O sol deita-se cedo na terra do meu avô. Aqui, à beira de Trás-os-Montes, o dia é uma abreviatura: termina antes dos outros. As águas escorrem pelas veredas. As tempestades da última semana foram duras aqui para esta vila duriense onde o vento revoltou árvores e até o telhado de um centro de dia. Hoje, a meteorologia está calma, mas as ruas estremecem de gente. Há carros por todo o lado, visão rara nas estradas habituadas ao calcar das ovelhas.

Nunca tive “a terra”. Os meus avós tinham. A minha mãe nasceu já em Lisboa, 400 quilómetros longe desse lugar de verões quentes no meio do vale. Mas o Natal era agarrar na terra, aldeia perdida nas covas dum monte, e levá-la para o meio dos subúrbios duma cidade.

Assim é a terra dos meus avós. Era do meu avô, mas a minha avó, que veio de Lamego, falava desta aldeia (onde até pode ser que tenha nascido Portugal) como sendo a terra dela também.

Via-a a sonhar com a terra. Falava dela com nostalgia, mas sem esse sonho do regresso. Porque a vida na terra era dura. Bastavam uns poucos dias de agosto. E nem todos os anos, que nestes últimos faltavam coisas para ver.

Mas eu não tinha a minha terra? Que terra é essa? A Terra? O planeta todo? Esse é tão meu como de qualquer outra pessoa. Queria uma terra minha.

Um dia, saí de Lisboa. E, pelo visto, passei a ter terra. Porque parece que a gente só tem quando deixa de ter; a gente só ganha direito à terra quando dela saímos, como se a terra não fosse nossa enquanto nela andamos, mas apenas se dela formos embora. Ter é não ter.

Todavia, a terra é aquela onde nascemos, ou aquela onde escolhemos viver? Aquela em que queremos estar; com as ruas que vamos aprendendo a conhecer; as lojas e lugares que nos vão ensinando a ser. Até o sotaque, que devagarinho se altera, trocando os nomes das coisas e até a gramática, cujos detalhes mudam.

E as pessoas. Tenho para mim que o meu lugar não é geográfico. Não sou dum território: sou das pessoas. É por isso que talvez nunca tenha percebido que sempre tive terra: a família.

Este é o primeiro natal sem a minha avó. É como se, de repente, fosse uma península desprendida do istmo, uma jangada de pedra que se lançou ao mar, um território imenso que perdeu aquela paisagem certa de ver a avó sentada na cabeceira da mesa a coordenar a produção de doces e pratos e arrumos. A reclamar sempre que não estávamos todos juntos, coesos, todos dentro da mesma sala.

E, neste primeiro sem ela, eis a família (embora não toda) posta à roda da mesa. A terra permanece. Porém, pela primeira vez, veio tudo para a terra. Como se andássemos à procura de restaurar uma qualquer ligação. Fazer do espaço o elemento pela primeira vez em falta.

A lareira enche a sala de fumo. Esta casa era dos meus bisavós. A minha mãe anda numa correria com a minha tia, ali as duas a fazer doces, a preparar o bacalhau, com umas couves verdinhas e tenras que vieram há pouco da terra mais umas batatas.

O Natal há de ser menos dos lugares, das tradições — e mais daquilo que aproxima: do que queremos, de quem gostamos. Independentemente dos laços, das ligações. Se o que liga for um pedaço de solo, ou esse arroz feito num pote de barro negro e velho, com um sabor esquisito a que a minha mãe chama “tradição”, que seja.

Este é um Natal. Mas todos hão de ter o seu. E todos eles são válidos. Porque o Natal há de ser como o homem quiser.

Eu sou o Pedro Soares Botelho e a minha avó ensinou-me a ser assim. Boas festas.