Sobre tudo o que se passa na região, onde o Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina (PNSACV) e a zona de rega do Mira disputam o mesmo espaço, Luísa Rebelo não tem dúvidas de que é o Governo o culpado pela desorganização que se vive e diz que turismo e agricultura até podiam conviver em harmonia.

E há coisas que não entende. Conta uma delas assim: teve um terreno de 11 hectares perto da Zambujeira do mar, herança, que pôs à venda e para o qual apareceram duas propostas, um senhor que queria construir uma casa de férias e outro que queria construir estufas. Vendeu ao primeiro, que fez um projeto que nunca foi aprovado e que por isso teve de vender o terreno, comprado pelo empresário que rapidamente lá ergueu uma estufa de tomate, em vidro e com alicerces em cimento.

E como é que isto acontece? "Porque a Câmara não manda nada e o ICNF (Instituto de Conservação da Natureza e Florestas) põe um carimbo e podes instalar o que quiseres".

Luísa Rebelo nunca mais foi ao terreno. Dedica-se a gerir a Casa da Seiceira, de turismo rural, na freguesia de São Teotónio, perto das praias do Carvalhal, Amália ou Machados. Mas está "rodeada de estufas".

Turismo rural rodeado de estufas
Turismo rural rodeado de estufas NUNO VEIGA/LUSA créditos: © 2021 LUSA - Agência de Notícias de Portugal, S.A.

"Isto era um paraíso. Já havia uma ou outra estufa mas nada como está agora", diz, culpando o Governo por permitir esse aumento de estufas com uma resolução do Conselho de Ministros em 2019, apesar de já nessa altura haver pedidos de legislação para que houvesse um controlo da agricultura intensiva na zona.

"Tudo aquilo que estamos a viver neste momento é culpa do Governo central", que não cria leis para que o PNSACV e a agricultura possam coabitar, que façam da agricultura intensiva "uma coisa ordenada".

Luísa Rebelo conta à agência Lusa que foi ali, na Casa da Seiceira, a primeira reunião para criar o projeto Rota Vicentina, uma associação privada que junta empresas locais para promover o turismo e a cultura local nomeadamente através de trilhos, e que pouco tempo depois já estavam de novo a reunir-se e a fazer comunicados e alertas.

"É evidente que se isto não for travado estes investimentos não vão servir para nada. Já tive alguns clientes que diziam que não podiam olhar para o lado esquerdo. As pessoas vão começando a manifestar-se contra estufas", diz.

Numa altura em que tanto se falou das condições em que vivem os imigrantes sazonais na região, depois de um surto de covid-19, que obrigou à imposição de uma cerca sanitária, Luísa Rebelo diz que os "imigrantes são os menos culpados", lembra que a associação Casas Brancas (de setores do turismo) angariou uma tonelada de alimentos para os imigrantes, diz que as situações em que vivem são desumanas e admira-se que "só agora" Portugal tenha acordado.

E lamenta também que se abram as portas para que entre pessoas sem contratos de trabalho, que sobrecarregam as estruturas da região.

"É impensável que uma região consiga absorver tanto imigrantes como o número de residentes. Isto vai criar conflitos. E o pior é que muitos destes imigrantes não vêm para trabalhar, vêm para se legalizar e depois vão embora. Chegaram aqui por máfias que os trazem. Conhecemos situações que são denunciadas há muito tempo, mas nunca ninguém quis saber", aponta.

Luísa Rebelo continua: "Sabemos de casos em que chegam aqui, alugam um supermercado e têm 20 empregados. Estas pessoas pagaram para chegar aqui, fazem-lhe contrato até elas poderem ter subsídio de desemprego, esse subsídio é para pagar a quem os trouxe e a casa e ficam quase sem nada. E vão buscar mais pessoas, que não vão trabalhar na agricultura".

Sentada num alpendre do interior da casa, revoltada com o que por estes tempos se passa na região, lamenta também que lhe "encham os ouvidos" com a contribuição para o PIB da agricultura intensiva de Odemira e pergunta quantos milhões ficam de facto no país, quanto fica no concelho, pergunta se não será o turismo, o setor mais prejudicado, que deixa mais dinheiro.

E reafirma que não é contra a agricultura, é sim contra a "irresponsabilidade e negligência", incluindo no planeamento da água, um bem que começa a escassear. "Há toda uma população e economia em causa por causa da negligência do Governo".

Uma das funções do PNSACV é evitar a construção desenfreada junto à costa, mas não impede as estufas junto à costa, diz, falando dos locais inseridos na Rede Natura 2000, mas também da desmatação, da destruição de ecossistemas.

