A formação começou em 2022 com uma turma de oito jovens da Associação Portuguesa de Pais e Amigos do Cidadão Deficiente Mental (APPACDM) de Lisboa, que, durante oito meses, numa manhã por semana, foram aprender o que é ser e o que faz um assistente de cabeleireiro.
Nessa altura, tudo estava em fase de teste e percebeu-se que só aqueles oito meses não seriam suficientes, pelo que a opção foi pela continuação do curso por mais oito meses em 2023. Dos oito alunos do ano passado, continuaram seis, aos quais se juntaram mais quatro jovens da APPACDM de Lisboa e oito da CERCI (Cooperativa de Educação e Reabilitação de Cidadãos Inadaptados) de Lisboa, num total de 18 pessoas.
No dia em que a Lusa foi conhecer o projeto, os alunos estavam a aprender a receber o cliente, perguntar o que deseja, ouvir o pedido e encaminhá-lo para a respetiva cadeira, mas também a relembrar técnicas para dobrar toalhas a preceito, limpar e secar os utensílios ou saber manusear alguns equipamentos de trabalho.
“A ideia é torná-los uns bons ajudantes de cabeleireiro, fazendo todas as funções que um bom ajudante de cabeleireiro faz, desde a receção ao cliente, servir café, tratar da higienização das mesas ajudantes, limpar o salão, cortar pratas, dobrar toalhas”, explicou Ricardo Silva, representante da marca (Alfaparf) que financia e garante a formação e os estágios.
Desde há dois anos que a rotina semanal passa por todas as quintas-feiras de manhã estar presente no decorrer desta formação — habitualmente acompanhado por mais três formadores – e, até hoje, Ricardo Silva ainda não falhou nenhuma. Tem uma relação de grande cumplicidade com aqueles alunos, que, admite, “foram uma agradável surpresa”.
“Com mais ou menos dificuldades, tiveram uma evolução fantástica para quem não percebia nada de cabelos”, apontou, defendendo que “eles têm tudo para conseguir fazer desde que estejam focados” e têm um grande entusiasmo em aprender.
Na opinião de Ricardo Silva, a formação tem que ser feita “na base da repetição”, mas salientou que estes jovens “têm muitas capacidades de aprendizagem”.
“Eu estou a aprender todos os dias com eles. Eles dão lições de vida diárias”, disse, emocionado.
A formação deste ano está quase a chegar ao fim e para os seis jovens que arrancaram com o projeto no ano passado a fase agora é de estágio, que será remunerado, havendo já cabeleireiros para todos, onde vão trabalhar durante o mês de agosto.
Sara Branco, 29 anos, estica o cabelo e faz tranças numa cabeça académica enquanto explica o quanto gostava de trabalhar num cabeleireiro: “Gosto de lavar cabelos, gosto de tudo”.
“Aprendi a pintar o cabelo e a fazer lavagens. Gosto muito de secar”, diz, por seu lado, Filipa Serrano, também 29 anos, admitindo que o mais difícil foi encarreirar com a dobragem das toalhas e dos penteadores.
Já André David, 21 anos, disse que adora limpar o chão e lavar, enquanto Paula Mexia, 48 anos, explicou com pormenor a forma correta de colocar o penteador, de modo a garantir que o cliente não fica molhado na altura de lavar o cabelo, e rematou: “O meu sonho é trabalhar num cabeleireiro”.
O Filipe Correia, 40 anos, está em sintonia com o restante grupo e elege como atividades preferidas lavar cabelo, dobrar toalhas ou pentear.
Deste grupo faz ainda parte Catarina Valente, 30 anos, a única que, da formação inicial, já está a trabalhar num salão, o Metrostudio, parceiro nesta formação e da responsabilidade de Susana Bravo.
“Gosto muito de aqui estar porque isto faz parte da minha vida”, disse à Lusa, sublinhando que, dessa forma, pretende “ajudar os pais”, uma vez que “o pai está muito doente”.
Explica que as suas funções passam por pôr a lavar ou estender toalhas, mas também dobrá-las para estarem prontas a usar, além de varrer o salão, lavar as taças de pintar os cabelos ou limpar e secar os utensílios que Susana Bravo tem no carrinho.
“Este cabeleireiro é o meu maior sonho porque ao pé da Susana eu estou bem. Este curso é beleza em todas as suas formas”, sublinha, fazendo alusão ao mote da formação.
Para Susana Bravo, a terceira parte no trio que arranca com esta formação, além da APPACDM e da Alfaparf, a Catarina destacou-se logo no início e entendeu que “era a pessoa certa” para ter ao seu lado a trabalhar.
Gostava de ver mais cabeleireiros aderirem, não só na formação, mas também a disponibilizar estágios, mas admite que haja ainda muitos receios da parte de quem emprega.
“As pessoas têm receio de chamar a atenção porque acham que o facto de eles terem uma deficiência pode prejudicar, mas se vemos alguma coisa a correr mal, temos de corrigir, temos de explicar”, apontou, sublinhando que o mesmo se passa com qualquer outro funcionário e acrescentando que são “jovens que às vezes podem não estar nos seus melhores dias e é preciso perceber”.
A responsável da APPACDM pelo projeto apontou que a instituição pretende “fazer tudo para promover a inclusão, a autonomia e as capacidades” destas pessoas, destacando que o caminho feito até agora tem sido de descoberta e defendendo que “tudo aquilo que possa dar visibilidade às capacidades das pessoas com deficiência intelectual vai impulsionar a empregabilidade no futuro”.
“Nós não queremos mostrar a deficiência. Eles são realmente capazes desde que as coisas sejam adequadas a cada um e as empresas depois de terem experiências com estas pessoas gostam e repetem. É uma questão de abrir portas e todos saem a ganhar”, defendeu Filomena Abraços, sublinhando que é muitas vezes o desconhecimento e o receio que impedem mais empresas de empregar pessoas com deficiência.
Na opinião da responsável, “a deficiência intelectual é uma franja da sociedade muito esquecida” e denunciou o reduzido número de empresas que eventualmente têm alguém assim nos seus quadros.
“Há muita coisa a fazer porque estas pessoas são tão válidas como qualquer uma das outras”, defendeu.
O sucesso do curso, que não tem qualquer tipo de apoios estatais, levou já a que fosse criada uma turma no Porto, estando garantido que no próximo ano continuará a formação dos 12 que começaram este ano, além de estar prevista uma formação para novos alunos.
Comentários