É um mundo cheio de histórias: a mãe que decidiu esconder-se num bordel nazi porque aí ninguém iria procurar uma mulher judia, o miúdo escondido dias a fio no sótão da casa de amigos sem ninguém saber, a família que fugiu do campo de concentração durante a noite, o oficial alemão que ajudou o "inimigo", o comboio com refugiados judeus que Portugal não salvou.
E foi este, o quinto de seis comboios que saíram do Luxemburgo com com destino a Portugal - mas que nunca chegou a passar a fronteira de Vilar Formoso com os seus 293 passageiros -, o ponto de partida para o que vem a seguir.
O comboio não entra em Portugal, "provavelmente porque pela primeira e única vez vem acompanhado de alemães fardados e armados. Gente da Gestapo ou das SS, os testemunhos divergem, mas sabemos que são oficiais alemães e que há troca de tiros com as autoridades portuguesas", conta Margarida Ramalho, co-autora do livro "O Comboio do Luxemburgo".
"Como não há documentação, não sabemos ao certo o que aconteceu. O que sabemos é que tudo estava preparado para os refugiados entrarem em Portugal, mas não entraram, acabaram por ser recambiados para França", diz. Destes, veio a saber-se, mais de 50 viriam a morrer nos campos de extermínio.
Rachel Wolf Galler é a primeira passageira do comboio que não chega a entrar em Portugal que Margarida Ramalho encontra. Morava por cima da sede da Société d’Aide aux Réfugiés Juifs d’Europe [Sociedade de Ajuda aos Refugiados Judeus da Europa], no número 71 da rue Fort Neiperg, junto à gare, na cidade do Luxemburgo.
Conta que no dia em que deixou o país com a família com destino a Portugal, com visto para Cuba, a 7 de novembro, imperava o medo e reinava um silêncio pesado.
Para a viagem, Rachel levava apenas uma mochila com roupa interior e uma mala pequena com mantimentos para três dias. Na mão, um relógio e um anel de sinete, presente pelo seu 18.° aniversário, que um soldado confiscou logo à saída de casa.
Rachel Wolf tem agora 100 anos. E há cinco, quando Margarida Ramalho e a arquiteta Luísa Pacheco Marques inauguraram o Museu Vilar Formoso - Fronteira da Paz, veio a Portugal com os filhos.
Foi então que o filho e um amigo, ambos membros da Memoshoa (Associação Memória e Ensino do Holocausto), tocados pelo museu, sugeriram fazer uma exposição no Luxemburgo. Só em 2019, quando Margarida Ramalho regressou ao Luxemburgo, o assunto voltaria à baila, desta vez com Claude Marx, também ele refugiado.
Nesse ano surge o convite da Memoshoa para fazer uma exposição no âmbito da International Holocaust Remembrance Alliance, cuja presidência era em 2020 do Luxemburgo. "A ideia deles era fazer lá uma reposição do museu de Vilar Formoso, mas era difícil". O espaço escolhido acabaria por ser a Abadia de Neumünster, "uma abadia medieval muito bonita, com claustros lindíssimos".
"Acabou por ser altamente comovente, porque nessa altura estiveram presentes 12 sobreviventes do comboio, uns vindos da Suíça, outros de Israel, outros de diversos pontos do mundo. Foi uma coisa linda, sobretudo porque muitos deles morreram pouco tempo depois", recorda Margarida Ramalho.
No final do ano passado a responsável foi contactada para refazer a exposição, desta vez em Portugal. Inicialmente, pensou-se na Assembleia da República e por apenas 15 dias, mas Margarida Ramalho contrapropôs o Palácio da Cidadela, em Cascais, onde ficará até setembro.
E é lá que agora podemos encontrar a história de Rachel Wolf, mas também a de outros judeus, nem todos com um final feliz. Os passageiros do comboio foram repartidos por vários campos intermédios e um grupo de 53 pessoas acabou por ser enviado para o campo de extermínio em Auschwitz. Erika Thuna, de 15 anos, foi a única sobrevivente - encontrada viva, por acaso, num monte de cadáveres, em 1945, no fim da guerra.
