Mais de um milhão de infetados pelo coronavírus e 78 mil mortos fazem dos Estados Unidos o país mais afetado pela pandemia, à escala global.

No entanto, os números não parecem assustar grande parte dos governadores americanos, uma vez que cerca de metade dos cinquenta estados que compõem o país estão a reabrir a economia — sendo um deles a Flórida, que aliviou as medidas restritivas a 4 de maio.

Mas, como é que o estado que só declarou a ordem de confinamento no dia 1 de abril já está pronto para acolher a normalidade? Vamos por partes.

Estado de emergência com festivais à mistura

Os primeiros casos confirmados na Flórida foram oficializados pelo Governador Ron DeSantis, no dia 1 de março. O governador explicou que a ameaça do vírus permanecia ainda “baixa” e três dias depois teve lugar o Winter Party Festival (de 4 a 10 de março), em Miami Beach — um evento cujos fundos revertem para a comunidade LGBTQ.

Naquela praia, a dançar ao ritmo da música do Dj e envolvidos pelos luzes neon estiveram centenas de pessoas, das mais variadas idades. Não foram precisos muitos dias passarem para que os festivaleiros começassem a acusar sintomas de Covid-19. Ao fim de um mês, 38 confirmaram estar infetados ou sintomáticos e dois morreram. “Se tivéssemos tido a informação que agora está disponível (...) nós teríamos tomado uma decisão diferente”, confessou a organização do festival ao The New York Times.

No dia 6 de março, a cidade de Miami cancelou o The Ultra Music Festival, um evento que atrai milhares de pessoas. Na altura, o Centro de Controlo e Prevenção de Doenças ainda não tinha indicado que os eventos em massa podiam contribuir para a propagação do vírus, por isso, esta medida foi bastante criticada por outras autoridades locais.

No entanto, apenas três dias depois, dia 9 de março, já com duas mortes e quase a chegar aos 20 casos confirmados, o Governador da Flórida declarou estado de emergência e alertou a população idosa e aqueles com condições de saúde mais vulneráveis para não fazerem viagens de cruzeiro ou longos voos e evitarem ajuntamentos. É de relembrar que cerca de 23% da população da Flórida tem mais de 60 anos.

Nos dias que se seguiram, foram vários os eventos cancelados e os espaços que fecharam as suas portas, caso do Torneio de Tenis Miami Open, encerrado no dia 12 de março, ou da Disneyland, que no mesmo dia anunciou que iria fechar todos os seus parques espalhados pelo mundo.

Todavia, o estado de emergência não parece ter sido motivo de alarme para muitas pessoas, dado que até ao dia 15 de março, o último dia em que o parque da Disney de  Orlando (Flórida) esteve aberto, foram muitos aqueles que o foram visitar. E o que aconteceu com o Winter Party Festival voltou a acontecer. Houve quem ficasse infetado e quem acabasse por morrer, caso de Jeffrey Gazarian, de 34 anos, que passado uma semana de ter estado no parque temático, faleceu.

“Isto não é suposto acontecer a ninguém, muito menos a um homem de 34 anos saudável e bem sucedido”, disse Elizabeth Gregg, uma amiga de faculdade de Gazarian. “Se calhar será preciso morrerem mais pessoas como o Jeffrey, para que se perceba que isto [o vírus] pode afetar qualquer pessoa”, acrescentou. E, infelizmente, foi o que acabou por acontecer.

Até este domingo a Flórida contava com 40 mil casos confirmados de infeção e mais de 1700 mortes por covid-19.

A inação de DiSantis e o "enigma" do sucesso

A economia da Flórida depende bastante do setor do turismo, uma indústria no valor de 86 mil milhões de dólares, e março costuma ser um mês rentável, porque é nesta altura que ocorrem as festas das férias da Páscoa e são vários os finalistas que veem o estado do governador Ron DiSantis como o destino ideal para descontrair.

Este ano a tendência foi a mesma e as praias da Flórida encheram-se de jovens em meados de março. Críticas começaram a vir de todos os lados, incluindo do opositor democrata de Trump, Joe Biden.

Em resposta aos acontecimentos, no dia 23 de março, DiSantis explicou que a culpa era de quem escolheu vir para a Flórida passar férias e, como resultado, impôs uma medida de quarentena a quem viesse de Nova Iorque — o estado mais afetado pelo coronavírus nos Estados Unidos —, Nova Jersey e Connecticut.

No mesmo dia, dada a falta de testes e os contínuos pedidos de apoio por parte dos hospitais, o governador pediu ao Presidente Donald Trump que fosse declarado de Estado de Desastre Maior, para assim obter apoios de fundos federais. O pedido foi concedido.

