Escolas fechadas, greves, manifestações, marchas e gritos de luta seguidos de reuniões de negociação. E volta ao mesmo. Este tem sido o ritmo da dança entre os professores e o Governo desde o início do ano. Ainda hoje, 25 de fevereiro, a manifestação está marcada para Lisboa: do Palácio de Justiça à Assembleia da República, passando pela Residência Oficial do Primeiro Ministro. A batuta estará mais uma vez na mão do mais recente maestro André Pestana, do S.T.O.P.
A repetir-se o que tem acontecido, os professores sairão em força à rua. As greves, que têm paralisado a educação, e o país, têm tido adesões superiores a 90%, segundo os sindicatos. É verdade que os professores estão alinhados na luta por melhores condições de trabalho, e pela Escola Pública, mas nem todos saem à rua. Os pais até podem estar solidários com a luta dos docentes, mas temem pelo futuro dos filhos e começam a recorrer aos privados. Há um lado da greve mais esquecido e que se esconde nas salas dos professores.
Ana, professora no Oeste, ainda não fez greve este ano, embora concorde com a luta dos colegas e os motivos que os levam às paralisações e a saírem para a rua. Mas, por motivos financeiros, este ano não se pode juntar à luta. A professora de educação especial acredita que não fazer greve por não poder suportá-la financeiramente é um reflexo da própria condição dos professores. Ao SAPO24, pede para não ser identificada. Embora as colegas mais próximas saibam que não faz greve, prefere “não ferir suscetibilidades. Não há necessidade me expor”. O SAPO24 deparou-se com esta realidade de professores não grevistas que, por variados motivos, não se querem expor. Seja, partilham, para se protegerem dos próprios colegas ou das direções das escolas.
Ana, é professora há 11 anos e tem horário completo, já participou em greves antes destas, mas começa a acreditar que a ausência de resultados não vale a pena o sacrifício. “o que na altura me deixou desiludida foi que o que reivindicávamos não foi levado a cabo, um bocadinho à semelhança do que acontece agora. Também as negociações vão ocorrendo, mas não se vê grande desenvolvimento por parte do Ministério da Educação e, portanto, também me deixa assim um bocadinho... não sei se descrente... mas um bocadinho sem acreditar que as greves consigam surtir o efeito desejado”. Quando questionada acerca de outras formas de luta mais eficazes, e nas quais participasse, reflete e diz que nunca se debruçou sobre o assunto para arranjar alternativas.
Mas depressa se alonga no tema, reflete que será necessário é ouvir-se mais os investigadores que estudam estes temas “seja a nível de valorização de carreira, formação inicial e mesmo de formação contínua. E, a partir daí, tentar arranjar estratégias que funcionem no contexto português.” Partilha com o SAPO24 que se os professores estão descontentes com o que agora acontece nos concursos, as soluções apresentadas “são ainda mais penalizadoras para quem já lutou tanto ao longo do tempo.”
Admite que na escola onde trabalha os encarregados de educação continuam do lado dos professores, mas que “é uma situação particular que não dá para perceber se essa realidade se pode alargar a todo o país. A verdade é que a nossa escola fechou apenas um dia. E foi pela greve dos funcionários públicos, e não pela dos professores. De resto algumas colegas fazem greve, mas como não é a escola toda, não dá para perceber qual é o feedback dos pais.”
Rodrigo Queiroz e Melo, Diretor Executivo da Associação de Estabelecimentos de Ensino Particular e Cooperativo (AEEP), ainda não consegue aferir estatisticamente o reflexo da greve do público no privado. E se os encarregados de educação, temerosos, estão a mobilizar os alunos para o privado. Mas a certeza é que a atividade no privado tem aumentado. As greves podem ter ajudado a consolidar um movimento que começou na pandemia.