Mas a exposição "Portugal e Luxemburgo, países de esperança em tempos difíceis", é muito mais do que isso.
"Estamos todos com medo de uma guerra? Estamos. É como aquela história de Churchill, entre a desonra e a guerra escolhe-se a desonra em favor da paz. Mas vão ter a guerra"
As semelhanças com a atualidade
A exposição "Portugal e Luxemburgo, países de esperança em tempos difíceis" impressiona pelo terror, pela bondade, pela vida, pela morte e pela sobrevivência. Pelas opções. E até pelo paralelo com a guerra na Ucrânia, a que hoje assistimos quase em direto.
"Quer coisa mais parecida? A prepotência de um país mais forte sobre o mais fraco, a ideia alucinada de um homem isolado, que só ouve o que quer e o que lhe querem fazer chegar... Estamos a ver quase em paralelo - salvo as distâncias, obviamente -, uma repetição do que aconteceu", afirma Margarida Ramalho, curadora da exposição.
Outra semelhança com o passado: "Desde o primeiro momento que a Europa vai criando sanções, mas nunca são sanções suficientemente convincentes. A Áustria e a Alemanha já disseram que vão continuar a comprar gás [russo]. Estamos todos com medo de uma guerra? Estamos. É como aquela história de Churchill, entre a desonra e a guerra escolhe-se a desonra em favor da paz. Mas vão ter a guerra", diz. É uma escolha de Sofia.
Margarida Ramalho acredita que "do ponto de vista histórico é importante as pessoas perceberem que o nazismo não aparece do nada. As condições de humilhação e a desvalorização da moeda alemã, que levou a que a partir de 1923 a pessoas vivessem sem saber como seria o dia seguinte, foi terreno fértil para o que veio a seguir".
"Estou a ler o livro de um alemão que relata esse período, em que ele diz que o pai recebia dinheiro à sexta-feira e no sábado de manhã metia-se num táxi com a empregada e outra pessoa, podia ser o filho ou a mulher, e ia para o mercado às seis da manhã, onde comprava tudo o que podia e não se estragasse, porque sabia que dali a dois dias o dinheiro já não chegava para se alimentarem. Era o que comprava, o passe para ir trabalhar e comida para manter a família durante o mês".
Mas as analogias não acabam aqui. "Ele conta uma coisa na qual nunca tinha pensado: havia alemães muito jovens a ganhar rios de dinheiro através da especulação. Gente com muito pouca idade a enriquecer e a perder completamente qualquer noção de ética".
Também então houve o adensar da tempestade, com as perseguições aos judeus, o boicote ao comércio, as Leis de Nuremberg, que legislavam sobre a miscigenação de judeus ou o direito à cidadania, um passo enorme na construção do anti-semitismo. E a Noite de Cristal, o assalto generalizado a lojas e casas de judeus por toda a Alemanha (e depois na Áustria e na Checoslováquia).
São estes acontecimentos que empurram os judeus para os países limítrofes, nomeadamente para o Luxemburgo, que quase quadruplica a sua população de judeus durante a guerra.
"Somos caridosos só para alguns, dos sudaneses, iemenitas ou sírios ninguém quer saber, são todos terroristas"
A recusa da entrada do quinto comboio em Portugal terá sido também influenciada pelo facto de uma grande parte dos passageiros ter vistos falsos cubanos, negociados pelo cônsul de Cuba em Antuérpia.
Dos 293 refugiados, só 23 tinham nacionalidade luxemburguesa - as famílias Gorge, Hayum, Hirschmann, Jakob, Khan, Marx e Levy, entre outras. A maioria era apátrida, embora alguns, como os Galler, Goldberg, Harcsztark, Lachsmann, Salomon ou os Wagmann, vivessem no Luxemburgo há mais de 20 anos. E, claro, o governo luxemburguês no exílio preocupava-se sobretudo com os refugiados de nacionalidade luxemburguesa.