Outra das críticas apontadas ao governador foi a falta de orientação aos responsáveis locais. Cada condado estava a tomar as suas próprias medidas — e a falta de coesão estava a tornar o combate à Covid-19 mais difícil. “Se uma cidade fecha e outra cidade abre, não é consistente. E é por essa razão que não se consegue parar esta pandemia”, assinalou um dos festivaleiros do Winter Party Festival.

Assim, no mesmo dia em que se implementou a quarentena a quem viesse de fora, DiSantis assinou uma ordem de confinamento mais restritiva a quatro condados. Quando questionado sobre porque motivo ainda não tinha sido aplicada uma ordem de confinamento geral, o governador afirmou que não queria implementar “medidas bruscas” em comunidades onde o vírus ainda não se tinha disseminado.

“Quando se ordena às pessoas para elas ficaram em casa, está a consentir-se que centenas de milhares de cidadãos da Flórida percam o seu trabalho”, justificou.

Democratas, autoridades locais e demais cidadãos pediam, todavia, medidas mais agressivas. O encerramento de bares, parques, ginásios,  de algumas praias e de outros negócios não eram suficientes e DiSantis só reconheceu isso no dia 31 de março —  depois de Trump ter dito que se não fossem tomadas medidas drásticas em todos os estados, poder-se-iam perder até 240 mil vidas para a Covid-19. Nesse mesmo dia, a Flórida tinha registado um aumento de mais de 1000 casos, contando com 6.741 pessoas infetadas e 85 óbitos.

A 1 de abril, o governador da Flórida decretou enfim a ordem de confinamento, que entrou em vigor no dia 3. Durante 30 dias, as pessoas só saíram de casa em casos de necessidade, como para ir às compras ou à farmácia.

Na semana em que anunciou os planos de reabertura gradual do Estado, na última semana de abril, DiSantis destacou o sucesso da Florida no combate ao coronavírus e criticou as previsões dos media de que o sistema de saúde do estado iria colapsar com meio milhão de internamentos.

"Toda a gente nos media estava a dizer que a Flórida seria como Nova Iorque [mais de 300 mil casos confirmados e 26 mil mortes] ou Itália e isso não aconteceu. Adotamos medidas à medida [de cada condado e situação], que não só ajudaram a que os números fossem bem inferiores às previsões, como não prejudicaram a capacidade de o nosso estado avançar" depois do surto, disse o governador, que sempre defendeu uma resposta "cirúrgica" à pandemia.

Todavia, o facto é que o DiSantis foi bastante criticado pela sua inação, demorando demasiado tempo entre o primeiro caso confirmado de infeção e a ordem de confinamento geral (cerca de um mês). Enquanto isso, muitos condados e cidades agiram por conta própria.

A título de exemplo, Miami cancelou dois festivais no início de março, além de ter — a par com o condado de Orange e de Miami Beach  — emitido uma ordem de confinamento no domicílio 10 dias antes de DiSantis o fazer para todo o estado. Florida Keys e Key Biscayne restringiram a entrada de visitantes também em março. Coconut Creek, Coral Gables, Delray Beach, Hallandale Beach, Homestead, Key Biscayne, Miami Gardens e Sweetwater emitiram ordens de recolher obrigatório em março. Aventura, Bal Harbour, Boca Raton, Broward County, Cooper City, Coral Gables, Delray Beach, Doral, Fort Lauderdale, Hallandale Beach, Hollywood, Lauderdale-By-The-Sea, Miramar, Oakland Park, Palm Beach County, Parkland, Pembroke Pines, Pompano Beach, Sunny Isles Beach, Weston and Wilton Manors emitiram diretivas a pedir às pessoas que ficassem em casa também em março. Em todos estes casos, as autoridades locais anteciparam-se à ordem de confinamento geral de DiSantis, que entrou em vigor a 3 de abril.

A forma como o surto evoluiu na Flórida surpreendeu de facto os epidemiologistas, já que esteve longe das piores previsões. Especialistas consultados pela CNN dizem que é um "enigma", para já atribuído à cultura do carro, ou seja, poucas pessoas utilizam transportes públicos, à baixa densidade populacional em alguns locais e até à humidade.

Ali Mokdad, investigador do Instituto de Métricas de Saúde da Universidade de Washington, salienta o facto de muitos cidadãos da Florida terem começado a aplicar comportamentos de distanciamento social bem antes do confinamento geral — o que é possível apurar através de dados de mobilidade.

"A população levou isto a sério. Começaram a praticar o distanciamento social, mesmo quando o governador não lhes disse para o fazerem". Da mesma forma, o investigador destacou que as restrições colocadas em prática pelos condados e cidades ainda em março foram críticas para travar a propagação do vírus.

