“Vou beijar, vou dançar
Vou hum hum até me cansar
Toda a noite, toda a noite...”
O refrão da música “O coração não tem idade (vou beijar)”, cantada por Toy, consta do álbum “Toda a Noite Hmmm Hmmm”.
Pelos dias de hoje esta alusão não é mais que uma memória de arquivo audiovisual. Ninguém dança. Nem nos cansamos a dançar. Escutamos o silêncio. A ausência de barulho é total. Não há “noite” há mais de um ano.
Sair à noite para dançar, para “deixar-nos ir”, para cruzar olhares e tentar a sorte com alguém no meio de da pista, para sair de uma escuridão suada e enfrentar um raio de sol que nos acompanha até casa... Esta é uma imagem distante da realidade que vivemos.
A indústria da noite fechou aos primeiros vestígios da pandemia. Desde então, as portas das discotecas nunca mais abriram. A música não voltou a tocar e nem se sabe quando e de que forma voltaremos a ouvir a coluna a abanar.
A “Febre de Sábado à Noite” evaporou-se. Deixou John Travolta a dançar sozinho e empresários e clientes mergulhados no enredo de “Footloose”, filme de 1984 que retratava uma pequena cidade americana onde dançar era proibido. E, já agora, película através do qual Kevin Bacon saltou para o estrelato.
Alguns antecipam que os tempos que se seguem em muito se vão assemelhar com os roaring twenties, os année folles, ou, traduzindo, os loucos anos 20 que marcaram a década de 1920, período que se seguiu à pandemia da gripe espanhola, em 1918.
Mais de cem anos e uma pandemia depois, é o regresso dos excessos, a explosão de eventos sociais, as festas de rua, em paralelo com uma renovada liberdade sexual e um crescimento económico. Está tudo ao virar da esquina. Será?
Para já, um "cheirinho" do que nos sopra do outro lado do Atlântico. De Nova Iorque.
Em género de pré-época, David Byrne, músico e ex-líder da banda Talking Heads, é um dos curadores do projeto "Social! The social distance dance club", que mais não é do que uma noitada pensada para dançar em tempos de distanciamento social, respeitando as diretrizes relacionadas com a pandemia do novo coronavírus.
No Park Avenue Armory, em Manhattan Upper East Side, 100 participantes com bilhete, uma máscara, temperatura medida e testes rápidos de COVID-19 à entrada, podem, de uma forma um tanto ou quanto burlesca, dar um pé de dança enfiados numa bolha.
O SAPO24, no entanto, centrou atenções em Portugal. Foi de Lisboa ao Porto. Ouvi Hernâni Miguel, o guineense que catapultou a noite do Bairro Alto e Mário Carvalho, a mão que embalou o mítico Indústria. Da Invicta desceu até ao Algarve, onde escutou Zé Black, das loucas noites algarvias, e regressou à capital, para conversar com Paulo Dâmaso, administrador do Grupo K.
Escutou quatro “homens” da noite, vozes experientes de quem abdicou dos serões no sofá em família para olhar, de pé, por outra.
“As pessoas vão para a rua. Não há hipótese”
Hernâni Miguel é uma das figuras emblemáticas da noite lisboeta. Do Targus, no Bairro Alto, ao Impossibly Funky, no Lx Factory, estas são as casas que transportam o nome deste guineense que um dia decidiu colocar o Bairro Alto no mapa da cena noturna de Lisboa. Hoje está à frente do Tabernáculo, o restaurante-bar na Rua de São Paulo e do Blues, o restaurante colado ao elevador da Bica.
O caminho para o regresso à vida social noturna, diz, é só um: “As pessoas virão para a rua. Não há hipótese”.
Com mais de quatro décadas vividas ao som da música que se toca fora de horas, antecipa uma redefinição do que será a “nova” noite.
Para já, “começará mais cedo, porque temos a limitação dos horários”, diz, antecipando uma revisão horária em bares e discotecas onde "deixará de haver o horário latino”.