“O que nós podemos dizer, baseado no que é o nosso trabalho diário com os colégios e com o que nos têm transmitido, é que nesta fase de pré-inscrições tem havido um aumento. Há colégios onde acontece sempre na primeira semana de pré-inscrição atingirem a capacidade. Novo é que isto tem vindo a acontecer mais, e em mais estabelecimentos. Se é diretamente das greves não podemos, nem sabemos, dizer. Até porque isto é um caminho que vem crescendo já desde o pós pandemia. Agora, não custa perceber que as greves não ajudam às opções das famílias no próximo ano. Juntando a interrupção letiva da pandemia e da greve, o incentivo de procurar uma experiência escolar mais serena está lá.” Efetivamente em 2019, segundo dados da Pordata 19,5% dos alunos estavam matriculados no privado, em 2021, depois da pandemia, o número aumentou para 20,4%. O porta-voz da AEEP lembra que para já em relação a 2023 são apenas conjeturas e que, nesta altura, ainda não há dados do Ministério da Educação para que se possam tirar conclusões mais avisadas.
“Mas nós olhamos para os números oficiais dos anos anteriores e, de facto, o que vemos é que cada vez uma maior percentagem dos alunos em idade escolar estão no particular e cooperativo. E é algo que nos entristece, tantos alunos… Neste momento estamos próximos dos 20% e, de facto, no que diz respeito à coesão social é um fenómeno preocupante. Porque no fundo estamos a falar de uma percentagem da população que ou tem mais possibilidades económicas ou faz um maior investimento em educação - mesmo com dificuldade. E, claro que, do ponto de vista social isto não é uma coisa boa e o Estado devia pensar seriamente no apoio às famílias, especialmente as mais desfavorecidas. Não se trata de querer ganhar mercado, porque continuamos a ganhar sem os apoios, é uma questão de equilibrar os setores escolares e isso é bom para o país.”
“Mas nós olhamos para os números oficiais dos anos anteriores e, de facto, o que vemos é que cada vez uma maior percentagem dos alunos em idade escolar estão no particular e cooperativo. (...) E, claro que, do ponto de vista social isto não é uma coisa boa e o Estado devia pensar seriamente no apoio às famílias, especialmente as mais desfavorecidas.”Rodrigo Queiroz e Melo
O diretor executivo alerta para o facto de não haver resposta em todos os colégios e, para o facto de esses colégios também não terem vontade de “crescer ilimitadamente. É muito mais difícil aumentar a quantidade e manter o trabalho pedagógico.” Explica que a solução tem sido aumentar turmas ou abrir mais. “Capacidade de resposta há, não sabemos se a procura continuar a aumentar sim.” Importa lembrar que oferta dos estabelecimentos de ensino privado não só é menor, 2654 estabelecimentos privados para 5587 estabelecimentos públicos. Como também “a própria oferta do particular e cooperativo está no litoral e nas grandes cidades onde há capacidade das famílias”.
Questionado se a solução seria voltar aos contratos de associação, admite que essa era uma solução que criava “maior equidade social”, mas que hoje faria sentido “aprofundar esse mecanismo de outra forma”. Garante que essa é uma solução que ficou no passado, “essa opção ficou de tal forma marcada que mesmo do lado dos operadores privados ninguém confia. Nenhum operador está disponível para voltar a esses tempos porque não confia no Estado. E com razão.” Garante que o fim desse sistema em nada prejudicou os privados, pelo contrário, mas que a “atual prejudica a coesão social”, que tem um impacto a longo prazo que não está a ser tido em atenção. “Mas tem que haver de alguma forma algum apoio às famílias para que possa haver maior diversificação.”
É exatamente este apoio à família que fez com que Ana não tenha querido sair do ensino público. “Eu tentei o privado no início de carreira porque não tinha colocação no público, mas de facto eu acho que todas as crianças devem ter acesso a uma educação. E a uma boa educação, e acho que não deverá ser, ou pelo menos não deveria ser, necessário passar para o privado para isso acontecer. Portanto, eu, como trabalho com a população mais fragilizada, gosto daquilo que faço. E, por exemplo, os pais dos meus alunos nunca teriam possibilidades de os colocar em escolas privadas. Portanto os miúdos têm na mesma que ter acesso aos meios que necessitam, independentemente de irem para o privado. Daí eu ter optado pelo público”, partilha a docente do ensino especial.
