“Era uma vez...”. As histórias, por norma, começam assim. Ou talvez não. Quem o diz é quem as conta. Quem as lê. Rosana, é uma dos 548 voluntários da “Nuvem Vitória”, uma associação que nasceu em 2016 e que tem como missão contar histórias a crianças internadas em hospitais ou outras instituições de saúde. O mote: histórias infantis entre as 19h45 e as 22h00, de segunda a sexta-feira.

Esta foi uma noite igual a tantas outras. Rosana dirigiu-se ao Hospital de Cascais, uma das oito unidades (Santa Maria, São João, Centro de reabilitação de Alcoitão, Leiria, Braga, Garcia de Orta, Cascais e Casa da Fundação António Luís Oliveira) que fazem parte da “rede”. À sua espera estavam três voluntárias, Marisa, Maria João, Ana Filipa e Isabel Janela, coordenadora em Alcoitão e Cascais.

As quatro voluntárias e respetiva coordenadora de área estão inscritas numa “plataforma” que as distribui “por zonas”, explica Isabel, no átrio espelhado do Hospital de Cascais. Para ali estarem, todos os voluntários — apenas 10% são homens — passam por uma formação que lhes permite adquirir "conhecimento e contacto com os cuidados a ter, desde lavagens das mãos até aprender a contar histórias em ambiente hospitalar”, continua, no briefing ao SAPO24, antes de iniciar mais uma sessão de leitura na ala pediátrica.

Explica ainda algumas regras: “a mesma historia não é lida à mesma criança, a não ser que esta peça”. E é “quase obrigatório” refazer o stock de livros, em especial em Alcoitão, “local de presença prolongada”, evitando a “repetição”. Funcionam sempre em “duplas”, “quatro idas por mês”, adianta Isabel. Dá mais uma achega: é sempre “num período em que há mudança de turno de enfermeiras e enfermeiros, médicos e médicas e limpezas”.

Marisa, Maria João, Ana Filipa e Rosana trazem a tiracolo um saco de pano com livros. “Não pomos no chão”, por questões de higiene, diz Marisa. “Cada uma traz os seus livros. O que leio depende das crianças e idades”, acrescenta Rosana. “Quem tenha tido um acidente numa piscina não leio sobre o mar”, exemplifica.

Com um cartão de acesso pendurado ao peito (com número do cartão de cidadão e a apólice de seguro), sobem, no elevador, ao piso dois. Dirigem-se à pediatria. Tocam à campainha. Identificam-se. Percorrem um corredor de cores. Azuis, brancos, verdes, amarelos, cor-de-rosa e encarnados. Há animais e plantas nas paredes. Uma fauna e flora infantil, alegre, que nos remete para um mundo do faz de conta. Sapos, ursos, papagaios, porcos, flores e árvores, nenúfares. Quadros com seres humanos e seres efabulados. Princesas e miniaturas de Pai Natal. Tem sala de leitura e de brincadeiras. Parece uma escola.

“Será um rato?”

Apresentações feitas junto da enfermeira-chefe de serviço. É altura de vestirem a farda que servirá de cartão-de-visita junto das crianças: uma camisola azul clara com a inscrição “Nuvem Vitória”. Fazem-no num dos quartos que está, por norma, reservado aos pais que acompanham os filhos em estado de internamento. Ali, em pouco menos de 10 m2, fazem uma selfie para alimentar redes sociais. Estão preparadas para dar o seu tempo aos outros. A miúdos e graúdos.

Reúnem, de novo, com a enfermeira-chefe. A coordenadora alerta para que as conversas tidas sejam sempre com corredores abertos “para não atrapalhar uma qualquer emergência” às crianças.

São distribuídas as zonas de ação de cada uma das duplas. Maria João e Ana Filipa; Rosana e Marisa. Ficam a saber o número dos quartos, estado da criança e idades e que nesta noite ação de voluntariado resumir-se-á a quatro crianças. As histórias, pré-selecionadas, juntam-se à lista de 46 mil contadas em três anos.

