marcelo Rebelo de Sousa daria posse a um governo que incluísse o Chega. A presidente Marisa Matias não o faria?

Não. Não daria posse pelas razões que acabei de dizer.

Não deixa de ser interessante perceber que aqueles que apoiam Marcelo Rebelo de Sousa são os mesmos que acreditam que há aqui uma linha vermelha...

Mas tem de haver essa linha vermelha. Já estamos com tantos problemas na essência do projeto democrático, que deixar que seja contaminado para fins eleitoralistas é uma coisa que me faz muita confusão. A lógica de Marcelo Rebelo de Sousa não é de agora, é de antes de ele ser presidente da República. E sempre foi a de alargar ao máximo a rede dos partidos de direita para poder assumir o poder em Portugal. No final do governo de Passos Coelho e Paulo Portas, Marcelo defendia que se fizesse uma coligação alargada com os vários partidos de direita, até o Partido Popular Monárquico. E, embora eu não esteja na cabeça de Marcelo, imagino que ele possa ver no Chega uma possibilidade de o PSD voltar ao poder. Quando fazemos esta análise, o que se percebe é que, mais do que estarmos a falar do Chega, estamos a falar do PSD. O PSD, como partido democrático, devia perceber que há formas e formas de se chegar ao poder e que nenhuma delas, em qualquer contexto, pode depender de um partido de extrema-direita.

"A presidência portuguesa poderá ser marcada por ser a primeira presidência do Conselho numa pandemia e em situação de crise profunda, mas é aquela que tem novos instrumentos para pôr em prática"

Mas não foi isso que fez a esquerda? Para chegar ao poder o PS de António Costa estabeleceu uma aliança com BE e PCP, ou seja, a extrema-esquerda?

Primeiro, não concordo com os termos da pergunta. Segundo, foi um longo processo em que o então presidente convocou o partido mais votado, concluindo que não tinha maioria para governar. Terceiro, em 2015 o acordo da geringonça não estava dependente de nenhum partido cujas propostas afrontam a Constituição. Era, pelo contrário, um acordo que recuperava direitos, rendimentos e a dignidade de quem sofreu muito com a troika.

O que a leva a candidatar-se à Presidência da República?

Candidato-me porque acredito profundamente que há um programa diferente que o país precisa de ver executado na Presidência e ainda não viu. Candidatei-me a primeira vez numa situação de crise; estávamos a sair de uma crise porque havia um instrumento político na altura, a geringonça, que estava a ajudar a fazer um combate às políticas de austeridade. Eu revia-me, e revejo-me, nessa solução, e candidatei-me no sentido de dar voz a uma linha presidencial que estivesse em consonância com a lógica da geringonça. Neste momento estamos outra vez numa crise, mais grave, não conseguimos perceber ainda quais as suas dimensões económicas e sociais, mas não temos esse instrumento político, não existe uma geringonça. Mas acredito que ele continua a ser válido. Candidato-me para mostrar que é possível, no quadro da Presidência, haver alguém que apresenta um programa que não só defende os eixos essenciais da democracia, mas também é capaz de promover entendimentos para pôr em prática aquilo que são as propostas de regime de que este país precisa, seja na questão da saúde, seja do combate à precariedade, seja na igualdade ou no combate às alterações climáticas. Dito isto, acho também que há questões que devemos ter a humildade de reconhecer, pelos factos, como a de que existe uma probabilidade enorme de o professor Marcelo Rebelo de Sousa vencer esta eleição à primeira volta. E seria estranho que isso não acontecesse, até porque em Portugal todos os presidentes que se recandidataram foram eleitos à primeira volta. Decidi que devia apresentar a minha candidatura porque não acho que o mandato de Marcelo Rebelo de Sousa tenha respondido às questões de regime essenciais a que me referi, nem acho que o vá fazer num novo mandato.

“Não é indiferente o resultado que vou ter - não é meu, é o do projecto político que represento”

Mas essa certeza, a de que Marcelo Rebelo de Sousa será o novo presidente da República, não torna a sua candidatura irrelevante?