“Todas as crianças devem ter acesso a uma educação. E a uma boa educação, e acho que não deverá ser, ou pelo menos não deveria ser, necessário passar para o privado para isso acontecer. (...) Os pais dos meus alunos nunca teriam possibilidades de os colocar em escolas privadas.”Ana, professora do ensino especial
Maria, professora de Filosofia e Psicologia numa escola secundária de Viseu também nunca se candidatou ao ensino privado. Ao longo dos 34 anos de ensino diz ter participado “em várias greves, dias completos ou por tempos letivos.” Agora já não se junta aos colegas “por ter deixado de acreditar nos dirigentes sindicais. No passado houve situações de uma grande adesão à greve e quando chegou o momento das negociações, esses representantes dos sindicatos lá presentes assinaram acordos com o Governo em prejuízo dos docentes e contrariamente ao reivindicado por eles.”
A descrença de Maria não se esgota na relação com os sindicatos, também não acredita na boa vontade do Governo, encabeçado na educação pelo ministro João Costa. “Não faço, porque duvido da sua [das greves] eficácia, visto termos um Governo maioritário, arrogante, cego e surdo, insensível às pessoas e às famílias, com uma visão economicista - vê a educação como um negócio, e a escola como uma empresa para dar lucro.”
Também durante a conversa com o SAPO24, Ana mostrou-se desiludida com a forma como o Ministério da Educação tem lidado com a luta dos professores. Fala numa desvalorização da carreira docente, um problema que “tem sido contornado em vez de resolvido a fundo. Eu não digo que fossem resolvidas todas as reivindicações, até porque financeiramente tenho noção que seria muito complicado para o Estado, mas há muitas que podiam ser resolvidas já. É o resultado de um desinvestimento de muitos anos.”.
Isabel Le Gué foi a única professora que aceitou ser identificada, docente de inglês com quase 40 anos de serviço, chegou a ser diretora da escola onde ainda leciona, a Secundária Rainha Dona Amélia, em Lisboa. Também não fez greve este ano, mas recusa ver a situação como uma oposição de trincheiras. “Não tenho absolutamente nada contra greve. Possivelmente tenho muito mais em comum com os colegas que têm feito greve do que o contrário”. Assinala que os motivos de cada um fazer greve, ou não, são “mais casuísticos que de militância”. Até porque por um lado acredita que a maioria dos agora grevistas não é sindicalizado. E porque as realidades dos professores são tão diferentes, que também o são as suas motivações a cada momento. Por isso, o desconforto com a carreira e a vontade de manifestar descontentamento têm várias formas.
No passado chegou a fazer greve, mesmo no seu tempo de direção. Agora também admite haver algum cansaço. Partilha como lhe custou que após as preenchidas manifestações do tempo da Ministra Maria de Lurdes Rodrigues, que "mobilizaram tanta gente da esfera pública, pessoas de vários quadrantes políticos e professores que jamais teriam feito greve", a luta tenha “morrido na praia. Uniu quase todos e depois houve ali um acordo que quase nenhum de nós conseguiu entender e os problemas continuaram.” Mas lembra que a socialista e o Ministro Nuno Crato podem ter sido os mais polémicos, mas não são responsáveis isolados pelo estado da educação.
