Que impactos a covid-19 já está a ter e pode vir a ter nas encomendas?
Do ponto de vista da encomenda, julgo que os últimos tempos tinham tido algum impacto nos ateliês de arquitetura, porque o trabalho que passou a existir com maior frequência nos ateliês a seguir à crise foi ligado muito à hotelaria e à indústria do turismo — seja ele pequenas intervenções, grandes equipamentos hoteleiros ou a própria reabilitação das cidades que teve alicerce neste 'boom' do turismo.
Obviamente, se o turismo e todas as áreas e serviços que lhe estão ligados, foram as áreas diretamente atingidas com esta crise pandémica, haverá impacto na atividade dos arquitetos. Se for uma crise passageira e que de alguma maneira não se venha a repetir, provavelmente a confiança voltará; e se o investimento na área do turismo se mantiver, é provável que os arquitetos atinjam o mesmo nível de trabalho que tinham.
Sendo que este tipo de atividade económica, do meu ponto de vista, atingiu uma saturação que é impossível que de alguma maneira a partir daqui não vá haver um decréscimo nas encomendas destas áreas. Terá de haver uma nova vaga de outro tipo de encomendas — e, aqui, talvez questão da urgência da habitação acessível e outras questões que poderão ter emergido desta crise, sobre a própria natureza do desenho das cidades, dos espaços que habitamos.
Poderá haver aqui uma dinâmica para um olhar diferente sobre as cidades, os espaços de trabalho, o design até do próprio mobiliário e o modelo de desenvolvimento das cidades, que poderá ser o novo 'drive' para um outro tipo de encomenda e novos desafios para os arquitetos.
Penso que a questão do turismo está esgotada, estão à vista as consequências que esse modelo também tem: os centros desabitados, porque havia espaços da cidade que neste momento eram monofuncionais. Já se verificou que o modelo perseguido nos últimos anos não funcionou para todos, mas alimentou muitos ateliês de arquitetura durante todo este tempo; e, de alguma maneira, também alavancou outras atividades económicas.
Esta paragem forçada pode levar a repensar as relações que existem nos centros das cidades?
Acho que é precisamente isso. Provavelmente, vamos assistir a que, dentro das cidades, existam novas formas de comércio, até os próprios bairros terão de se reformular para terem equipamentos e unidades de comércio local que possam servir as pessoas sem as obrigar a deslocar-se muito. Mais jardins, mais parques, com uma construção com menos densidade, ou, pelo menos, com uma preocupação para que a construção seja doseada com passeios mais largos, por exemplo.
A questão dos equipamentos públicos e a questão da interação entre as pessoas e a preocupação que as pessoas adquiriram com esta doença pelas questões do conforto, de saúde e de segurança na cidade, vão, de alguma maneira, obrigar a políticas urbanas e de planeamento diferentes.
A arquitetura e as cidades mudaram não por serem feias ou bonitas, mas muito porque houve, durante a história, muitos surtos de doenças, incêndios, sismos, que obrigaram a repensar a forma como construímos e como pensamos as cidades, para nos protegermos como seres humanos.
Julgo que o comércio será mais local, mais ligado às comunidades — e menos à ideia das superfícies e dos grandes hipermercados, dos centros comerciais, etc. E haverá, de certeza, menos densidade.
Agora, aquilo que se receia é que haja uma espécie de deslocação das pessoas dos centros das cidades novamente para os subúrbios — e esse passo também é errado. Tem de haver um balanço entre novas políticas para o desenvolvimento da cidade, em que as pessoas sintam que a cidade faz sentido e que faz sentido não a abandonar — e não voltar outra vez àquela pandemia de construção à volta das cidades e do grande crescimento dos subúrbios, que é extremamente errado.
Que alterações o distanciamento e o isolamento social podem trazer também para o desenho das casas?