Luísa Rebelo espera que agora, com tanto barulho à volta da região devido à cerca sanitária que acabou na semana passada, o sacrifício não tenha sido em vão. "Todos esperam isso", porque caso contrário vai haver "uma série de conflitos, que podem ser graves".

"Quero acreditar que isto tem de mudar". E depois, no plural: "O sentimento que temos é o de que o Governo não se preocupa connosco".

Praia da Amália no Brejão
Praia da Amália no Brejão Uma placa junto a uma zona de agricultura intensiva, no estreito caminho de acesso à Praia da Amália (onde a fadista tinha uma casa de praia), onde corre para o mar uma ribeira que segundo os habitantes vizinhos leva muitas vezes nas águas o que suspeitam ser resíduos de produtos utilizados na agricultura intensiva desta zona. Odemira, 10 de maio de 2021. NUNO VEIGA/LUSA créditos: © 2021 LUSA - Agência de Notícias de Portugal, S.A.

Pior do que o "faroeste" no Alentejo e culpa é do Governo

José Fayo, empresário agrícola espanhol no sudoeste alentejano, considera que a situação que se vive na região é pior do que o "faroeste", uma confusão generalizada e mal-entendidos, e vê um único culpado: o Governo português.

A região é caracterizada pela coabitação entre o Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina (PNSACV) e a zona de agricultura intensiva, com centenas de hectares de culturas de regadio, muitas delas em estufas. Nas últimas semanas foi muito noticiada a situação dos imigrantes, que trabalham sazonalmente na região, e um surto de covid-19 que levou à imposição temporária de uma cerca sanitária.

"O Governo português não sabe o que faz nem o que quer para a agricultura", diz, comentando à Lusa a situação, que afeta especialmente o concelho de Odemira.

E começou logo, diz, com a questão do PNSACV.

"Aqui há um perímetro de rega de há 50 anos, o Parque Natural chegou depois. Como é que marcam um parque natural encima de um perímetro de rega? Se querem fazer um parque natural têm de falar com as pessoas, indemnizá-las, e depois fazerem o que quiserem. Mas assim? Vão decidir o que eu tenho de fazer na minha casa? Com o meu dinheiro?", questiona.

José Fayo trabalha em Portugal há 25 anos, teve uma fábrica de sumos em Silves, citrinos em Alcácer. No concelho de Odemira comprou hectares de terreno, muitos, e envolveu-se numa disputa legal de pareceres e embargos que durou anos. Diz que ganhou todos os casos em tribunal.

Está agora, finalmente, a preparar o terreno para começar a sua agricultura, não com estufas, mas com árvores, abacates.

Mas o abacate não consome muita água? Eleva a voz na resposta: "o abacate consome menos água do que as laranjeiras ou as oliveiras, tudo o resto são mentiras. As estufas emitem dióxido de carbono, nós limpamos o dióxido de carbono".

E José Fayo tem outras convicções, como a de que aquilo que pode salvar Portugal é a agricultura e o turismo, pelas condições do solo e pelo clima, como a de que os "sete mil hectares de estufas da região são legais".

Habitantes rodeados de estufas no Brejão, com novas instalações a surgir
Habitantes rodeados de estufas no Brejão, com novas instalações a surgir Novas estufas estão a ser construidas junto ao Brejão (Odemira), zona onde os habitantes estão rodeados por este tipo de agricultura intensiva e se queixam entre outras coisas do aumento da quantidade de moscas, para além do cheiro dos produtos químicos utilizados na agricultura. Odemira, 10 de maio de 2021. NUNO VEIGA/LUSA créditos: © 2021 LUSA - Agência de Notícias de Portugal, S.A.

E tem também coisas que não entende. E explica: o trabalho do perímetro de rega (através da barragem de Santa Clara e de um sistema de canais) precisa de pessoas e os empresários há sete anos que pedem para fazer apartamentos para os trabalhadores, mas as autoridades dizem que não é possível fazer habitações dentro das explorações, embora agora se possam colocar contentores.

"Cada trabalhador devia vir com um papel passado pela embaixada portuguesa de cada país e com um contrato para uma empresa. Assim não havia máfias nem irregularidades. E as pessoas vinham já com casa, não se metiam 15 pessoas dentro de um quarto, autênticas pocilgas". E acrescenta: "Máfias? Há 10 anos que acontece e só agora é que viram?".

