“Nas Misericórdias temos vários grupos de risco muito acentuado. Idosos, deficientes e cuidados continuados. É a panóplia do risco máximo”, diz Manuel Lemos, presidente da União das Misericórdias Portuguesas.
No seu posto de comando, em casa, depois ter feito um teste (negativo) “porque estive em contacto com António Tavares (provedor da Santa Casa da Misericórdia do Porto que está internado depois de um teste positivo de Covid-19), Manuel Lemos traça, ao SAPO 24, o retrato de um universo que reúne 388 Misericórdias. “Temos as Misericórdias do litoral, com mais gente, logo maior o perigo de contágio, mas também onde há mais recursos. E as Misericórdias do interior, menos gente e muito menos recursos. Em ambos os lados, os recursos estão na linha da frente”.
As instituições foram recebendo “algumas variações das próprias orientações”, na adaptação aos acontecimentos. Manuel Lemos é claro na leitura. “Ninguém sabe tudo sobre esta doença. Ou melhor, toda a gente sabe muito pouco sobre esta doença”.
Perante a pandemia, esta organização do setor social fundada no século XV, adotou uma tática. “A nossa guerra é isolar, isolar, isolar”. Uma guerra sem tréguas na qual até o exército foi chamado “para higienizar equipamentos e instalações”.
Manuel Lemos começa, com um desabafo, a explicação sobre a operação levada a cabo pelas Misericórdias. “Num primeiro momento todas tinham stocks pequenos, umas luvas, umas máscaras, fluía o seu uso. Era barato. Para ter uma ideia, em dezembro, há três meses, uma caixa custava 1,20€. Agora custa 26€”, refere.
O primeiro passo foi “impedir as visitas aos lares”. Recua no tempo. “Começamos por proibir uma semana antes do Estado decretar. Mas, como não era oficial, pode ter havido visitas. Seja como for, estão a terminar esses 14 dias”, sustenta.
Despir, limpar, mudar roupa, colocar EPI’s, trabalhar, despir, limpar e mudar roupa
“A única forma do vírus entrar é pelos trabalhadores. Não há outra forma”, frisa. Foi montado um plano de entradas e saídas. “Criámos salas de higienização para os trabalhadores. Trazem roupa de casa, despem, põe no cacifo, limpam-se, mudam de roupa, batas de serviço, colocam os EPI [equipamentos de proteção individual] e vão trabalhar. Quando saem é exatamente ao contrário. Tiram os EPI, tiram a roupa, limpam-se outra vez e vestem a roupa para ir para a rua”, detalha. “É a solução praticada na maioria das Misericórdias”, garante.
Noutras, nas quais foram detetados “alguns casos (infeção ou suspeição)” optaram por uma solução “mais drástica” que passou por “dividir os trabalhadores em metade. Fazem turnos de 7 ou 15 dias. O ideal é de 15. Quem não está a trabalhar, está de quarentena em casa. Para tentar isolar ao máximo dos doentes dos lares”, explica.
Quando aparece um doente infetado com Covid-19, o presidente das Misericórdias volta a palavra-chave neste contexto. “Orientação da DGS é tratar o doente dentro da unidade. E como se consegue? Isolando. E aqui os cuidados redobram-se substancialmente. Os casos mais graves chamamos as autoridades e vai para o hospital. No fundo, temos duas alas. Uma de Covid e outra de não Covid”.
Aproveita e recorda que também as Misericórdias disponibilizam hospitais ao SNS. “Avaliados com nota máxima pela autoridade reguladora de saúde, cedemos as camas ao ministério da Saúde para usar como bem entender. A ideia inicial era mandar doentes normais para não se misturarem com doentes com Covid-19. Mas se ganhar uma dimensão grande estamos de portas abertas”, antecipa.
“É difícil convencer famílias, claro que é. Mas é a única solução credível”
Nas Misericórdias Portuguesas, entre lares de idosos e residências, existem “700 estruturas residenciais”, número adiantado por Manuel Lemos. “Até agora tivemos um problema grave. Em Resende (2 mortos e 32 infetados)”, lamenta.
Manuel Lemos não se cansa de repetir o verbo isolar. “Todos os cuidados são poucos. E a única tese é isolamento, isolamento. Não é espetacular. Não é fácil de fazer. É difícil convencer famílias, claro que é. Mas é a única solução credível”, exclama.
Por falar em famílias, aproxima-se uma época do ano crítica. “Na Páscoa, com a vinda dos emigrantes, querem ver a pessoa que têm no lar. Não vão”, levanta a voz. “Por norma, pegavam no idoso e levavam-no para casa. Já nos perguntaram se podem e respondemos. Pode ir, mas antes de entrar tem que cumprir uma quarentena. Temos quartos”, adianta.
As missas dos padres e as conversas em Skype
Enaltece todos os que estão na linha da frente. Não esquece os 45 mil funcionários diretos. “Pedi na audiência ao professor Marcelo (no dia 25 de março) que desse uma palavra de ânimo para o setor. Também necessitamos. Não podemos ser esquecidos, as pessoas do setor social têm que ser ouvidas”, nota. “Uma população reconhecida para se sentir dignificada. E responsabiliza mais quem faz este papel”, assevera.
Aproveita e refere uma nota distintiva destas instituições. “Funciona, em nós, a rede do lar das Misericórdias”. O conceito é explicado. “O idoso que está no lar é o pai ou avô da funcionária, padrasto, padrinho”. Vai ao detalhe. “Há lares em que toda a gente conhece toda a gente. Foi professor da funcionária. Padre. Que casou ou batizou os filhos das funcionárias e funcionários. Eram os paroquianos deles e dos outros idosos. Os padres na sua maioria estão nas Misericórdias. Fazem missa e confessam.”, revela. “Há uma relação de proximidade que não existe noutros lados. Isto não se explica, sente-se. Dentro do isolamento, há esta proximidade”, sublinha.
Uma dimensão de proximidade que se consegue nestes tempos de distanciamento social com o recurso às tecnologias que precedem esta crise. “Os lares do interior utilizam mais o Skype. Para falar com os familiares que estão fora. Estão rotinados. E curioso, nas grandes cidades, há menos rotinas. Seja como for, há mais proximidade. É um mundo engraçado e complexo. Dá uma dimensão humana diferente”, conclui.
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