I miss the old Kanye...
No início do século XX, foi publicado na Rússia um documento intitulado “Os Protocolos dos Sábios de Sião”, onde é descrita uma alegada reunião entre vários líderes judaicos. Nessa reunião, esses mesmos líderes terão traçado um plano com vista à conquista do mundo, que passava por subverter a moral das sociedades não-judaicas, controlar os mercados financeiros e a imprensa e, em última análise, destruir a civilização como a conhecemos. Não é conhecido o seu autor, e foi mais tarde provado que boa parte do texto d'”Os Protocolos” foi plagiado a partir de diversas fontes, o que não impediu a sua rápida disseminação pelo Império Russo, sobretudo a partir da derrota na guerra contra o Japão e da Revolução de 1905: a sociedade procurava um bode expiatório, e o povo judaico poderia cumprir esse papel. Da Rússia, o texto chegou ao Reino Unido, à Alemanha Nazi, aos Estados Unidos, ao Médio Oriente. Onde quer que houvesse gente disposta a acreditar nas mais mirabolantes teorias da conspiração – sobretudo as que envolvem judeus, povo que é alvo de ódio há milénios –, “Os Protocolos” já estavam, ensinados a miúdos e graúdos como coisa factual.
Escusado será dizer que nada do que ali se encontra é verdade, e serve esta pequena introdução para demonstrar que aquilo que Kanye West tem replicado há semanas não é novo, inserindo-se numa longa e infeliz tradição de antissemitismo. Mas como ou porque é que Kanye, ou Ye, como passou a intitular-se, chegou ao ponto de debitar as mesmas tiradas que os grupos neo-nazis que adorariam vê-lo morto devido à cor da sua pele? A resposta, para alguns, poderá estar na sua saúde mental. Teremos que voltar atrás no tempo, até 2016, quando a Ye foi diagnosticada doença bipolar, já depois de um surto psicótico que obrigou ao cancelamento da digressão em torno de “The Life of Pablo”. Durante um concerto em Sacramento, foi ao ponto de afirmar que Jay-Z – seu amigo, colaborador e sócio – estaria a planear enviar gente para o matar. Pouco depois, seria hospitalizado, e a sua paranoia foi atribuída a “desidratação” e “privação de sono”.
Kanye nunca aceitou muito bem esse diagnóstico. Rejeitou-o em 2018, descreveu-o como “um superpoder”, admitiu-o em 2019, voltou a rejeitá-lo agora. Recusou-se, mesmo, a ser medicado, o que terá exacerbado a sua condição. Porém, vários peritos em saúde mental, mesmo não negando explicitamente o estado de saúde do músico, rejeitam a explicação de que o seu comportamento recente se deve à bipolaridade. “Ser bipolar não nos torna racistas, não nos torna antissemitas, não nos faz querer magoar as pessoas”, afirmou o psicólogo Bedford Palmer ao Gizmodo. Como prova disto poderão estar as declarações de Kanye em 2013, quando procurou “elogiar” o povo judaico com recurso a tropos antissemitas antigos: “Os negros não têm as mesmas ligações que os judeus, não temos famílias com essa quantidade de dinheiro”, disse, em entrevista a uma rádio nova-iorquina. Confrontado pela Liga Antidifamação, Ye acrescentaria mais tarde: “Pensava que os estava a elogiar, mas acabei por soar ignorante. Não percebo como é que dizer que alguém tem dinheiro é um insulto”.
Ye sempre se orgulhou de ter dinheiro. Quando a “Forbes” o colocou no seu “clube dos bilionários”, celebrando-o por ter atingido os mil milhões de dólares em valor de mercado, Ye ripostou dizendo que valia, na verdade, mais de 3 mil milhões. Caso tivesse ido avante, a “Saint Pablo Tour” teria sido muito provavelmente uma das digressões mais luxuosas, quiçá rentáveis, da história do hip-hop – um palco flutuante, um jogo de luzes distinto para cada tema, a possibilidade de interagir com o próprio músico. No seu currículo de atividades filantrópicas contam-se doações ao artista James Turrell ou à família de George Floyd. Em maio deste ano, disse a uma mulher, que queria que ele posasse com um maço de notas, que não tocava em dinheiro vivo “há quatro anos”. E como esquecer o verso de 'I Am A God', onde numa conversa (fictícia) com Jesus Cristo o músico diz “estar a descansar, empilhando os [seus] milhões”?