No atual estado de coisas há apartamentos na região que rendem mais do que um andar na avenida da Liberdade, em Lisboa, diz.

"O problema não está nos agricultores, está na administração, que não permite apartamentos nas quintas para que cada empresário tenha trabalhadores controlados e legais. E sabe porque não pode ser assim?". A resposta chega de seguida: "Porque se for assim as casas alugadas acabam, e os donos dessas casas são os que votam, não os trabalhadores".

Tudo questões que, afirma, não deixam desenvolver o que chama de "Califórnia da Europa".

Pela sua parte, diz, tinha terreno para fazer uma centena de apartamentos, e, acrescenta, segue as regras, como de resto os outros empresários, que pagam a empresas de trabalho temporário. Não sabe, contudo, se estas cumprem também a lei, mas do que a si diz respeito continua praticar uma agricultura sustentável dentro do quadro legal.

Por agora, e se tudo correr bem, os terrenos que ladeiam o local dos famosos festivais de música vão ter abacates, mas José Fayo diz que só tem 47 hectares dentro do perímetro de rega e que os restantes estão sujeitos a haver ou não água.

E esse é outro problema. O empresário não entende que se desperdice 30% da água que sai da barragem para o perímetro de rega (devido ao sistema que se criou, nos anos 1960 e 1970) — alega que é preciso aproveitar toda a água, avisa que tudo o que são produtos poluentes têm de ser recolhidos e tratados e não podem ser despejados diretamente nas ribeiras.

E nem percebe porque não há ainda uma proposta concreta do Governo para adaptar o perímetro de rega (há estufas, por exemplo, junto de arribas e o objetivo é haver uma reordenamento, transferindo-as para outro local), proposta com a qual, diz, os empresários até estão de acordo.

"Quem tem 50 hectares não pode construir uma casa mas pode construir estufas. Aqui não querem que se faça nada, ninguém fiscaliza nada. Os agricultores querem fazer as coisas bem, todos, mas há quem não quer resolver, há aqui uma espécie de fantasma que não deixa que isto funcione".

José Fayo confessa que está farto de ouvir mentiras sobre o que se passa para os lados do concelho de Odemira. Mas enfatiza também que concorda com os que lamentam que se continuem a fazer estufas na região. "Mais estufas não, mais árvores sim".

NUNO VEIGA créditos: © 2021 LUSA - Agência de Notícias de Portugal, S.A.

Historiador aponta "contradição insanável" entre parque e rega

O sudoeste alentejano, onde um parque natural foi colocado sobre uma zona de agricultura intensiva, sofre de uma "contradição insanável". Esta é a opinião do historiador António Quaresma, para quem pode ser a área protegida a grande derrotada.

Doutor em História, professor e autor de vários livros e estudos sobre o litoral alentejano, António Quaresma nasceu e vive em Vila Nova de Milfontes, de onde tenta ter um olhar isento sobre o que se passa na região, onde coexiste o Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina (PNSACV) e o Perímetro de Rega do Mira, caracterizado por estufas e agricultura intensiva, aos quais se junta uma cada vez maior pressão turística.

Há, portanto, nas palavras do historiador em entrevista à Agência Lusa, uma contradição insanável, "um caldo" a que se junta ainda a presença muito forte de imigrantes.

E o PNSACV, diz, "está em perda de velocidade", algo que nem é de agora. E dá como exemplo o projeto falhado de agricultura intensiva do empresário francês Thierry Russel (anos 80 e 90), quando o Parque não foi capaz de impedir nada. "E neste momento, pela primeira vez, a existência do Parque é abertamente posta em causa. Nunca tal tinha acontecido".

António Quaresma até esteve ligado à criação da área de paisagem protegida, antecessora do PNSACV, e gostaria que a região fosse só parque natural. Mas admite: "Hoje isso é impensável porque existe uma economia. Neste momento penso que é mais possível deixar de ser parque do que deixar de ser zona de rega".

Porque, justifica, e ainda que as empresas agrícolas se vão sentindo apertadas por regulamentos e sensibilidades locais, há a criação de emprego. "Já se criaram interesses suficientes à volta da agricultura, e muitos deles legítimos, que fazem com que seja muito difícil voltar atrás com o processo".

Continuando a existir as duas realidades, defende, deveria criar-se um desbloqueador de tensões, uma entidade que juntasse todos as partes, uma espécie de ‘task force’.

E, no entanto, nem sempre foram difíceis as coisas. Em sua casa, rodeado de livros, o historiador resume como se chegou à situação que a região vive hoje, começando pela criação, em 1988, da Área de Paisagem Protegida do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina.