Paula Cannon, professora de microbiologia e imunologia, afirmou que os investigadores estão a estudar o papel da humidade e calor na contenção da propagação do vírus.

"O que expiramos e tossimos — o que sai dos nossos narizes e bocas — fica pesado e molhado e cai ao chão rapidamente. Em ambientes secos, estas gotas secam assim que saem das nossas bocas e então conseguem flutuar por mais tempo no ar", explicou. "É uma hipótese razoável que a humidade, ao reduzir a distância a que as gotas podem viajar, seja um fator que ajuda a diminuir a propagação do vírus", mas ainda "não há informação suficiente" para ter certezas.

Apesar da contenção da propagação alcançada, permanecem os receios relativos a uma segunda onda pandémica na Flórida.

O tempo de confinamento passou e a economia voltou a abrir — mas o cenário de bonança ainda está longe

No dia 29 de abril, o governador republicano DiSantis anunciou que no dia 04 de maio, a Flórida ia implementar uma abordagem de abertura “segura, inteligente e passo a passo”.

Assim, a partir dessa segunda-feira espaços de retalho e restaurantes voltaram a abrir as portas aos seus clientes, mas apenas como uma capacidade máxima de 25%. Os restaurantes têm ainda de ter as mesas a 1,8 metros de distância para manter a segurança. No que diz respeito às escolas, estas vão continuar com as aulas online. Bares, teatros, ginásios, cabeleireiros e barbearias só irão abrir mais tarde. E serão implementados mais locais de testagem para a Covid-19, que tanto podem ser acedidos a pé, como a partir de carro em modo drive-through.

Estas medidas aplicam-se a todo o estado, menos aos condados Miami-Dade, Broward e Palm Beach, que são dos mais afetados pela pandemia e cuja reabertura será mais tarde.

Mas, como é que estão os dados?

Graças ao distanciamento social praticado prontamente, às medidas implementadas antecipadamente pelas autoridades locais antes do confinamento oficial e, potencialmente, às condições atmosféricas, o ritmo de crescimento do número de casos começou a abrandar, como se pode verificar nestes gráficos.

No entanto, logo no primeiro dia de desconfinamento, houve um aumento de 819 casos.

De acordo com os especialistas, os dados não permitem ainda tirar qualquer tipo de conclusões.

“Nós não temos informação suficiente. Claramente há falta de dados. Eu penso que todos reconhecemos a falta de uma testagem abrangente e de medidas uniformes” de reporte de casos e “até de mortes” — que diferem de estado para estado — disse a virologista Paula Canon à CNN.

As questões apresentadas pela virologista sobre a testagem prendem-se com o facto de ainda não se saber ao certo quantas pessoas foram já testadas para a Covid-19, tendo em conta que nos dados apresentados pelas autoridades de saúde se incluem pessoas que já fizeram o teste mais do que uma vez.

No entanto, estes não são os únicos dados que levantam dúvidas. O mesmo acontece com o número de óbitos.

No dia dez de abril, quando já se estava perto de falar em bons resultados, enquanto o Departamento de Saúde da Flórida reportou 419 mortes associadas ao coronavírus, a Comissão de Médicos Legistas da Flórida apresentou 461 óbitos — a razão para a discrepância devia-se ao facto de apenas se estar a contabilizar quem tinha residência na Flórida.

Os Estados Unidos registaram 1.568 mortes causadas pela covid-19 nas últimas 24 horas, elevando para 78.746 o número total de óbitos desde o início da epidemia no país.

As autoridades norte-americanas contabilizaram também mais de 1,3 milhões de casos diagnosticados da covid-19, entre as 20:30 de sábado (01:30 de hoje em Lisboa) e a mesma hora na véspera, de acordo com a Universidade Johns Hopkins, que atualiza os dados em permanência.

Os Estados Unidos são o país mais atingido pela covid-19, quer em número de mortos, como em casos diagnosticados, segundo dados oficiais.

A nível global, segundo um balanço da agência de notícias AFP, a pandemia de covid-19 já provocou mais de 276 mil mortos e infetou mais de 3,9 milhões de pessoas em 195 países e territórios.

Mais de 1,3 milhões de doentes foram considerados curados.

A doença é transmitida por um novo coronavírus detetado no final de dezembro, em Wuhan, uma cidade do centro da China.

Para combater a pandemia, os governos mandaram para casa 4,5 mil milhões de pessoas (mais de metade da população do planeta), encerraram o comércio não essencial e reduziram drasticamente o tráfego aéreo, paralisando setores inteiros da economia mundial.

Face a uma diminuição de novos doentes em cuidados intensivos e de contágios, vários países começaram a desenvolver planos de redução do confinamento e em alguns casos a aliviar diversas medidas — entre os quais Portugal, que vive atualmente a primeira fase do desconfinamento.

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