Há dias, num camarote do Teatro Nacional de São João, não conseguia parar de desviar os olhos do palco para me pôr a ver as pessoas na plateia. Eu sei que o suposto de um teatro é olhar para o cenário, para os atores, mas o apego de realidade é forte. Havia cadeiras vazias por todo o lado. Cada pessoa trazia uma máscara. Mesmo nos camarotes, boca e nariz tapados. E essa encenação da vida natural tem por todo o lado indícios de um surrealismo distópico.

Outro ato do mundo que agora quer ser normal chegou por estes dias. Por todo o lado, há um evento a condenar: a Festa do Avante!. Não é o único evento de massas a acontecer em Portugal. É certo que mobiliza milhares de pessoas, mas outros acontecimentos há a juntar pessoas em espaços — curtos e largos —, sem direito à mesma euforia mediática: o regresso às aulas, cujas medidas de segurança ainda não foram esclarecidas.

No dia em que — para descanso da República, partidos e particulares — a Direção-Geral da Saúde e o PCP divulgaram as regras de segurança para a Festa do Avante!, a Federação Nacional da Educação, a Confederação Nacional das Associações de Pais e a Associação Nacional de Diretores de Agrupamentos e Escolas Públicas apelaram para que as orientações para o ano letivo 2020/2021 sejam “claras e coerentes”.

Num ano letivo que se perspetiva “atípico” devido à pandemia de covid-19, as três organizações apresentaram hoje no Porto um documento conjunto, que em breve será enviado ao presidente da República, ministério da Educação e grupos parlamentares, onde expõe as suas preocupações e sugestões para o ano letivo 2020/2021. Se, por um lado, apelam à Direção-Geral da Saúde para que as orientações para o funcionamento do próximo ano letivo sejam “rigorosas, claras, coerentes e exigentes”, por forma a salvaguardar a comunidade escolar, por outro, pedem “rapidez” ao ministério da Educação na divulgação dessas mesmas orientações.

“É fundamental criar condições de confiança na sociedade para o novo ano letivo, mas para que isso aconteça é necessário que as informações sejam claras, coerentes e precisas e é isso que tem faltado em muitas circunstâncias até hoje”, afirmou João Dias da Silva, secretário-geral da Federação Nacional da Educação (FNE), durante a apresentação da declaração conjunta. Para o responsável, falta também “investimento” por parte do ministério das Finanças, nomeadamente, na contratação de docentes e pessoal não docente para que as escolas consigam dar uma “resposta educativa adequada” face à pandemia da covid-19.

Também Filinto Lima, presidente da Associação Nacional de Diretores de Agrupamentos e Escolas Públicas (ANDAEP) salientou que, à semelhança da contratação dos 600 profissionais em julho, são necessários “outros tantos” para o próximo ano letivo. “Em julho, deram-nos 600 contratos, acho que agora precisaríamos de outros tantos. Não me quero cingir a este número, mas precisamos de mais funcionários, isso é ponto assente. O ministério, através da Direção-Geral da Educação (DGE), sabe quantos funcionários estão em falta em cada escola. Tanto mais que vamos ter o horário mais alargado das escolas”, referiu Filinto Lima.

Ainda em termos de investimento, as três organizações apelaram para que, conforme o anunciado, o Governo assegure a disponibilização dos recursos digitais às escolas, estudantes, docentes e não docentes, considerando que a digitalização deve ser uma “prioridade”.

Em matéria de orientações, as três organizações salientaram ainda que devem ser anunciadas, com caráter de urgência, as medidas a adotar face à comunidade considerada “grupo de risco”, às atividades do desporto escolar, aulas de educação física, bem como aos alunos e docentes de educação especial.

“Entendemos que a situação dos professores que pertencem a grupos de risco deve ser enquadrada legalmente para que não fiquem com prejuízos ou penalizações”, defendeu João Dias da Silva. Também Filinto Lima lembrou que “amanhã [dia 1 de setembro] as escolas entram em velocidade cruzeiro” e que é necessário esclarecer os docentes sobre estas matérias.