E enquanto estas as pistas de dança não abrem, “as pessoas vão ouvir música nos bares que tenham esplanadas, isto se as câmaras municipais não vetarem”, avisa. Cabe também às autarquias "ajudar as pessoas a virem para a rua”, acrescenta.
"A noite vai ficar em banho-maria, a febre de sábado à noite vai pausar e as raves, tal como eram, vão desaparecer” Hernâni Miguel
Hernâni Miguel acredita que o diálogo entre a cidade, as pessoas e os bares “será possível se as juntas de freguesias se aproximarem" dos proprietários destas casas.
"A Administração do Porto de Lisboa, por exemplo, antecipou-se e a capital pode ganhar nova aproximação ao rio”, diz, referindo-se ao novo poiso de Jamaica, Europa e Tóquio, os emblemáticos bares do Cais de Sodré que viajarão até à beira do Tejo.
O futuro da noite passará também pela “redefinição do espaço público”, aponta Hernâni Miguel. E dá uma sugestão: “é preciso liberalizar a música na rua até as 22h00 para permitir a quem pode ter esse protagonismo tocar perto das esplanadas”. Da mesma forma, é urgente “parar a perseguição a estes músicos que ganham à moeda para dentro do chapéu”, suplica.
Antecipa, igualmente, uma maior união entre os espaços de esplanada, restaurante e bar. “Se o bar tiver possibilidade de fazer uma esplanada vais deixar de saber o que é o bar e o que é o restaurante”, advoga.
Quando lhe perguntamos que novo mundo estará à espera dos noctívagos, Hernâni Miguel não tem dúvidas: “A noite vai ficar em banho-maria”, antecipa. “A febre de sábado à noite vai pausar”. E vai mais longe: "as raves, tal como eram, vão desaparecer”, garante.
Quando as discotecas reabrirem “haverá gente com muito receio”, antevê. Mas o medo não toca a todos: “os putos de 16 e 17 anos não têm medo, vão tomar de assalto e invadir as pistas”, assegura. “Os gajos mais velhos, como eu e como tu, com família, com filhos, têm mais receio. Uma coisa é estares numa esplanada com dez amigos. Outra e estares fechado lado a lado com quem não conheces”, compara.
“A noite que chega ao dia é uma miragem"
Na Invicta, Mário Carvalho é um nome incontornável da noite portuense. Leva “mais de 30 anos ligado a discotecas”.
Foi gerente e dono do Indústria, mítico espaço dançante na Foz, cuja marca expandiu para Lisboa, Braga e Vila Nova de Cerveira. Esteve igualmente no Plano B, pegou no Pérola Negra e transformou-a em “discoteca normal”. No portfólio conta ainda com o seu café Lusitano, um “bar gay friendly” com 15 anos celebrados no ano da pandemia.
“Pista de dança, beijos e abraços... Percebo que os mais jovens não tenham medo, mas as pessoas maduras vão ter receio” Mário Carvalho
“Não tenho grande otimismo”, expressa, secamente. “Logo de início antecipei que seria demorado. Um vírus que se transmite pelo contacto e proximidade é antítese dos bares e discotecas”, remata. O pessimismo tolda-lhe o verbo: “espero que sejam dois anos para voltar à normalidade. E espero que a vacina funcione, que se consiga a imunidade de grupo, para os bares e discotecas funcionarem”.
Entre incertezas do que poderá ser o novo “sair à noite”, deixa uma garantia: “A noite que chega ao dia neste momento é uma miragem. É prematuro [pensar nisso], talvez mais para o final do ano”.
As diferenças geracionais devem marcar o ritmo do regresso, diz. “Pista de dança, beijos e abraços... Percebo que os mais jovens não tenham medo, mas as pessoas maduras vão ter receio”. Até porque, reflete, “os mais novos, se permitido, entram logo nas pistas, algo que até já acontece em festas ilegais”.
