"A maior parte das escolas não estão a proibir o telemóvel" e não faz sentido "negar o evoluir natural da sociedade". Quem o diz é Filinto Lima, presidente da Associação Nacional de Diretores de Agrupamentos e Escolas Públicas (Andaep), ao SAPO24.
O debate sobre a proibição da utilização dos telemóveis nas escolas, que ganha espaço no arranque de cada ano letivo, foi este ano marcado pela petição "Viver o recreio escolar, sem ecrãs de smartphones", iniciativa de um grupo de pais, que tem neste momento mais de 20 mil assinaturas e foi apoiada pelo Bloco de Esquerda. Sem uma "posição definida" sobre o assunto, o ministro da Educação, João Costa, diz-se mais adepto da "promoção de hábitos saudáveis" do que da proibição. Nesse sentido, avançou com com o pedido de um parecer ao Conselho das Escolas.
"Isto é uma decisão pedagógica"
Mas cabe ao Estado definir as regras para a utilização de telemóveis em espaço escolar?
Proibir vs sensibilizar
"Esta questão deve ser discutida, mas parece-nos que não pode haver um decreto ou uma portaria a proibir os telemóveis. Isto é uma decisão pedagógica, que nos parece muito bem estar a ser discutida, até promovida pelo governo, mas deve ser uma decisão de cada escola. Espero que permaneça o bom senso", diz Rodrigo Queiroz e Melo, Director Executivo da Associação de Estabelecimentos de Ensino Particular e Cooperativo (AEEP).
O mesmo defende Filinto Lima. "Cada comunidade escolar deverá refletir sobre o uso de telemóvel e depois tomar uma decisão, mas não vejo com bons olhos que o Ministério da Educação diga às escolas públicas de Portugal que o telemóvel deve ser proibido. Acho que ninguém veria isso com bons olhos. Esta é uma decisão de cada comunidade educativa", reitera o presidente da Associação Nacional de Diretores de Agrupamentos e Escolas Públicas (Andaep)
Em Lourosa, desde 2017 que os telemóveis estão banidos dos recreios, nomeadamente na transição do 4º ano do 1º ciclo para o 5º ano do 2º ciclo. Em Almeirim é uma novidade de 2023, aplicando-se apenas no 1º ciclo.
"Muitas vezes parece que proibir é o único caminho, mas não é assim. Deve sensibilizar-se e explicar a proibição. Não pode ser uma decisão impulsiva de 'agora é ilegal' e pronto. Os alunos vão ter de perceber antes da decisão da escola", defende Rodrigo Queiroz e Melo.
E, nota Filinto Lima, grande parte das escolas já aplica regras. Por exemplo, quando "o aluno quando entra em contexto de sala de aula, tem que desligar o telemóvel, tem de o colocar na mochila e depois quando sai pode trazê-lo e usá-lo".
"O que é que o Estado proíbe neste momento? Drogas nas escolas, bater nos outros alunos, etc., mas os telemóveis ainda não são um objeto ilegal e, por isso, são decisões das escolas incluir este objeto dentro dos seus espaços ou não", diz Rodrigo Queiroz e Melo.
Portanto, "ao ministério compete promover o debate, mas não proibir. Não é por discordarmos das escolas que o fazem, mas achamos que não é uma competência do governo", conclui.
O que dizem os Encarregados de Educação
Os pais, por sua vez, não andam longe desta mesma linha de pensamento. Mariana Carvalho, presidente da Confederação Nacional das Associações de Pais (CONFAP), refere que há consenso quando se diz que "regras são necessárias", mas a proibição não resolve. "A sensibilização e formação são sempre a melhor opção, isto com a ajuda dos encarregados de educação", defende.
E lança ainda a questão: "se for proibido durante o horário letivo, corremos o risco de existir um uso abusivo durante o tempo da família e durante a noite, logo a resposta é as regras e a sensibilização".
Além disso, defende, "cada escola tem de ter as suas regras, porque cada realidade é específica". Olha para as excepções e, a título de exemplo, refere alunos que tenham dispositivos médicos dependentes do telemóvel, ou casos em que os alunos se deslocam sozinhos para a escola e necessitam de contactar os encarregados de educação.