Acredito que à Presidência se devem apresentar todas as propostas e todas as alternativas, e que é no dia a seguir às eleições, com o resultado conseguido, que se vai lutar por essas alternativas. Portanto, não é indiferente o resultado que vou ter - não é meu, é o do projeto político que represento, e não estou a falar do projeto político do Bloco de Esquerda, estou a falar de um projeto muito mais vasto que isso, de defesa dos pilares da democracia, de ter uma agenda clara para o futuro, que é o que faz falta ao país. Temos muitas urgências para responder, muita emergência a que não devemos fechar os olhos, mas a política em Portugal tem de deixar de estar vinculada a estes ciclos de emergência, de necessidade e de crise. Tem de se criar pilares para que possamos pensar no país a médio e longo prazo, com programas estratégicos, por exemplo, no quadro da reconversão económica e reconversão ecológica, da transição energética que precisamos para o país. E candidato-me com esse programa, essa proposta, e fico muito feliz por haver pessoas insuspeitas de estar na área do Bloco de Esquerda a ver nesta candidatura essa proposta, como é o caso do Francisco Ramos, da Maria Teresa Horta, do Sérgio Godinho e de tanta gente que, generosamente, decidiu juntar-se a mim. Candidato-me não porque ache que vou ganhar as eleições, mas porque sei onde vou estar no dia a seguir. Da mesma maneira que em 2016 o resultado que obtive foi importantíssimo para me dar a força para fazer a luta pela defesa dos cuidadores e cuidadoras informais, sei que o resultado que tiver agora é o que me dará força para no dia a seguir lutar pelo Serviço Nacional de Saúde, pelo seu reforço, o ataque à precariedade. Não quero é estar aqui a fazer o papel de que acho que vamos ter segunda volta, porque não acho. 

A abstenção, que nas últimas eleições presidenciais foi de 51,34%, ou seja, de um pouco de mais de 9,7 milhões de eleitores votaram 4,7 milhões, menos de metade, preocupa-a?

Espero que consigamos mudar isto. Se continuarmos a fazer política ao lado daquilo que são as necessidades das pessoas, é difícil combater a abstenção. A única forma que temos de envolver as pessoas na política é dando-lhes sinais de que a sua opinião, as suas preocupações e o que defendem conta. As pessoas têm de sentir que fazem parte deste país, que fazem parte da tomada de decisão. Se calhar sou ingénua e muito otimista, mas acredito mesmo que podemos fazer isso e temos obrigação de o fazer. Vemos, por exemplo, o que é a luta incansável de tantos jovens neste país e no mundo inteiro para ter uma política a sério de combate à alterações climáticas, mas não vemos a tradução disso em nenhuma esfera de governação, não vemos sequer muitos partidos a dar-lhe importância ou uma Presidência a fazer disso uma causa. As novas gerações, que sabem que vão ser muito mais afetadas, lutam por isso. Como é que se podem rever na política? Mas acredito que podemos fazer uma política de proximidade cada vez maior e que há espaço para isso.

créditos: MÁRIO CRUZ/LUSA

Há mais de 40 anos que se vota da mesma maneira, que o Tribunal Constitucional conta as assinaturas que viabilizam cada candidatura à unha, que o dia da reflexão impede que se fale de política, apesar da Internet e do voto antecipado... Porque é que isto não se muda?

Algumas das medidas inscritas na nossa Lei Eleitoral são necessárias para proteger a integridade do ato eleitoral e para não desvalorizar as eleições. Percebo que alguém que se candidata à Presidência da República tenha de observar um conjunto de critérios, é um crivo às verdadeiras intenções dessa pessoa. Também não podemos perder alguma solenidade do ato, sob pena de desvalorizar ainda mais a democracia. Agora, também penso que há medidas claramente exageradas. Se é preciso ter a garantia de que quem se candidata quer de facto disputar a eleição, também não deve fazer-se de tal foram que se criem barreiras que não dão aos cidadãos igualdade de circunstâncias para concorrer. Haverá um meio termo para, por exemplo, cidadãos sem apoio partidário poderem concorrer. Do meu ponto de vista é obvio que é preciso rever a Lei Eleitoral, não para deixar cair as coisas na banalidade - as eleições não são uma banalidade, são mesmo um ato muito sério -, mas para as pessoas perceberem que têm voz. Há questões a mudar na apresentação das candidaturas, o que é pedido é excessivo, na acessibilidade ao voto e na garantia de que todos podem votar, temos de fazer uma reflexão muito séria e profunda sobre o voto de quem está fora do país, que muitas vezes tem dificuldade em exercer esse direito - e com os cortes da troika nos postos consulares e nas representações das embaixadas ainda mais difícil ficou. Há muitas reflexões a fazer. A vida democrática deve ser séria, enquadrada, respeitada, mas não pode ser um tormento, um calvário. 

Em que é que Marcelo Rebelo de Sousa falhou enquanto presidente, quais foram os seus principais erros?

