A Catalunha voltou a sair às ruas. Desde segunda-feira-feira, dia em que o rapper Pablo Hasél foi detido pelas autoridades após se ter barricado na Universidade de Lérida, que Barcelona tem sido o epicentro de uma onda de protestos, com milhares de pessoas a pedir a sua libertação. 

Em causa está, grosso modo, a defesa da liberdade de expressão, mas poder-se-á fazer uma leitura mais abrangente: este é apenas mais um capítulo de uma luta que só terminará, para muitos, com a eliminação, na Catalunha, de todos os vestígios do poder central espanhol e com a independência da região. Se as ruas de Barcelona se enchem não é só porque os seus residentes clamam pela liberdade de dizerem o que bem entenderem, mas sobretudo porque Hasél é um deles – alguém que escreve, no Twitter, palavras de ordem como «apoiar a independência significa apoiar o fim do regime fascista [espanhol]». 

Mas não é tudo. Estes protestos são, também, o culminar de uma onda de indignação gerada pela promulgação, em 2015, pela mão do então governo (liderado pelo Partido Popular, de Mariano Rajoy), da Lei de Segurança Pública espanhola, que já levou diversos artistas e personalidades aos tribunais por violações da mesma. Apelidada de “Lei Mordaça”, e criticada por várias organizações de defesa de direitos humanos, a lei restringe, por exemplo, aquilo que a um cidadão espanhol é permitido fazer durante manifestações — como realizá-las junto ao Congresso, ao Senado e aos parlamentos autonómicos ou captar imagens das autoridades.

Mas as supracitadas invetivas pró-independência não foram a única coisa que Hasél escreveu, no Twitter. A seu lado estavam frases como «os polícias matam quinze emigrantes e são santos, o povo defende-se da sua brutalidade e é terrorista», «chamam ditadura a Cuba e escondem os negócios mafiosos com a Arábia Saudita» ou «apelidam os graffiters de criminosos e a monarquia não», e vários “mimos” dirigidos à família real espanhola, como «parasitas», «ladrões» ou «mafiosos de merda». Para o Estado espanhol, tais «calúnias» e «difamações» não poderiam passar impunes e, em 2014, Hasél foi condenado a dois anos de prisão (pena que posteriormente foi reduzida para nove meses) por «insultos à coroa» e «apologia do terrorismo». 

créditos: J. Martin / AFP

Na base desta última acusação estão canções, de sua autoria, nas quais elogia grupos considerados terroristas como a ETA, o Grupo Baader-Meinhof e sobretudo o GRAPO, ou Grupos de Resistencia Antifascista Primeiro de Octubre, organização clandestina, de cariz marxista-leninista, ativa nos anos 70 e 90 e que procurava estabelecer, pela força das armas, uma república socialista no país vizinho. As autoridades deram-lhe um prazo para se entregar, findo no passado dia 15 de fevereiro. Hasél manteve-se firme: «Terão que me raptar. Seria uma humilhação indigna entregar-me por causa de uma sentença tão injusta». Na manhã seguinte, os Mossos d'Esquadra – a polícia catalã – entrou na Universidade de Lérida e levou o rapper para a prisão.

Ritmo, Amor e Palavras de ordem

No meio underground do hip-hop espanhol, Pablo é Hasél, apelido retirado a uma compilação de contos árabes onde uma das personagens era «um guerrilheiro que executava uma monarquia». «Não me recordo do nome completo, mas parte dele era Hasél», explicou, em 2018, numa entrevista ao jornal catalão “El Periodico”. Para a sua família, Pablo é Rivadulla Duró, nascido em Lérida há 32 anos. É filho de Ignacio Rivadulla, dono de uma empresa de desratização e controlo de pragas e antigo presidente do Unió Esportiva Lleida, clube de futebol extinto em 2011. 