“Chegámos a um ponto quase de não retorno nas escolas. E isto não é graças aos professores, porque todos os professores afetam gerações de alunos e, consequentemente, afetam o país. Chegámos a este nível de desmotivação que é financeiro, mas não é só financeiro, o financeiro é a ponta do icergberg. Há uma crescente desconsideração que dura há anos, começou há mais de uma década, mas paulatinamente todos os anos e todos os ministros, uns porque deram mais nas vistas, outros por omissão, são culpados”
“Há uma crescente desconsideração que dura há anos, começou há mais de uma década, mas paulatinamente todos os anos e todos os ministros, uns porque deram mais nas vistas, outros por omissão, são culpados”Isabel Le Gué, professora
Tanto Ana como Isabel reconhecem ao S.T.O.P, e à sua abordagem diferente, e à união aos sindicatos mais tradicionais a capacidade de ter feito parar o país. E de trazer o problema dos professores à discussão na sociedade civil. Ambas lembram que com o salário dos professores seria impossível manter estas greves na ordem do dia tanto tempo, e por isso ter juntado mais funcionários e fazer greves por distrito terá sido engenhoso. Já Maria elabora outra estratégia que acredita ser vencedora: “A realização de manifestações, a greve de zelo, (presencial nas escolas) ou a greve em períodos de avaliação dos alunos (nos finais de cada período ou aos exames nacionais), isso teria muito mais impacto. Neste caso, perdemos a oportunidade de a fazer durante as avaliações na interrupção do Natal. Penso que o governo embolsa milhares de euros com a greve, mas a falta dos professores a cumprir o seu serviço em nada mudará os seus propósitos e o que se verifica é o contínuo desrespeito pelos direitos dos professores.”
As três professoras têm expectativas diferentes para as negociações entre sindicatos e Governo. Ana faz muita questão que a voz dos professores seja ouvida nos concursos e nas zonas pedagógicas, alerta para o facto de a nova proposta poder fazer com que “os que já estavam perto de casa, ao fim de tantos anos, tenham que fazer cento e tal quilómetros para cada lado, por exemplo. E depois há a família constituída e depois vai tudo atrás e, no fundo, essa questão preocupa me bastante.” Lembra que outra preocupação é a do tempo de serviço. Mas acredita não haver dinheiro para se chegar a acordo.
Maria é perentória nas exigências: “Concordo totalmente com as reivindicações dos professores; a exigência da reposição integral do tempo de serviço; Os concursos dos docentes obedecerem a uma lista única a nível nacional; a alteração da atual lei que regula os concursos dos professores por condições específicas (mobilidade por doença); isto é o que é justo e devido aos professores.”
Já Isabel, reconhece o seu privilégio, conseguiu atingir o último escalão da carreira docente. Lembra que tem que haver confiança nos profissionais que estão na escola e tem pena que profissionais novos e motivados tenham sigo obrigados a abandonar a carreira docente. No que concerne às negociações, explica que se sentiria apaziguada se as cedências fossem de parte a parte, e não apenas dos professores. “Os professores não estão a fazer exigências absurdas. Estão a falar de facto problemas reais que têm que ser resolvidos, tendo como beneficiários finais não só os professores, como também os alunos.” Para a professora de Lisboa “tem que haver alguma justiça relativa na carreira”, pede incentivos a que novos jovens universitários vejam “a carreira docente como uma carreira aliciante, motivadora e estimulante. Porque o é. Na sua génese é, mas que tem que ser acompanhada de algumas condições de vida, que neste momento estão muito ausentes.”
Enumera com alguma mágoa “o afastamento da família, a despesa com outras casas. Situações indignas. Há limites de dignidade humana que foram ultrapassados sucessivamente. foram pisados e a verdade é que os nossos Governos pouco respeito têm por nós. Têm jogado com o amor à camisola que caracteriza a maioria dos professores, Ou caracterizava, porque isto não é eterno. É tempo de dizer basta: alguma equidade na carreira e incentivo aos jovens, é o meu resumo.”
Tanto Isabel como Ana trabalharam no privado no início de carreira, mas foi o sistema público que escolheram. Rodrigo Queiroz e Melo confirma que é mais comum que a migração dos professores seja do privado para o público, do que o oposto. Questionado pelo SAPO24 se tinha havido alguma mudança fruto das greves, diz neste momento ainda não serem fases de contratação típicas no privado, nem haver ainda concursos no público.
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