Sustenta ainda que as discotecas “estão sujeitas a abrirem e não terem ninguém. Em especial as que não tenham espaço ao ar livre, que são a maior parte”, atesta.
Questionado sobre um eventual regresso à normalidade, aquela em que tudo segue como era dantes, responde a olhar para o umbigo. Da sua parte, após um investimento feito no outono passado para transformar o seu espaço num restaurante-bar, joga à defesa: “Penso reabrir assim, mas aguardo para ver os horários. E para ver a reação do público que estava habituado a entrar e ter uma pista para dançar e beber uns copos. Agora poderá ser diferente”, descreve.
Mário Carvalho debruça-se ainda sobre as possibilidades de regresso atiradas para cima da mesa. “O número limitado de pessoas parece inviável. Com lotação limitada os negócios não são viáveis”, sustenta. “O serviço de mesa exige mais funcionários, vigilantes, as despesas são maiores, mas a faturação será menor. Pode ser um passo em falso e muitas empresas podem entrar em falência total”, alerta.
E não são os únicos problemas que vê: “os apoios do Estado são tardios. Temos falência envergonhada e vários empresários terão ficado pelo caminho”, informa.
As rendas são o lado B das dificuldades. “O governo só anunciou apoios a partir de janeiro de 2021 e deixou de fora o arrendamento de 2020. Esse débito em relação às rendas poderá provocar mais falências porque terão de ser pagas até janeiro de 2022”, refere, pedindo “um prolongamento destas moratórias”.
O regresso dos anos 80, com mesa marcada
“O meu nome é José Abreu, o nome artístico é Zé Black”, apresenta-se. Vive de e para a noite “há 35 anos, ou mais”. DJ e Relações Públicas, estava “à frente do Le Club, em Santa Eulália”, no Algarve, e tem a agora o Calypso Bar.
Recorda com saudades a noite que fez nascer a sul. “Criámos em Albufeira, no verão e na Páscoa, uma noite monstruosa durante duas décadas. Era uma diversão social, no verdadeiro sentido da palavra. E isso desapareceu”, lamenta.
“(A noite) Vai ter de mudar e recuar aos anos 80”Zé Black
Feitas as apresentações, deita as cartas sobre o que poderá ser o futuro dos espaços anteriormente reconhecidos pela bola de espelhos no teto.
“São muitos anos de noite, faço parte dessa geração. Perspetivo que a noite sofrerá uma grande mudança a todos os níveis. Será uma nova dança para a noite”, sorri.
“Temos que voltar para trás para andar para frente”, diz, partilhando aquela que é já uma “ideia quase fixa”: “[A noite] Vai ter de mudar e recuar aos anos 80, o que de certa forma já estava a acontecer, numa filosofia estranha de mesas reservadas”, diz.
Zé Black sustenta que o futuro do negócio encontra no passado o modelo de salvação. E faz um roteiro de saída à sexta à noite: “Tem de haver uma ligação. [A noite] começa com um jantar, passa para um bar e não um bar-discoteca, para socializar. Como era antigamente”, diz.
“Os barmen eram amigos e terão de voltar a ser. Os bares têm que começar a ser bares e os barmen a serem barmen. Isto ao invés da lógica da discoteca. Tem de mudar a 1000 por cento”, acrescenta.
O seu desejo é que haja espaço nesta nova noite para a sua geração: "Quando não tiver um espaço para a gente da minha geração é melhor fechar a noite”.
Segue-se um desejo: o regresso do porteiro, o “Portas”, como é apelidado por quem está do lado de fora à espera de entrar. Mas não um qualquer: “[Antigamente] quem estava à porta tinha o mínimo de formação. Dizia 'boa noite' e sabia dialogar com quem não podia entrar. Isso tem de voltar”, apregoa.