Penso que, no essencial, foi nos problemas estruturais que temos na sociedade portuguesa - e que já existiam, não foi ele que os criou, mas também não fez muito para os eliminar. A primeira questão é a da saúde e do SNS, porque tivemos uma oportunidade de ouro para pôr em prática a Lei de Bases da Saúde, tal como foi desenhada pelo António Arnaut e pelo João Semedo, e foi bastante desvirtuada, muito pela influência do presidente, que quis manter os privados dentro da Lei de Bases da Saúde. Não tenho nada contra os privados serem envolvidos, por exemplo, no esforço de resposta à crise pandémica. Já tenho tudo contra as entidades de saúde que fazem das crises um negócio e não estão lá pelo preço de custo. Vimos que quando a crise pandémica começou os primeiros a fechar portas foram os privados, se não fosse o Serviço Nacional de Saúde, estaríamos numa situação muito pior do que estamos neste momento. A outra área é a do combate à precariedade. Começou por ser um problema de trabalho das gerações mais novas, e a Constituição portuguesa tem não só linhas de proteção dos direitos laborais, como tem linhas específicas da proteção do trabalho jovem, onde estamos a falhar redondamente. É uma das áreas em que o presidente deve exercer a sua influência, mas não o fez. E tivemos tantas situações de pessoas que foram abusadas nos seus direitos laborais: a Cristina Tavares teve uma situação de assédio horrível [o Tribunal Constitucional confirmou a prática de assédio moral por parte da corticeira Fernando Couto, em Santa Maria da Feira, e o pagamento de uma indemnização de 31.110 euros à funcionária, despedida e reintegrada duas vezes], que ultrapassou fronteiras e que tantas vezes chamou o presidente, que não foi lá; tivemos as mulheres da Touriya El-Bakkali, que estiveram meses acampadas à porta da fábrica, também chamaram o presidente e ele também não teve uma palavra, também não foi lá. Num presidente que foi tão presente e tão cheio de afetos, as ausências notam-se mais. Ele não teve uma preocupação pelo combate à precariedade e o nosso futuro é um futuro que está condenado pela prevalência dos vínculos precários nas relações laborais. São famílias inteiras que não podem ter planos, não sabem se podem mudar de casa, não sabem se podem ter filhos. Aí, falhou redondamente. Depois falhou nas relações com o sistema financeiro - temos opiniões muito diferentes, já tínhamos há cinco anos e isso não mudou. Lembro-me do que aconteceu com o Banif, com o Novo Banco, e acredito que cabe ao presidente proteger mais os cidadãos e não tanto o sistema bancário.

Porque é contra a injeção de mais dinheiro público no Novo Banco e é a favor da injeção de dinheiro público na TAP?

Em relação à injeção de dinheiro no Novo Banco, o processo vem desde a resolução do BES até à privatização, foi tudo mal feito, tudo sempre mal conduzido e tudo com um prejuízo enorme para os contribuintes portugueses. Mas não tenho muitas ilusões de que o Novo Banco não venha agora buscar todas as garantias que ficaram no contrato. E não digo que o Estado não deve cumprir o contrato - por mim este contrato nem sequer existia, mas, existindo, deve ser cumprido -, o que digo é que há indícios mais do que evidentes de que o Novo Banco está a usar subterfúgios para receber esse dinheiro o mais depressa possível e em quantidades superiores às que devia. O contrato é feito por duas partes e o que esta auditoria precisa de saber é: o Novo Banco está a cumprir a sua parte com o Estado da mesma maneira que o Estado está a cumprir com o Novo Banco ou não? E eu desconfio que não. E temos sérias razões para desconfiar que não. Aliás, em maio todos achavam que não, do primeiro-ministro, ao PSD, ao Bloco de Esquerda, ao PCP. O PSD, o PCP e o Bloco continuam a achar que não, só o primeiro-ministro é que mudou de opinião. É uma auditoria que se pede. Se for verdade que estão a cumprir, paga-se a tranche. Se não for, tem de se fazer ajustes na transferência.

E no caso da TAP?

A TAP é diferente. Se for para ser um instrumento de soberania ou uma transportadora nacional que possa servir como instrumento de coesão territorial, que possa servir como elo de ligação às comunidades portuguesas que estão espalhadas pelo mundo inteiro, que possa ser uma transportadora que nos salve nos momentos-chave, como aconteceu durante a pandemia, que se pôde fretar aviões para ir a várias partes do mundo buscar máscaras e ventiladores e as coisas que não tínhamos aqui, vale a pena investir. Se é para aquilo de que se anda a falar agora, que é para depois a entregar à Lufthansa, então não. Porque então seria igual ao Novo Banco, de facto não haveria diferença nenhuma.

"O silêncio do presidente em relação ao assassinato deste cidadão ucraniano [Ihor Homeniuk] é incompreensível"

E sobre os empregos? É possível salvá-los a todo o custo ou, como acontece tantas vezes, a negociação para salvar alguns postos de trabalho acaba por pôr em causa a viabilização da empresa e, por consequência, de todos os empregados?