Em silêncio, seguem, em sentidos opostos, cada qual para um ponto cardeal do corredor. Norte-sul. O choro de uma criança relembra-nos que estamos num hospital.

Desinfetar as mãos é um gesto que se repete em ato contínuo antes da entrada no quarto. As portas estão semiabertas. Há um truz-truz imaginário que se escuta no “boa noite, podemos entrar?”, vindo de Maria João. Entram e tiram um livro.

“Será um rato?”, de Guido Van Genechten, é a primeira viagem pela leitura. “Será um rato? Não, desapareceu... Será um pinguim ou será um macaco?, pergunta, pausadamente, Ana Filipa, à criança aconchegada no colo da mãe. “Agora vou fazer magia... uma cobra. Não gosto de cobras, afinal era um elefante”, exclama.

O monólogo não dura mais de cinco minutos. A história termina numa página de onde emerge um espelho. A criança tem visível inferioridade física e cognitiva. Verbaliza e sorri com o olhar. Fixa, em alternância, a contadora de histórias e o livro. Contorce-se à procura da aprovação da mãe, que, derretida pelas emoções, bate palmas. Aproveita o embalo e, junta as suas mãos às da filha e juntas aplaudem em jeito de agradecimento. Acenam em conjunto: até à próxima.

No quarto a lado escutam-se sons que saem de dentro de uma caixa. Ana Filipa encontrou na música a forma de vencer a barreira linguística com que se deparou. Na lotaria calhou-lhe uma mãe e um filho com meses de vida, de etnia chinesa. Em pouco mais de um minuto sai da mesma forma como entrou, num lusco-fusco que a caixa mágica ajudou a iluminar. “Não valia a pena insistir”, confidencia.

“A grande fábrica das palavras”

Por instantes, a magia da história, do conto, da leitura, das palavras soltas e soletradas, vence a tecnologia de um tablet ou telemóvel. Partilham mais que a soma de palavras. O like assume a forma de sorrisos. De filhos, pais e mães, assim como das voluntárias da “Nuvem Vitória”, associação criada por Fernanda Freitas, ex-jornalista, que acumula o cargo de presidente e voluntária, e que impactou “mais de 26 mil internamentos”, informa a associação que em 2018 viu o Lidl, através de uma campanha solidária de natal, contribuir com 148 mil euros, verba que permitiu o alargamento do núcleo de contadores de histórias em Braga, Almada e Cascais.

Demos um salto até à outra dupla. Rosana tem na mão o livro “A grande fábrica das palavras”, de Agnès De Lestrade. “Existe um país onde as pessoas quase não falam. É o país da grande fábrica das palavras”, começa assim. “Cereja”, “Poeira” e “Cadeira” são três palavras que saem da boca de Filipe, personagem central, a par de Sara.

A fonética com pronúncia de português do Brasil embala criança e mãe. Chegam à última página. Não a mostra, propositadamente. E debita a última palavra, especial, que Filipe guardou para a Sara: “repete”.

Pergunta à miúda se quer outra história. Um tímido e pouco audível sim dá o aval.

“Um pinguim que não gostava do frio” é a obra literária selecionada. “É o máximo”, solta Rosana, que sai de cena. Marisa, dá um passo em frente e aproxima-se da cama. Explica que se trata de um pinguim, de nome Pablo, que não gostava de frio. “Achas que acaba bem?”, pergunta Marisa antes de arrancar a ler. Um gesto com a cabeça equipara-se ao baixar da bandeira numa prova de automobilismo.

Na pele de artista, Marisa, apercebe-se que pode interagir com o seu público: a criança de nove anos e a mãe. A história desenrola-se. “Pablo desce a colina e o que é que lhe acontece?", pergunta. “Cai”, responde a criança. “Isso mesmo...”, devolve. As páginas são folheadas ao sabor da narração. Aproxima-se o fim. É um final feliz com o pinguim, que não gostava de frio, a chegar a uma terra de calor.