O primeiro contacto com a música e com a rima teve lugar ainda no seio caseiro, através das vozes e das palavras de artistas como Joaquín Sabina, Carlos Varela ou Ismael Serrano, cujos discos enfeitavam as prateleiras dos pais. O hip-hop chegou-lhe aos ouvidos ainda na infância. «Tinha dez anos quando vi um filme que envolvia um gangue, que ouvia uma música muito agressiva dentro de um carro. Era como se cuspissem palavras», recordou. «No dia seguinte fui a uma loja de discos e comprei um com uma capa que tinha uma estética semelhante à do filme. Era o “Straight Outta Compton”», dos N.W.A., álbum pioneiro dentro da cena hip-hop e que ajudou a esculpir e a promover a sonoridade gangsta rap – ou o som das ruas, com toda a sua realidade violenta.

A consciência política surgiria mais tarde, pela mão romanceada de figuras como Che Guevara, ou eventos como a revolução cubana. E, também, por aquilo que os seus próprios olhos viam. «Desde pequeno que o facto de haver pessoas a dormir na rua me impressionava. E isso levava-me a fazer perguntas», explicou. O marxismo deu a Hasél «uma resposta sobre o porquê de uns poucos acumularem tanto e uma maioria ter muito pouco ou estar na miséria». Aliada à música, e à poesia que igualmente ama – para lá dos discos, editou vários livros de poesia –, essa consciência não poderia senão desaguar no mesmo género musical que viu nascer projetos militantes como os Public Enemy. Para Pablo Hasél como para tantos outros criados na pobreza das cidades e dos subúrbios, o rap «é uma forma de sobrevivência».

Capítulo primeiro dessa aventura, “Esto No Es El Paraiso” saiu em 2005, a rima ainda não tão feérica mas o boom bap da costa leste norte-americana dos anos 90 a dar ânimo a canções como 'Después De Nada' ou 'No Pido Clemencia'. Alguns anos teriam que passar para que Pablo Hasél passasse a ser encarado como persona non grata pelo estado espanhol, mas isso não significa que os primeiros anos do rapper tenham sido pacíficos. Em 2009, durante um concerto em Lérida, cantou uma canção bastante crítica do ayuntamiento – e o técnico de som presente cortou-lhe o microfone. Por volta dessa altura, já era um alvo a abater pelos neonazis. A Guardia Civil chegou a impedir certas salas de espectáculos de o acolher. Vasculharam os seus diários, os seus cadernos, onde registava as letras das suas canções e dos seus poemas. «Só por ser quem sou», lamentou ao “El Periodico”.

A violência tem um crescendo

Num país onde as memórias daquilo que foi o fascismo estão ainda bem presentes, Hasél teve o seu primeiro grande choque com as autoridades espanholas em 2011, aquando do lançamento do tema 'Democracia Su Puta Madre', canção onde exalta Manuel Pérez Martínez – conhecido como “Camarada Arenas” –, antigo membro do GRAPO. Foi detido pela polícia, que lhe apreendeu livros e discos rígidos, e libertado na manhã seguinte, já depois de as redes sociais se terem enchido de mensagens de apoio ao rapper. As maquetes e discos lançados contavam já com referências a grupos e personalidades de extrema-esquerda: “El Che Disparaba” e “Un Café com Gudrun Ensslin” sairam no mesmo ano da sua primeira detenção.

À condenação de 2014 juntou-se um outro incidente, ocorrido em abril desse mesmo ano, no Dia de São Jorge, patrono da Catalunha: na companhia de outras quinze pessoas, Hasél atacou uma banca da associação cultural Lleida Identitària, ligada ao partido de extrema-direita Plataforma per Catalunya. Foi novamente detido, «enquanto comia um kebab», brincou. Em 2016, mais problemas com a justiça, desta feita devido a um incidente ocorrido com um jornalista da TV3, o qual insultou e ameaçou. Resultado: seis meses de prisão e uma indemnização a pagar, no valor de mais de 12 mil euros. «Uma farsa», queixou-se nas redes sociais.