Esse braggadocio comum no hip-hop, e que constituía parte do charme que Ye tinha – uma espécie de José Mourinho do ritmo e das palavras –, é agora visto, e de forma natural, como um defeito. Depois de anos a pensar que poderia fazer tudo o que lhe apetecesse, acreditando que a popularidade da sua obra (tanto no público em geral como na crítica especializada) lhe conferia esse direito, o músico encontra-se agora numa posição que não imaginaria nunca vir a ter, a de perda de credibilidade. A liberdade criativa de outrora foi suplantada pela prisão ideológica em que se decidiu enfiar. Ye, e os acólitos que ainda tem, alguns deles acólitos que ninguém deveria querer ter, bem podem implorar pelo seu direito à liberdade de pensamento. Mas essa liberdade existe sequer, quando o seu discurso é composto por tiradas racistas antiquíssimas e francamente gastas?
A “queda” de Kanye West aos olhos do público não aconteceu apenas agora, é certo. Deixando de lado as muitas controvérsias em que se envolveu antes do surto de 2016 (as críticas a George W. Bush, o feudo com Taylor Swift), é nesse instante que nasce um “novo” Kanye, admirador de Donald Trump, extremamente devoto a Deus e com aspirações de ser algo mais que músico ou designer. Para trás fica o “velho Kanye” de que fala em 'I Love Kanye', tema lançado em 2018 (e citado no início deste artigo), onde troça dos fãs que decidiram colocá-lo de parte assim que entenderam que a sua personalidade não era moda mas sim modo. Em “Jeen-Yuhs”, documentário divulgado este ano pela Netflix, o seu complexo messiânico está bem patente: “Não estarei satisfeito até o mundo estar satisfeito”, diz a dada altura.
Um mês para esquecer
Tais aspirações sofreram um rombo gigante no espaço de apenas um mês. Tudo começou com a sua presença na Semana da Moda de Paris, no início de outubro, onde ao lado da comentadora conservadora Candace Owens envergou uma t-shirt onde se podia ler “As Vidas Brancas Importam”, slogan adotado por movimentos de extrema-direita na ressaca dos protestos pela morte de George Floyd às mãos da polícia norte-americana. As críticas não se fizeram tardar. Tremaine Emory, diretor criativo da Supreme, afirmou no Instagram que Ye é “um narcisista inseguro, desesperadamente à procura de validação”. Gabriella Karefa-Johnson, editora da “Vogue”, descreveu o ato como “irresponsável e perigoso”. Esthero, que colaborou com o músico no seminal “808s & Heartbreak”, anunciou que irá doar os seus royalties ao movimento Black Lives Matter.
Kanye respondeu às críticas através do seu meio predileto (algo que terá aprendido com Trump): as redes sociais. “As vidas brancas importam mesmo”, enfatizou, ao mesmo tempo que saudava Candace Owens. “Foi a única figura pública que afirmou que era errado terem-me impedido de ver a minha filha”. O músico referia-se então a um caso ocorrido em janeiro deste ano, quando alegou não ter sido convidado para a festa de anos de Chicago, sua filha com Kim Kardashian. Em causa estaria o lançamento de 'Eazy', tema onde deixou ameaças ao comediante Pete Davidson, à altura namorado de Kim. Porém, a empresária negou sempre ter ocultado a morada da festa a Kanye West. Parecia apenas mais um episódio do divórcio entre Ye e Kim que, à semelhança do seu diagnóstico, o primeiro nunca aceitou.
Depois do sucedido com Owens, Kanye decidiu dar uma entrevista a outro fervoroso adepto de Trump, o comentador da Fox News Tucker Carlson. Se usar uma t-shirt com a frase “As Vidas Brancas Importam” já era mau, a entrevista provou que o músico ainda poderia fazer ou dizer pior. As suas declarações sobre as críticas à perda de peso da rapper Lizzo, que descreveu como “um genocídio da raça negra”, foram emitidas, mas nem a Fox News teve coragem de manter o que Kanye disse acerca do judaísmo: que os filhos deveriam aprender o que é o Chanucá, já que “com isso viria uma certa engenharia fiscal”; que a organização Planned Parenthood foi criada “para controlar a população judaica”; e, ainda, que “os negros são os verdadeiros judeus”, ideia surgida em finais do século XIX e que também tem sido utilizada para promover o antissemitismo. As frases foram cortadas da entrevista final, mas posteriormente divulgadas pela “Vice”, que obteve o vídeo completo da mesma.
Pelo meio, foi banido do Instagram, após partilhar mensagens trocadas com o também rapper e empresário Diddy, onde o acusava de ter “donos judeus”. No Twitter, foi mais longe: fez vagas ameaças de morte “ao povo judaico”, dizendo que não podia ser antissemita “porque os negros são judeus” e afirmando que “andaram a brincar comigo e a descartar todos os que se opõem aos vossos planos”; acabou igualmente banido dessa rede. Um mini-documentário intitulado “Last Week” foi, durante este período, divulgado no YouTube, com imagens de uma reunião entre Ye e representantes da Adidas, onde o músico acaba a mostrar-lhes pornografia. A marca anunciou, pouco depois, estar a “rever” a sua parceria com Kanye. E, como última estocada na sua reputação, disse em entrevista ao podcast “Drinks Champs” que George Floyd morreu porque “estava drogado” e que “os judeus controlam os negros”.