Paralelamente, "muitas escolas e muitos professores já estão a solicitar telemóvel para o uso pedagógico na sala de aula", diz. "Muitas vezes as escolas não estão preparadas para os alunos utilizarem o computador, mas o telemóvel é mais fácil e muitas vezes solicitado", algo que faz com que "não se possa pedir para trazer numas situações e em outras não".
Filinto Lima defende mesmo que "o telemóvel na escola não deve ser um intruso, mas sim um convidado", dando também como exemplo casos em que os professores utilizam esta ferramenta para pesquisas em sala de aula.
Quando o telemóvel é objeto de controlo
No que diz respeito à sensibilização para um uso responsável, professores e pais devem alinhar o discurso e a ação.
"As crianças não devem trazer o telemóvel para o recreio porque o pai ou a mãe querem dar um beijinho no intervalo."
"É necessário que as famílias se comprometam na sensibilização para o uso regrado do telemóvel", diz Filinto Lima. E exemplifica: "concordo que as escolas realizem campanhas com vista a priorizar o sono dos alunos, porque os jovens vão para a cama e ficam até altas horas da noite a jogar jogos no telemóvel. A escola pode sensibilizar, mas se em casa não existe o cuidado de verificar que o aluno vai para a cama e não joga no telemóvel, o trabalho de sensibilização deixa de ter efeito. É necessária uma parceria entre as escolas e a família".
Filinto Lima dá outro exemplo: "muitas vezes os alunos usam no recreio o telemóvel porque sabem que os pais lhes querem ligar, ou seja, os pais também tiram a independência e a autonomia dos alunos, ligando-lhes nos intervalos, quando não é nas próprias aulas".
Acrescenta que "muitos pais dão um telemóvel aos filhos porque sabem que, se lhes derem um telemóvel, controlam o filho dentro da escola e isso tira-lhes autonomia. As crianças não devem trazer o telemóvel para o recreio porque o pai ou a mãe querem dar um beijinho no intervalo". "Os pais não devem ter este tipo de atitude", sentencia.
Nas escolas privadas esta não parece ser uma realidade tão presente, em parte explicada pela confiança que os pais depositam na comunicação entre as escolas e a família. Contudo, o Director Executivo da AEEP sublinha que "os miúdos devem estar libertos nas escolas, e quando existem problemas a escola contacta os pais. Não existe necessidade de ter esta conectividade permanente".
"Do ponto de vista educativo, o constante contacto com os pais não é positivo e as escolas privadas já pensam nisto há muito tempo", acrescenta. "Não existe nenhuma necessidade de o jovem contactar com os pais durante o período letivo. Não é educativo e não é bom. Além das redes sociais, muitas escolas privadas já tinham esta preocupação com a autonomia antes de ser um problema relacionado com as redes sociais", ressalva.
Se nas escolas primárias (1º ciclo) o uso de telemóveis é residual, o problema adensa-se à medida que os estudantes vão ficando mais velhos, "a partir do 5.º ano em diante", refere Filinto Lima. Uma visão partilhada por Rodrigo Queiroz e Melo, que reforça que o uso destes objetos em ambiente escolar é residual em escolas com crianças mais novas.
Sandra Helena, psicóloga e psicoterapeuta especialista em crianças e jovens, da clínica Psinove, refere também que "a proibição de telemóveis nas escolas pode efetivamente não resolver todos os problemas que as crianças e jovens têm ou podem ter com o seu uso", colocando a tónica na necessidade de "falar sobre tudo isto e discutir com os intervenientes, pais, crianças e jovens o que está a acontecer. Implementar estratégias, promover práticas saudáveis e equilibrar com a possibilidade de autorregulação de comportamentos gerará uma atitude de maior eficácia na redução da utilização de telemóveis no contexto escolar".
Este também deve ser o caminho fora do contexto escolar, salienta Filinto Lima. "Várias vezes observa-se crianças e pais no restaurante a mexer no telemóvel, e por esta razão a escola não pode fazer milagres. A escola não pode proibir quando os pais não proíbem. Muitas vezes, os pais preferem que as crianças estejam no telemóvel para não chatearem durante a refeição", exemplifica.