Aí é preciso olhar para o plano de reestruturação. Se for necessário haver despedimentos, tem de se pensar o que é que se faz com essas pessoas. E penso que neste país não estamos em condições de desperdiçar os conhecimentos, a competência técnica, o grau de especialidade que têm os funcionários da TAP. Esses trabalhadores podem ser reincorporados noutros setores. Mas, volto a dizer, depende de qual é a finalidade do plano da TAP. Não podemos continuar a injetar dinheiro público nas empresas para, depois, dar o proveito a privados, isso não faz sentido.

Voltando um pouco atrás, um adjetivo para caracterizar o mandato de Marcelo Rebelo de Sousa?

Irregular. Teve coisas boas e positivas, sobretudo se comparado com o mandato de Cavaco Silva, mas falhou no essencial, que são os eixos que identifiquei: termos direito a um futuro e garantir que o país cuida das suas pessoas. Não é o que está a acontecer.

Se fosse presidente, o que teria feito de diferente, por exemplo, no caso do SEF ou no caso de Tancos, sendo até Comandante Supremo das Forças Armadas?

Bem, o presidente nunca pode substituir-se ao governo e às entidades envolvidas. Mas o silêncio do presidente em relação ao assassinato deste cidadão ucraniano [Ihor Homeniuk] é incompreensível. Aconteceu o mais grave que pode acontecer num Estado de direito, que é uma pessoa morrer às mãos do Estado. É claro que havia um processo a decorrer na justiça, mas um telefonema a dar as condolências, uma nota de pesar, não tinha interferido em nada com a justiça e custa-me aceitar que não tenha tomado posição. No caso de Tancos houve muitas falhas, mas generalizadas.

"Desejo que tenhamos em 2021 o que não tivemos em 2020: uma resposta adequada à crise. E não deixar ninguém para trás"

Muitos consideram que o presidente da República tem, na prática, poucos poderes. É dessa opinião?

Não acho que o presidente da República tenha poucos poderes, penso que tem os suficientes. O sistema português é muito equilibrado, porque dá muito peso, e bem, à Assembleia da República, e pesos equilibrados e distintos ao governo e ao presidente. O presidente tem muitos poderes e alguns podem até ser só simbólicos, mas os símbolos contam. E o presidente abraçar determinadas causas é o que pode fazer a diferença entre os problemas serem ou não resolvidos. Um presidente serve para evitar problemas, para resolver conflitos, e não para criá-los, mas não pode substituir outros órgãos de soberania. E, no caso de Marcelo, vimo-lo a tentar substituir-se a outros órgãos de soberania.

Onde termina a influência e onde começa a ingerência de um presidente?

Talvez não seja uma linha muito fácil de delinear, muitas vezes tem de ser vista caso a caso, mas, por exemplo, o presidente ter reunido com o diretor de uma força policial no âmbito do que se passou com o SEF é claramente fora do seu mandato. E é uma provocação, tendo em conta que, praticamente, estava a despedir o ministro ou a funcionar como se o ministro já tivesse despedido. Por exemplo, no caso da Lei de Bases da Saúde, Marcelo Rebelo de Sousa comprou a agenda dos privados, exerceu essa influência, do meu ponto de vista, além daquilo que são as suas competências, porque tem como missão a defesa do SNS e fragilizou o Serviço Nacional de Saúde. Em nenhuma situação esse caso a caso deve fragilizar os pilares da democracia inscritos na Constituição.

Defende o controlo público de setores estratégicos. Quais são, para si, esses setores?

Transportes, energia, correios. E manter os que são ainda públicos: Segurança Social, tribunais, educação, saúde.

Qual é o seu maior desejo para 2021?

É que haja força suficiente no país para defendermos o que é essencial - e acredito que os eixos que identifico são os essenciais. Desejo que tenhamos em 2021 o que não tivemos em 2020: uma resposta adequada à crise. E não deixar ninguém para trás.

O que a separa dos restantes candidatos à presidência da República?

Acredito que a minha candidatura é a que melhor defende os serviços públicos e os eixos que considero essenciais, nomeadamente é a que melhor encarna a defesa do SNS como o pilar de excelência da democracia e, por isso, me orgulhou de ter recebido o apoio de centenas de profissionais de saúde e o apoio destacado de algumas delas. 

Mas o que está a dizer não é quase mais uma coisa de governo, mais de ministra da Saúde do que de presidente?

Não, não. Sendo a maior conquista que temos da democracia em Portugal, é uma obrigação que temos e é uma tarefa de todos os órgãos de soberania sem exceção, cada um com o seu papel.