As casas vão ter de ser repensadas para acolher os espaços de trabalho, porque se calhar muita gente vai passar a habitar e a trabalhar em casa; as habitações vão provavelmente aumentar de dimensão e vão ter de incorporar estes novos espaços. Vão ter de ter zonas de descompressão entre o espaço de trabalho e o espaço de convívio da família — vão ter de ser muito mais multifuncionais e responder a mais questões, ser mais exigentes. Porque acaba por ser uma espécie de abrigo que as pessoas têm desse mundo exterior que agora se imagina como hostil, onde o vírus se desenvolve.
Há este medo da interação, medo do exterior, que leva as pessoas a serem obrigadas a viver dentro do espaço da casa — e tem-se verificado que não consegue cumprir as várias funções que agora lhe vão ser exigidas.
Ao nível dos escritórios e dos espaços de trabalho, haverá mais alterações, até mesmo nas tipologias da construção. Julgo que se irá reequacionar-se os grandes edifícios em altura, as torres, continuarão a ser eficientes, porque são espaços confinados, com densidade. Mesmo os espaços de trabalho, porque provavelmente vai haver maior separação entre as pessoas e a ideia da planta livre vai provavelmente deixar de existir, havendo espaços mais compartimentados. Provavelmente também o mobiliário, as mesas onde as pessoas trabalham, vão ter de ser maiores, porque vai ter de haver maior distanciamento entre as pessoas.
Até os materiais de construção, terão de ser mais asséticos, provavelmente existirão mais sensores de controlo dos próprios mecanismos dos edifícios, para haver menos contactos das mãos com os elementos da construção.
Julgo que [as mudanças] serão mais nos espaços de trabalho e no espaço público do que propriamente na habitação.
É realista acreditar que os promotores dos edifícios vão ter isto em conta?
Os investidores imobiliários são, muitas vezes, os mesmos investidores da bolsa de valores. Muitas vezes, estes grandes fundos de investimento tanto investem no mercado imobiliário como em títulos na bolsa de valores. A sua sensibilidade para estas questões da cultura, do património, da história das cidades, etc., não existe: o que há é uma noção de investimento 'versus' retorno.
Por aqui não haverá, tirando algumas exceções, nenhuma novidade. Estas imposições têm de vir da própria sociedade e do Estado, que terão de ser exigentes quanto a esses novos equipamentos e construções que vão chegar ao mercado e vão ter aceitação ou não, consoante a ideia e a educação que a sociedade tiver relativamente à exigência desses mesmos equipamentos e construções.
O fator da compra não deve ser o retorno sobre esse mesmo investimento, a não ser que esses espaços sejam só de especulação — se forem espaços para ser habitados, usados, se houver um critério, por parte da sociedade e do Estado, relativamente a esses mesmos investimentos, que obviamente são bem-vindos, mas que têm de ter em perspetiva não o retorno imediato dos investidores, mas a sociedade e as pessoas. Essa consciência tem de vir de nós e menos de quem investe.
As eleições para a Ordem dos Arquitetos arrancaram nesta quarta-feira, 17, e contam com quatro nomes à frente das listas — Daniel Fortuna do Couto, Cláudia Costa Santos, Célia Lourenço e Gonçalo Byrne. O processo prolonga-se até ao dia 26 deste mês e introduz alterações na própria estrutura da instituição.
O SAPO24 foi conhecer as propostas, mas, sobretudo, aquelas que anteveem ser as mudanças na forma como as casas, as cidades e a própria profissão vão refletir os efeitos da pandemia: do confinamento, do distanciamento e do turismo.
Para ler também:
- Daniel Fortuna do Couto: Não devia ser permitido "fazer habitação sem pelo menos duas frentes"
- Cláudia Costa Santos: "Vamos ser obrigados a aumentar o metro quadrado por pessoa para manter as distâncias de segurança"
- Gonçalo Byrne: "Os escritórios podem também aproximar-se da residência, sobretudo para as pequenas e médias empresas"
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