A queda de um mito
Se todas as polémicas anteriores envolvendo Kanye West acabaram por ser menosprezadas ou até esquecidas, as suas constantes declarações antissemitas levaram os seus parceiros comerciais a agir – alimentando, inadvertidamente, a teoria da conspiração de que “os judeus” controlam de facto “a narrativa”, em fatias da população que não compreendem o conceito de “responsabilidade”. A primeira entidade a cortar relações com Kanye foi o banco JPMorgan Chase, que deu ao músico um prazo para retirar todos os seus bens do mesmo: final de novembro. A família de George Floyd, cuja filha tinha recebido uma bolsa por parte de Kanye para estudar na universidade, irá processá-lo por difamação. O mundo da moda também lhe virou costas, com a Balenciaga, a “Vogue” e a Adidas a darem por terminados quaisquer projetos que o envolvessem.
Tudo somado, a “Forbes” atingiu-o onde supostamente lhe dói mais: no ego, retirando-o do “clube dos bilionários” após o fim da relação com a Adidas. Restava-lhe a música, que também já sofre com as polémicas. Daniel Ek, diretor executivo do Spotify, criticou as atitudes de Kanye, ao mesmo tempo que explicava ser impossível retirar os discos deste da plataforma de streaming a não ser que a sua editora assim o exija. A Apple Music optou por apagar uma playlist com os seus maiores êxitos. Planos para uma eventual digressão foram também colocados de parte. Na rádio, o número de plays das suas canções caiu em 21,1%.
Seria de esperar que tal o fizesse pensar duas vezes, mas não. Em entrevista a Piers Morgan, não se mostrou arrependido das suas declarações, ainda que tenha feito um ténue pedido de desculpas “às famílias das pessoas que nada têm a ver com o [seu] trauma”. A falta de arrependimento e de vontade de se retrair dos comentários que fez também levaram a advogada Camille Vasquez, que ajudou Johnny Depp a vencer o processo que o opôs a Amber Heard, a desistir de o representar – ficou apenas uma semana no cargo. A Creative Artists Agency, que trabalhava com Ye desde 2012, também cortou relações, e duas agências rivais, a WME e a UTA, anunciaram um boicote ao artista. Mesmo a sua ex-mulher teve que se pronunciar, com uma publicação nas redes sociais em que critica o “discurso de ódio”, sem se referir explicitamente a Ye.
Já esta semana, Kanye esteve à conversa com o cientista Lex Friedman, para o podcast deste. Friedman, judeu nascido na antiga União Soviética, revelou ao músico que alguns dos seus familiares foram assassinados no Holocausto. A resposta: “mais de 20 milhões de pessoas morreram por causa de abortos”. A marca de calçado Skechers recebeu uma visita inesperada de Kanye, nos seus escritórios, que foi acompanhado por uma equipa de filmagens; acabou expulso do edifício. O museu Madame Tussauds, em Londres, retirou a sua estátua de cera da exposição. E, por fim, a sua própria escola, a Donda Academy – que tem o nome da sua falecida mãe – fechou portas para o ano letivo 2022/23.
Escreve-se “por fim”, mas este outubro assustador de Kanye – e nem sequer chegámos ainda ao Halloween – tem tudo para continuar. Mesmo depois de ter perdido boa parte do seu império, o músico ainda dá mostras de querer lutar por uma causa desconhecida, exibindo crenças que se desejariam esquecidas. Há mais de um século, “Os Protocolos dos Sábios de Sião” alimentaram o mais abjeto antissemitismo por todos os cantos do mundo; Ye parece querer ser um “farol” semelhante, trazendo velhas antigas teorias da conspiração de novo para a ordem do dia, ao mesmo tempo que, mais que manchar, destrói um legado composto por marcos musicais como 'Jesus Walks', 'Love Lockdown' ou “My Beautiful Dark Twisted Fantasy”, só para enumerar alguns. Questionarmo-nos se a sua imagem sobreviverá a isto seria menosprezar tudo o que tem vindo a dizer; importa é questionar se haverá pessoas de origem judaica a sobreviver, depois de enfrentarem um qualquer fanático inspirado pelas palavras de Kanye West. I miss the old Kanye? Velho ou novo, este é um Kanye que não faz falta nenhuma.
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