"Não se pode proibir para as crianças, e depois os professores e auxiliares usarem abusivamente"
Este é inclusivamente um problema assumido pelos próprios pais, diz Sandra Helena. "Um dos maiores problemas para os pais é a gestão dos tempos livres sem a tecnologia, o que é verbalizado por muitos deles". Apesar disso, "por vezes, demitem-se do processo de reflexão acerca do que fazer para contrariar esta tendência, mesmo aqueles com crianças pequenas, que são muito permeáveis à aceitação de oferta de outras experiências mais enriquecedoras e que não comprometem o seu bem-estar".
Neste sentido, a psicóloga defende que "é fundamental, depois de se terem criado tantos hábitos relativamente ao uso de telemóveis, estipular regras e atuar com ações de sensibilização também para os pais no que diz respeito aos malefícios da utilização abusiva".
Dar o exemplo é importante, nota Mariana Carvalho, da CONFAP: "Não se pode proibir para as crianças e depois os professores e auxiliares usarem abusivamente. Esta também deve ser uma questão a colocar", refere. Nesse caso, "os alunos podem até considerar que estão a ser injustiçados e isso não é positivo, em especial em alunos mais velhos", diz ainda.
Nesta matéria, Rodrigo Queiroz e Melo assume que "os jovens aprendem pelo exemplo. Parece-me bastante evidente que os professores não usem o telemóvel para redes sociais e outras atividades lúdicas enquanto estão com os alunos. Agora, parece-me errado que os professores estejam a fazer estas atividades no recreio enquanto os alunos observam, mas isso é uma questão de cada escola", ressalva.
Em suma, diz Filinto Lima, "não se pode ficar atrás de uma evolução normal da sociedade. É necessário ensinar os jovens a usar de forma regrada".
"Nas situações em que é regra os telemóveis não estarem presentes na escola, as crianças conseguem vivenciar as relações cara a cara, com toda a autenticidade de um relacionamento"
Os efeitos negativos do uso abusivo de telemóveis nas escolas
Mas há idade ideal para dar um telemóvel a uma criança? Isso "depende naturalmente de muitos fatores", diz Sandra Helena. "Deve refletir-se sobre a necessidade deste objeto para o aluno, principalmente admitir se necessita do mesmo por alguma ação específica ou porque todos os colegas têm um telemóvel Esta pode ser uma pergunta que todos os pais deverão fazer a si mesmos: será que uma criança de 10/12 anos tem necessidade de um objeto que lhe retira tempo de brincar?", questiona.
Do ponto de vista científico, a psicóloga e psicoterapeuta lista os efeitos negativos da utilização dos telemóveis, nomeadamente:
- Impacta a atenção e concentração, prejudicando o desempenho académico;
- Interfere no sono, provocando fadiga e dificuldades na aprendizagem;
- Condiciona as habilidades sociais, diminuindo o tempo de socialização presencial;
- Afeta o desenvolvimento da linguagem e da comunicação, com o tempo de ecrã a substituir interações verbais;
- Possibilita o acesso a conteúdos com linguagem e imagem inapropriadas, como o sexting (troca de mensagens eróticas com ou sem imagem), prejudicando o desenvolvimento emocional;
- Contribui para um estilo de vida sedentário, potenciando a obesidade infantil;
- Aumenta o tempo de presença nas redes sociais e videojogos, podendo dar uma ilusão de contacto que não corresponde à realidade.
"Nas situações em que é regra os telemóveis não estarem presentes na escola, seja no interior ou exterior da sala, as crianças e os adolescentes conseguem vivenciar as relações cara a cara, com toda a autenticidade de um relacionamento", defende.
Assim, "é importante perceber que as tecnologias são fundamentais, mas o equilíbrio entre as tecnologias e o estar com o outro presencialmente, que é a forma como todos aprendem a lidar com as emoções, a identificá-las e autorregulá-las, é demasiado importante para deixar este tema para outro plano que não o principal", continua.
"O impacto positivo de aprender no digital pode ter sido exagerado"
O que se discute lá fora
O debate sobre o uso de telemóveis nas escolas não é um exclusivo nacional. Em julho deste ano foi até um tema discutido pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), que apelou aos países para tomarem medidas para que o uso de telemóveis nas escolas seja banido. No caso desta organização, o objetivo é combater a desatenção nas salas de aula, melhorar a aprendizagem e proteger as crianças do cyberbullying, algo potenciado pelas redes sociais.