Margarida Ramalho volta ao presente: "Apesar de tudo, na questão da guerra na Ucrânia a Europa tem sido extremamente solidária. O que lamento é que não o seja com outros refugiados. Mas é sempre a mesma história: não são da mesma cor, não são da mesma religião e não são da mesma cultura. Somos caridosos só para alguns, dos sudaneses, iemenitas ou sírios ninguém quer saber, são todos terroristas. Isso incomoda-me bastante. Como incomoda o facto de nem sequer os corredores humanitários terem sido respeitados".
O guardador de perus
A sugestão de fazer a exposição no Palácio da Cidadela não foi por acaso. É que entre os muitos refugiados que entraram em Portugal na época estava a grã-duquesa Charlotte do Luxemburgo. "A grã-duquesa vem com a mãe, Maria Ana de Bragança, filha de D. Miguel", com vistos passados por Aristides de Sousa Mendes. "Elas e a sua comitiva, cerca de 70 pessoas".
A grã-duquesa foi autorizada por Salazar a instalar-se em Portugal na condição de não falar de política. Viveu em Cascais e depois no Monte Estoril e é daqui que vai a Londres, onde, através da BBC, faz o primeiro comunicado para o Luxemburgo a explicar por que motivo não regressa. O Luxemburgo estava então nas mãos de um governador provincial nazi, empenhado em fazer daquela a primeira região do Reich livre de judeus.
Por isso, uma parede dedicada aos que fogem, nomeadamente a grã-duquesa, a rota que percorreu até chegar e algumas imagens durante essa fuga, mas também Aristides Sousa Mendes, o homem que passa os vistos não só à família grã-ducal, como a centenas de refugiados luxemburgueses e outros. E a cópia da carta que escreve ao cunhado a denunciar a situação que vive: "Estou de cama com um forte esgotamento nervoso", diz a determinada altura. Acaba por estar três dias fechado num quarto sem decidir nada, para depois tomar a decisão de avançar com a emissão de vistos.
O Palácio da Cidadela está encostado à Casa de Santa Maria, onde a grã-duquesa ficou hospedada. "Viveu em Cascais, paredes-meias connosco. Por outro lado, o Palácio da Cidadela era a casa oficial do presidente da República. Tudo fazia sentido", explica Margarida Ramalho.
Mas há mais sobre o Palácio da Cidadela que muitos desconhecem. "Começou por ser uma praça de armas, construída em 1640 e reconstruída após o terramoto. E ficou mais ou menos em desuso até D. Luís a utilizar como sua residência oficial, porque começou por ser um palácio real, só mais tarde adaptado à Presidência. A parte onde decorre a exposição era uma antiga zonas de arrumos, mas a arquitetura com abóbadas é muito interessante do ponto de vista estético", considera a curadora.
E "foi no pátio do palácio que foi inaugurada a luz elétrica em Portugal, em 1878". Foi a 28 de Setembro, pela celebração do 15º aniversário do príncipe D. Carlos, que foram acesos os candeeiros na esplanada da Cidadela (idênticos aos da Praça da Ópera em Paris), oferecidos pela Câmara de Lisboa e utilizados, de novo, no mês seguinte, na zona do Chiado.
A última recuperação do palácio é do tempo de Cavaco Silva. Durante anos quem ali viveu foi o senhor Cruz, o guarda do palácio, que no inverno metia os perus dentro de casa sob pretexto de os animais terem frio. Isto na altura em que o palácio estava semi-abandonado.
"Fico sempre doida quando me dizem que antes de 1974 se vivia melhor. Isso era a classe média, e o resto do país, que era a maioria?"
Pelo meio, as noites medievais, organizadas por Pedro Caldeira Cabral. Mas o palácio ainda chegou a ser residência do chefe da casa militar de Mário Soares, Carlos Azeredo (que morreu no ano passado, aos 90 anos), e ainda ali viveu uma série de anos.