À ideia de que se trata de uma personagem violenta, Hasél reage de forma assaz filosófica. «O que é a violência?», questionou, no “El Periodico”. «Apoio a autodefesa, e todos os métodos de luta contra um estado que não tem pejo de usar a violência, e não apenas sob a forma de brutalidade policial. Que haja pessoas a morrer em lista de espera por não terem acesso à saúde é violência. Que haja famílias sem dinheiro para comer é violência. A luta contra isso chama-se autodefesa».

créditos: Josep LAGO / AFP

O conceito de estado parece, então, surgir na retórica de Hasél como o responsável máximo da pobreza que critica; a “violência” é, para si, um método de luta ou de propaganda tão válido como qualquer outro. Um dos seus parceiros musicais, o também rapper Valtònyc, que mantém a mesma posição independentista, afirmou num vídeo recuperado pela Antena 3 espanhola que «a violência é a única forma de se obter mudanças», sob anuência de Hasél: «Se fazemos a revolução pelas armas, não é essa uma via democrática? Sim, porque é a via da classe operária». Acusado dos mesmos crimes que Pablo Hasél, Valtònyc fugiu para a Bélgica em maio de 2018, e ainda por lá reside apesar das tentativas do estado espanhol de o ver extraditado. Na visão de ambos, nem o Podemos, partido da esquerda parlamentar que hoje em dia forma governo com o PSOE, escapa. «São a esquerda do fascismo», segundo Valtònyc.

Se lhe tocam, dispara

Quer Hasél goste, quer não, nesta última semana foi o Podemos o partido que mais demonstrou o seu apoio à libertação do rapper. «Todos os que se consideram progressistas deviam ter vergonha», pode ler-se na conta oficial do Podemos, no Twitter. A sua defesa da liberdade de expressão é, evidentemente, política; o seu objetivo passa (agora, e também) por erradicar a Lei de Segurança Pública, promulgada em 2015 pelo governo espanhol, então liderado pelo Partido Popular, de direita. 

Horas após a detenção de Hasél, a coligação anunciou a sua intenção de conceder um indulto ao artista, que já recebeu o apoio de várias personalidades do mundo das artes e do entretenimento, como o realizador Pedro Almodóvar e o ator Javier Bardem, bem como de artistas portugueses, como Capicua, Vhils, Sérgio Godinho ou Valete.

Por enquanto, nem essas demonstrações resultaram na libertação de Hasél (que exigem ser «imediata»), nem essas declarações de revogação da lei apaziguaram os ânimos dos fãs do rapper e dos apoiantes da extrema-esquerda, no geral. Os confrontos entre manifestantes e a polícia resultaram já em vários detidos e feridos, entre os quais uma mulher, que perdeu um olho após ser atingida por uma bala de borracha disparada pela polícia. As ruas espelham o caos: montras partidas, paredes vandalizadas e caixotes do lixo incendiados. Não só em Barcelona, como também em Madrid e Valência.

Esta sexta-feira, o chefe do governo espanhol, Pedro Sanchéz (do PSOE), afirmou aos jornalistas que «numa democracia plena não é admissível o uso de qualquer tipo de violência», um sinal claro para todos quantos tomaram de assalto as ruas. E, apesar disso, acrescentou: «Existe um amplo consenso dentro da sociedade de que é preciso proteger melhor a liberdade de expressão». Entretanto, estão já a ser preparadas alterações ao Código Penal, para que este tipo de crimes, relacionados com a liberdade de expressão, não impliquem uma pena de prisão para os condenados, como no caso de Hasél. Para o Ministério da Justiça, «os excessos verbais que se cometerem no contexto de manifestações artísticas, culturais ou intelectuais devem permanecer à margem do Código Penal». Enquanto assim não for, a cantiga continuará a ser uma arma – por vezes ilegal.

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