Durante a sessão, Jorge Ascensão, presidente do Conselho Executivo da Confederação Nacional das Associações de Pais (Confap), referiu também que, apesar de mais conscientes do risco do novo coronavírus do que em março, os pais continuam “receosos” e que necessitam de conhecer, atempadamente, as orientações para o ano letivo.

“Ainda temos muito pouca informação, mesmo da parte das escolas. Há informação que normalmente é dada no dia da apresentação no primeiro dia e que seria muito desejável que ela já fosse dada, porque já há um grande adiantamento do plano de trabalho, às famílias através do diretor de turma, às associações de pais através dos seus diretores (…) A comunicação e informação é importante”, salientou.

No caso de deteção de focos de infeção de covid-19, as três organizações apelam ainda para que o ministério da Educação defina, antes do início das aulas e com “clareza e rigor”, os procedimentos a adotar entre os serviços de saúde, as escolas e a família.

A Direção-Geral da Saúde disse já hoje que está a preparar um manual de apoio aos estabelecimentos de ensino para agir perante casos suspeitos ou confirmados de covid-19, de forma a controlar "o pânico” e a “tendência de encerrar toda a escola”. Durante a pandemia de covid-19, a intervenção nas escolas, que reabrem dentro de duas semanas, deve ser “direcionada e focada e não expandida a toda a escola para perturbar o mínimo possível e com segurança o ano letivo”, explicou a diretora-geral da Saúde, Graça Freitas.

Para isso, está a ser desenhado um documento sobre como intervir perante um caso suspeito e facilitar a comunicação entre a escola, os encarregados de educação e os serviços de saúde. “Não haver pânico nem tendência de encerrar toda uma escola” é o foco do documento que, segundo Graça Freitas, será conhecido a 7 de setembro, cerca de uma semana antes do arranque do ano letivo, que está previsto começar entre os dias 14 e 17 de setembro.

Na próxima semana, regressam as reuniões entre especialistas, responsáveis políticos e parceiros sociais no Infarmed sobre a evolução da pandemia de covid-19 e nesse dia já será possível conhecer algumas das orientações.

Também o secretário de Estado da Saúde, António Lacerda Sales, sublinhou a importância do manual que fará a ligação entre as autoridades locais de saúde e os diretores de agrupamentos e que "será muito útil para saber o que deve ser feito em cada situação e que coloca todos os intervenientes em conhecimento, nomeadamente pais e professores”. Questionado sobre o facto de o documento chegar depois da abertura dos estabelecimentos de ensino privado, que começam a funcionar esta semana, António Sales lembrou que existe um conjunto de orientações para o novo ano letivo “que já foram emitidas”.

Depois de neste domingo ter alertado a DGS para a urgência da divulgação das regras para o Avante!, o presidente da República defendeu hoje que a sociedade portuguesa deve ser esclarecida o quanto antes também sobre as regras sanitárias para o próximo ano letivo, que não podem ser consideradas apenas para “meia dúzia de eleitos” perceberem. Sublinhando que a Direção-Geral da Saúde e as direção das escolas “certamente” já terão definido as regras para este ano letivo, cujo início decorre este ano entre 14 e 17 de setembro, Marcelo Rebelo de Sousa defendeu que as mesmas “sejam esclarecidas e explicitadas bem” à comunidade.

O presidente da República reconheceu, no entanto, que a DGS tem uma tarefa “quase ciclópica”, dada a necessidade de definição de regras para tantos setores, embora tenha de cumprir essa missão.

“Aquilo que se está a pedir à DGS é muito ingrato, muito difícil e muito trabalhoso”, frisou, em Faro, antes de ir ao museu municipal, onde descerrou uma placa alusiva à atribuição da categoria de tesouro nacional ao mosaico romano do Deus Oceano.