A presença de Olena Zelenska em Lisboa, para a abertura da Web Summit, foi revelada pouco antes do arranque da cerimónia de abertura. Subiu ao palco depois das 20h00 para mostrar que "as distopias que lemos nos romances estão mais próximas do que parece".
"Tenho de confessar, quando se trata de alta tecnologia, eu sou apenas uma utilizadora", começou por dizer mas, lembrou, essa experiência de utilizador pode variar muito de pessoa para pessoa.
"Ouvimos dizer que a inovação tecnológica move o mundo, mas penso que é mais do que isso, vocês têm o poder de determinar a direção em que este mundo se move", disse a primeira-dama ucraniana. Depois, à boleia das distopias que se tornam realidade, falou sobre o "terror russo" na Ucrânia, invadida a 24 de fevereiro. "A Rússia põe a tecnologia ao serviço do terror e o que veem hoje é o resultado do uso dessa tecnologia".
Em seguida, Olena Zelenska partilhou as imagens de um míssil a atingir Kiev, cuja tecnologia "é bastante simples, não o suficiente para salvar pessoas, mas para matar pessoas". "É suficiente porque aqueles que detêm a tecnologia ajudam ao terror", disse.
Depois, mostrou a fotografia de um casal, um trabalhador no setor das tecnologias e a esposa, grávida de 6 meses, ambos mortos num ataque. E acrescentou: "quando ouvem histórias como esta na Ucrânia devem estar cientes de que não são casos isolados. Na maior parte das vezes, a Rússia bombardeia civis, as nossas casas, ruas e infraestruturas civis".
E trabalhadores no setor de tecnologia na Rússia são hoje colaborantes nesta guerra, acrescentou. Antes trabalhavam no setor privado, hoje parte do esforço de guerra contra a Ucrânia, contou. "Ao mesmo tempo, outros podem ajudar-nos a lutar contra eles e a parar este terror". Assim, para os que estão na Web Summit, Olena deixou uma mensagem: "é isto que vocês podem fazer, podem ajudar-nos a impedir que a lista de vítimas deste terrorismo continue a aumentar".
Seguiram-se as fotografias de outras vítimas de ataques russos a ilustrar o discurso de Olena. "Não conhecia estas pessoas, mas conheço pessoas que sim. É-me muito próximo". "A tecnologia e as redes sociais aproximaram as pessoas, mas imaginem que, subitamente, uma conta deixa de ser atualizada, a pessoa já não publica mensagens e depois vocês veem as imagens a preto e branco, e percebem que o impensável aconteceu. Durante estes meses de guerra, milhares de contas ucranianas nas redes sociais nunca mais vão ser atualizadas", descreveu Olena. "Essas pessoas desapareceram".
"Agora os terroristas russos encontraram um novo alvo para os seus ataques, as nossas infraestruturas energéticas. Estão a atacar as nossas fábricas de energia, há apagões por todo o país", relatou, mostrando um comparativo entre aquilo que Kiev costumava parecer à noite e o que hoje existe: uma cidade às escuras ao final da tarde.
"Como resultado destes ataques, todos os dias ficamos sem eletricidade, comunicações e internet durante horas. Vocês conseguem compreender como pode ser difícil para uma pessoa moderna, sobretudo se trabalharem remotamente ou online. E sabem o que mais é desafiante? Levares as tuas crianças para abrigos em vez de as levares para a escola", continuou.
"E quando as crianças vão à escola temos de lhes dar comida e água, porque não sabemos por quanto tempo podem ter de ficar no abrigo. Agora não investimos em alta tecnologia nas escolas, porque precisamos de comprar geradores", contou. "E eu ainda luto para entender esta realidade de ver crianças em abrigos contra bombas", disse, mostrando depois um vídeo de dezenas de crianças a cantar a música vencedora da Eurovisão deste ano num desses locais. "Como disse um pequeno rapaz, as pessoas deviam estar a voar para Marte, não a correr para as suas caves", citou a primeira-dama ucraniana.
"Agora nós e as nossas crianças somos obrigados a acender fósforos e velas em todo o país quando o sol se põe. Parece uma viagem ao passado, uma viagem que não pedimos. Aprendemos a escolher a mais poderosa bateria e não o mais bonito candeeiro. Temos de ser conscientes sobre o nosso consumo de energia para que seja suficiente para todos", relatou.