De volta à exposição, as cenografias simbólicas, em que Luísa Pacheco Marques aplica a ideia dos Fios Vermelhos, "que nos ligam a todos e tecem as tais redes entre nós, um plano que está sempre subjacente, de vez em quando com erupções, noutras circunstâncias mais forte, outras vezes a esfarelar e até a partir, uma ideia nos faz refletir sobre a nossa maneira de andar pelo mundo, sobre as nossas escolhas", esclarece Margarida Ramalho.
Ao longo da exposição, que começa com a invasão do Luxemburgo pela Alemanha, é possível encontrar muitas histórias de refugiados, nomeadamente a da família do co-comissário, Claude Marx, mas também descobrir como foi viver sob o poder do inimigo no Luxemburgo, quando a própria língua, o francês, foi proibida, ou conhecer a vida dos três homens que vão ajudar a maior parte dos judeu a fugir, um deles um oficial alemão.
Tudo sem esquecer o Portugal de 1940: a face da ordem, da Exposição do Mundo Português - "que muitos dos que chegavam viam como sinal de esperança e outros encaravam quase como uma afronta" -, da "terra mais linda das terras do mundo", mas também o lado da miséria e da repressão.
"Fico sempre doida quando me dizem que antes de 1974 se vivia melhor. Isso era a classe média, e o resto do país, que era a maioria? Tinham de andar com panos nos pés porque era proibido andar descalço e não havia dinheiro para sapatos", recorda Margarida Ramalho.
Depois, o fim da guerra, o hastear da bandeira, o queimar os símbolos nazis. E Portugal dos anos 60, "em que as pessoas vão ter necessidade de se ir embora para procurar um futuro melhor. Imagens de aldeias de Trás-os-Montes ou de bairros lisboetas, mais do que explicativas do porquê da partida. De facto, não era uma forma de vida. E estas pessoas eram heróis, porque atravessavam a fronteira a pé, a salto", considera Margarida Ramalho.
Por outro lado, o começo da Guerra Colonial, "que leva muita rapaziada a aproveitar para se exilar, uns porque não querem compactuar com a guerra, outros por questões políticas, porque já eram perseguidos e estavam marcados pela PIDE".
E, finalmente, o 25 e Abril, "para mim o momento político mais importante do século XX português, porque marca a rutura com o isolamento do resto da Europa e faz com que seja possível, pela democracia, gerar uma aproximação ao século XX, porque estávamos longe disso", afirma a responsável.
Doutro lado, os portugueses no Luxemburgo, desde o ministro da Justiça a políticos, pedreiros, artistas, uma amostra do contributo que os portugueses que vivem no Luxemburgo acabam por dar ao país. Em contrapartida, alguns luxemburgueses que vivem em Portugal, uma comunidade muito mais pequena, cerca de 300 pessoas, e uma série de trabalhos de artistas luso-luxemburgueses: artistas plásticos, atores, realizadores.
"Quando as suas histórias são demasiado trágicas as pessoas precisam de lhes encontrar um sentido e, sobretudo, precisam que os outros reconheçam o que lhes aconteceu"
E uma imagem que fica, a fotografia do grão-duque do Luxemburgo a falar com uma das sobreviventes, que viria a morrer pouco tempo depois: "Então agora o Luxemburgo é uma república?", pergunta ela. "Não, continua a ser um grã-ducado", responde Henri do Luxemburgo. "Então e quem é o grão-duque?", que ela saber. "Sou eu", ri-se ele. Ela, jornalista toda a vida, ficou impressionada. Mas ainda lhe disse: "Mas, se quiser, posso dar-lhe alguns conselhos".
A história é contada por Margarida Ramalho, que recorda a felicidade daqueles refugiados, homens e mulheres. "De facto - e já tinha visto isso em Vilar Formoso -, quando as suas histórias são demasiado trágicas as pessoas precisam de lhes encontrar um sentido e, sobretudo, precisam que os outros reconheçam o que lhes aconteceu".
Comentários