Recorda as porteiras Ana Mara e Margarida Martins, do Frágil, no Bairro Alto, em Lisboa. “Aí não entrava qualquer um e quem ia para uma discoteca tinha que ter uma certa indumentária”, recua.
Quero voltar a pôr jazz, bossa nova para ir buscar uma faixa etária que não tem espaço. Aqueles que acabam o jantar e perguntam: onde vamos agora?”Zé Black
Tal como Hernâni Miguel e Mário Carvalho, Zé Black antecipa que os miúdos vão liderar no regresso das noites dançantes. Deixa, por isso, um aviso aos seus pares. “Os empresários têm que começar a educar os miúdos”, dispara.
Prevê que as “discotecas para 2 mil pessoas vão acabar”. A ausência de sustentabilidade financeira é a razão: “abri a Locomia com o Tó Ricciardi e DJ Vibe como DJ’s. Hoje contratar um DJ custa 50 mil euros. Há dificuldade em ganhar esse dinheiro”, refere.
O tema dos horários é transversal aos quatro “homens” da noite. “[os bares] terão que ter um horário normal. Das 10h00 às 24h00 ou das 17h00 às 01h00”, aponta. Nas discotecas, “trabalhar até as 4h00 ou 5h00 e já está bom. Quem ia até às 9h00 da manhã não trouxe nada de bom”, assevera.
No que lhe toca, tem a expectativa de abrir o bar no final do ano. Enquanto espera para ver, desvenda o que quer fazer: “Quero abrir algo com cultura. Quero voltar a pôr jazz, bossa nova para ir buscar uma faixa etária que não tem espaço. Aqueles que acabam o jantar e perguntam: onde vamos agora?”.
O regresso do consumo mínimo
Paulo Dâmaso de Andrade é CEO do Grupo K, fundado pelos irmãos Gonçalo e João Rocha em 1988 (Kremlin, Kapital e Urban Beach, no portfólio) e vice-presidente da AHRESP, para a área de bares e discotecas.
“E se fores a três sítios durante a noite, correr as capelinhas, será que te obrigam a fazer três testes. E o custo? Será comparticipado pelo Estado?” Paulo Dâmaso
“O revenge spending não sei se acontece de imediato”, interroga-se. “Será uma retoma progressiva à medida que transmitimos confiança aos clientes”, crê.
Coube-lhe encerrar esta viagem pelo futuro da noite. “Não consigo antecipar o que será”, admite. “É uma decisão política e científica. A Direção-Geral da Saúde irá decidir quando será possível retomar a atividade”, diz. “Neste momento não há notícias sobre o regresso. A AHRESP está a programar a abertura com o Ministério da Saúde, Economia e DGS, mas não há data. Aguardemos”, reitera.
Para o regresso, há quem atire para a mesa a realização de testes rápidos. “Não faz sentido” responde. “E se fores a três sítios durante a noite, correr as capelinhas, será que te obrigam a fazer três testes. E o custo? Será comparticipado pelo Estado?”, questiona.
Interrompemos o raciocínio. Entre testes e receios, poderá a saída noturna passar a ter um só um só poiso, questionamos. “É uma possibilidade”, perspetiva.
A conversa regressa às contas. Analisa o preço das bebidas em comparação com o custo dos testes. “Nos últimos 20 anos o preço das bebidas manteve-se na mesma tabela, mas os custos associados têm aumentado. Taxas, IVA, imposto do álcool, segurança e pagamento de licenças reduziram as margens e não vejo como os estabelecimentos terão capacidade para absorver mais um custo (teste)”, exclama.
Na qualidade de responsável pela Associação da Hotelaria, Restauração e Similares apresenta ainda uma solução. “Defendemos, uma vez que os espaços oferecem espetáculos, as pessoas pagarem um bilhete repartido, cada qual sujeito a um imposto (IVA) diferente. A bebida a 23%, o espetáculo (música) a 6%”, apresenta. “É o regresso do consumo mínimo”, simplifica Paulo Dâmaso.
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