Contribuíram para isso os estudos sobre biologia, que davam a conhecer uma zona muito preservada em termos paisagísticos, biológicos e botânicos, contribuiu a vontade do então secretário de Estado do Ambiente Carlos Pimenta, contribuiu o envolvimento da associação LPN (Liga para a Proteção da Natureza), e contribuiu um grupo de ecologistas e ambientalistas locais, António Quaresma incluído. E a autarquia apoiou.

A Área de Paisagem Protegida evoluiu na década de 1990 para Parque Natural. Onde existia havia duas décadas uma zona de agricultura intensiva, o chamado Aproveitamento Hidroagrícola do Mira, composto pela barragem de Santa Clara, que ficou cheia em 1968, e canais de rega que abrangem mais de 40 quilómetros.

Com a criação do parque natural não houve conflitualidade, apesar de existir já alguma agricultura intensiva, diz o historiador. Mas, explica, sobretudo a partir da década 1990, começaram a instalar-se empresas, algumas estrangeiras, começaram a desaparecer ecossistemas valiosos, como os charcos temporários, e começaram também “os equívocos”.

"Quando Thierry Russel esteve aqui comportou-se como se não existisse o Parque Natural. Arrasou linhas de água, arrancou marcos das linhas de água. E fez com conhecimento das autoridades. O Parque viu-se perante uma situação de facto consumado e, se o diretor do Parque criticava, o poder político mandava-o calar. Esse foi o primeiro embate".

Com o crescimento da agricultura, a população local conseguiu empregos mais qualificados. Mas não bastava e começaram a surgir os imigrantes, primeiro do leste da Europa e mais recentemente de países como a Índia ou o Nepal. Apesar de serem comunidades pacíficas, diz António Quaresma que surgiu "uma situação passível de criar problemas".

"A existência de grande quantidade de gente do oriente faz com que exista um ‘stress’ local, que eu chamo de racismo", visível inclusivamente na rede social Facebook, "onde hoje se passa tudo".

E quando se põe em causa a existência de tantos imigrantes "põe-se em causa o modelo que os traz", e nos últimos tempos "criou-se uma situação de confronto", juntando a questão do Parque, o ambiente, a falta de água, fazendo aparecer movimentos como a associação Juntos pelo Sudoeste, "que tem uma posição muito crítica em relação ao atual modelo de crescimento, que não respeita o território, que produz problemas sociais".

E a tudo isto o historiador junta "os desalinhados, sem discurso elaborado e com uma atitude de repulsa em relação aos estrangeiros", e junta ainda o endurecimento do discurso por parte das empresas, a dizerem que a água é para a rega e que o Parque foi criado quando já existia o perímetro de rega.

Há de facto, diz, um problema de falta de água, com a barragem de Santa Clara a meio no fim do Inverno, onde a água já tem de ser bombeada quando o sistema foi construído para funcionar por gravidade (a barragem a uma quota mais elevada e a água a correr por canais e a que sobre é despejada no mar, o que provoca grandes desperdícios).

António Quaresma resume a atual situação no PNSACV como a luta entre duas linhas, os que criticam e os que defendem o atual modelo, envolvidas por uma "grande quantidade de gente que não gosta de imigrantes". Entre os que dizem que o Parque não tinha de ser criado num sítio que já estava previsto para agricultura, e os que põem em causa a existência das estufas.

E depois há o turismo, que nunca se preocupou muito com a agricultura, mas que passou a criticar o excesso de plástico das estufas, com impacto visual forte e com impactos negativos na procura turística.

"Começam a ser nítidos vários interesses e esses interesses começam a ter consciência dessa conflitualidade. Agora, com a pandemia [de covid-19] isso atingiu o auge e neste momento a coisa está de facto acirrada. E quando o primeiro-ministro vem e diz que temos de arranjar condições dignas para imigrantes, que são pessoas que vivem cá e que têm tantos direitos como nós, um discurso que eu acho que é correto, aqui, muita gente não gosta dele, porque isso é aceitar a existência destes imigrantes", descreveu.

A tudo junta-se ainda outro problema, nas palavras do historiadore, que é a grande falta de monitorização do que se passa com os solos, com as águas, a falta de coordenação entre entidades. "Parece que alguém gosta que se mantenha esta ignorância".

E como tudo isto se resolve? António Quaresma não sabe. E nem tenta sequer ser otimista.

Por: Fernando Peixeiro da agência Lusa