Num relatório da Unesco, intitulado "Global education monitoring report, 2023: technology in education: a tool on whose terms?" ("Relatório de monitorização da educação global, 2023: tecnologia na educação: uma ferramenta nos termos de quem?", tradução livre), a organização aponta que existem provas de que o uso excessivo dos telemóveis está relacionado com pior desempenho escolar e de que elevados níveis de exposição a ecrãs têm efeitos na estabilidade emocional das crianças.
Defende ainda que "nem todas as mudanças são sinónimo de progresso", e alerta que "o impacto positivo de aprender no digital pode ter sido exagerado".
Diz também que há pouca evidência de que a tecnologia nas salas de aula acrescente valor à aprendizagem, e afirma que a maior parte dos estudos que apontam nesse sentido são financiados por empresas privadas de educação com o objetivo de vender produtos digitais, o que "gera preocupação".
Insiste, da mesma forma, que a tecnologia deve estar "ao serviço de uma educação centrada no ser humano", e que "não pode substituir as interações cara a cara entre alunos e professores".
"A socialização promove o desenvolvimento emocional, e a utilização abusiva de telemóveis pode potenciar o isolamento social"
Cyberbullying
Sendo o cyberbullying uma das principais consequências do uso dos telemóveis destacadas no relatório da Unesco, o SAPO24 questionou Sandra Helena sobre a ligação este este tipo de violência e o uso abusivo da tecnologia.
"É inevitável o uso da Internet e ecrãs", começa por dizer. "É só imaginar a pandemia sem a utilização destes meios para as crianças e jovens continuarem ligados à escola. No entanto, existe atualmente um excesso da utilização destas ferramentas". Por um lado, "é compreendida a importância da Internet e tecnologia no ambiente escolar. Por outro lado, no ambiente natural de integração escolar e social, os telemóveis têm impacto direto na socialização, no cyberbullying e na interação virtual e presencial entre os pares", refere.
Entre os riscos da utilização dos telemóveis na escola, lista "o aumento de episódios de cyberbullying, uma maior possibilidade de exposição a conteúdos inapropriados, a diminuição do contacto e interação cara a cara, e a menor concentração e atenção na sala de aula."
"Jogos e redes sociais nos recreios são as escolhas de muitos jovens em vez de conversas, gargalhadas e criatividade nas interações", nota. "A socialização promove o desenvolvimento emocional, e a utilização abusiva de telemóveis pode potenciar o isolamento social", conclui.
"Sempre existiu bullying, só não era o cyberbullying"
Do ponto de vista dos pais, Mariana Carvalho sublinha que "tudo o que é tecnologia é um facilitador do cyberbullying, mas temos de pensar que também pode ajudar a prevenir. Se existirem regras de utilização dos telemóveis e sensibilização, pode melhorar".
Aponta ainda que "a proibição não ajuda nestes casos, porque os jovens podem não praticar cyberbullying dentro da escola, mas quando saírem fazem na mesma. Nesse sentido o melhor é sensibilizar e prevenir", reitera.
No caso das escolas públicas, Filinto Lima salienta que o cyberbullying é um dos perigos observados, mas refere que "quando saímos de casa existem sempre vários perigos, e é necessário ensinar as crianças a enfrentar esses perigos. Ensinar as crianças a enfrentar os perigos não é proibir", diz. Destaca ainda o poder que as redes sociais têm diariamente no agravamento destas questões. Porém, lembra que "sempre existiu bullying, só não era o cyberbullying".
Neste contexto, elogia programas como a Escola Segura, que é uma parceria entre os ministérios da Educação e da Administração Interna, que dá formação sobre o bullying o cyberbullying nas escolas. "Já existe há muitos anos esta formação, e os alunos têm acesso a estas ferramentas em várias áreas do digital", refere o presidente da Andaep.
Do ponto de vista das escolas privadas, Rodrigo Queiroz e Melo sublinha que "ainda não existe certeza que o cyberbullying seja evitado proibindo os telemóveis. No caso do tabaco, é proibido nas escolas para adultos e menores porque se chegou à conclusão que se deve proibir a utilização nos espaços das escolas por uma questão de saúde".
"Se chegarmos à conclusão que existe um risco de saúde pública com o uso dos telemóveis, algo que ainda não foi provado, então aí deve haver regras diferentes, não só nas escolas, mas em todos os contextos. Não estamos nesta fase", conclui.
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