Antes de terminar, Olena Zelenska deixou um apelo.
"Sobreviver numa zona de guerra e perante as condições que temos hoje na Ucrânia não é possível sem consequências. Fizemos um estudo e descobrimos que mais de dois terços dos ucranianos agora sofrem de ansiedade. Quase metade das nossas famílias foram separadas (...), o país e as suas pessoas estão em modo de crise. Nestes dias, muitos dos meus projetos estão focados em saúde mental, mas poucos projetos estão preparados para apoiar a saúde mental em contextos de constante terror, então tivemos de desenvolver programas de apoio à saúde mental do zero"
"Queremos garantir que todos os médicos, polícias, bombeiros ou profissionais de call-center, qualquer pessoa que lide com pessoas, está equipada para o trauma psicológico. Queremos que apps de autoajuda estejam disponíveis em todos os smartphones da Ucrânia. Queremos que a tecnologia seja usada para salvar e não para ferir pessoas", continuou.
Depois, a primeira-dama ucraniana deixou exemplos de casos de pessoas atingidas por ataques russos que tiveram de recorrer a tecnologia — como próteses — e reiterou o compromisso do país, mesmo em guerra, em garantir que "todas as vítimas do terror russo recebem o melhor tratamento possível". Da mesma maneira, firmou o compromisso de garantir o acesso à educação para todas as crianças, apesar de as escolas estarem a ser bombardeadas, para que elas "possam sonhar com o futuro".
E reiterou: "esta é uma era em que qualquer pessoa pode ajudar. É muito fácil encontrar projetos que apoiem a nossa luta pela liberdade, a nossa defesa contra o terror e apoiem as nossas pessoas. E o que vos peço é que encontrem estes projetos. (...) Ajudar a Ucrânia agora significa ajudar o mundo a ser um lugar melhor".
Olena Zelenska falou depois sobre a sua fundação, focada sobretudo nas pessoas, e cuja prioridade são escolas e hospitais. "Ajudar pessoas a voltar à vida que conheciam, onde têm um lugar para viver, comida para comer e roupa quente para vestir", enumerou, lembrando as muitas pessoas que, pelos mais diversos motivos, recusaram-se a abandonar as suas casas durante a guerra e que hoje precisam desta ajuda, com urgência.
"Acredito que a tecnologia deve ser usada para criar, salvar e ajudar pessoas, não para destruir. Acredito que essa tecnologia é o futuro. Antes disse-vos que vocês são a força que move o mundo, vocês têm o potencial e a tecnologia que pode ajudar e não destruir. Estou certa de que com a ajuda à Ucrânia vocês podem mover o mundo na direção certa, e convido-os a fazê-lo. Vamos fazê-lo juntos", concluiu Olena Zelenska, tendo sido aplaudida de pé em Lisboa.
Recorde-se que a Ucrânia foi invadida pela Rússia a 24 de fevereiro deste ano, num conflito que já provocou a fuga de mais de 13 milhões de pessoas – mais de seis milhões de deslocados internos e mais de 7,7 milhões para países europeus -, de acordo com os mais recentes dados da ONU. Trata-se já da pior crise de refugiados na Europa desde a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). A ONU dá como confirmados desde o início da guerra 6.430 civis mortos e 9.865 feridos, sublinhando, todavia, que os números podem estar muito aquém dos reais.
A sétima edição da Web Summit arrancou hoje em Lisboa, contando com mais de 70 mil participantes, 2.630 ‘startups’ e empresas, 1.120 investidores e 1.040 oradores.
Além da convidada "surpresa" Olena Zelenska, primeira-dama da Ucrânia, a sessão de abertura da Web Summit contou ainda com a presença do ministro da Economia António Costa Silva, do presidente da Câmara de Lisboa, Carlos Moedas, de Lisa Jackson, VP of Environmental Initiatives da Apple, Changpeng Zhao, Co-founder & CEO da Binance, Katie Prescott, Technology Business Editor no The Times e Misan Harriman, Chair / Founder at Southbank Centre / Culture3.
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