O relógio aponta para 13 minutos após as 21h00. “Vitória, vitória, acabou-se a história”, entoam, em simultâneo, Marisa e Rosana. Fim desta história e continuação de outra. “Posso comer”, pergunta a miúda à mãe, em jeito de apito final.

A mensagem de base é de vitória sobre a doença. Mas a história não acaba aqui. Porque quem as soletra também tem uma para contar.

“A história do Capuchinho Vermelho que dá a volta ao lobo”

Voluntárias e coordenadora regressam à casa de partida. Tiram a camisola da Nuvem Vitória que servirá de embrulho a um livro. “É para não amarrotar”, explicam. Preenchem o “diário” da noite na plataforma: número de crianças, idades e histórias.

Ana Filipa estreou-se em Cascais, mas é “Nuvem” desde 2018. O voluntariado não é novidade. “Sempre fiz, desde miúda, noutros projetos”, revela. “Gostar de histórias é transversal”. As histórias são também “as nossas histórias”, admite. “Há livros que resultam bem com uma pessoa e se for eu a contar, não resulta”, assume. Revela que não necessita de “um toque para interagir”, basta-lhe “um sorriso ou olhar”.

A reportagem apanhou Maria João em estreia na “Nuvem Vitória”. Já cozinhou e plantou árvores ao serviço de outras instituições. Da formação ganhou uma “outra maneira” de contar histórias às filhas.

Uma condição sobrepõe-se às demais na hora da leitura. “Temos que gostar das histórias que estamos a ler”, atira. “Saltamos palavras. É mais um teatro. A avaliação e olhar a criança determina se lemos ou passamos as imagens”, explica.

Estreante no voluntariado, Marisa assume que é “desafiante” encarar a noite. “Não sei as crianças que vou encontrar”, antecipa. Em relação ao que narra, diz, “tem que dizer-me alguma coisa. É uma peça de teatro, não lemos. Se não houver interesse da criança, não forçamos”, frisa. “Há livros piores e melhores e temos que saber entender o espírito do quarto”, acrescenta.

Acredita que todas as histórias “têm de ter um final feliz”, embora reconheça que não “é sempre assim”. Por isso, procura “transmitir o máximo de segurança às crianças”. Além disso, mesmo histórias “infelizes” transforma “em felizes”. Diz que não começa sempre com “Era uma vez”. Mas acaba sempre igual: “Vitória, Vitória, acabou-se a história”.

Rosana é “Nuvem” há 1 ano. É uma mulher do teatro. Descreve as noites como um momento “fantástico” que “as crianças adoram” e “nós também”. Cada noite é “uma renovação”, não só pelas “duplas”, como pelas “crianças”, deparando-se com “formas diferentes de contar a mesma história”. O objetivo “não é que adormeçam, embora aconteça, mas sim acalmar meninos e pais. É bonito as crianças terem alta e os pais enviarem mensagens a agradecer e tornarem-se nuvens”, relata.

É aqui que entra a história de Ana Monteiro. Já esteve no papel de ouvir histórias enquanto acompanhou a filha. “Aos seis anos, esteve internada mais de um mês, em 2017. Conheci o projeto e tornei-me voluntária desde então”, recorda. “Comecei a ser uma 'Nuvem' para passar a mensagem a pais e crianças, e dar um conforto que acaba por fazer esquecer o momento”, referiu. “É fazer a diferença e trazer um bocado de aconchego”, explica.

Regressemos a Rosana. Já se sabe que nem sempre começa por “Era uma vez”. E histórias felizes para sempre? "Nem todas”. Mas gosta de histórias com humor. A escolha “depende da idade. Em Alcoitão, até 21 anos, muito querem conversar e arranjamos livros mais apropriados”, e diferentes dos daquela noite em Cascais. Um exemplo? “Uma versão do Capuchinho Vermelho que dá a volta ao lobo”, sorri. “Trata-se de descobrir um mundo novo da literatura infantil”, remata.

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