Diário de quarentena, por Patrícia Reis. Dia 1


O aviso chegou assim: “Vou reencaminhar mensagens de médicos, são longas, mas valem a pena”. E as mensagens de voz que recebi são de quatro médicos portugueses.

São mensagens para as famílias, para o namorado ou marido, para um amigo. Apenas uma tem um registo médico no sentido de ser mais didática e informativa. Em resumo, para não me alongar, a mensagem é: fiquem em casa, evitem aglomerados de pessoas, não vão para a praia, lavem as mãos, tenham desinfectante em casa, limpem as casas de banho e cozinhas.

Eu, em casa até ver, concluí que a situação é pior do que tinha imaginado e perdi toda a descontração. O meu momento de semi pânico foi aliviado com este exercício, senta-te e escreve, Patrícia, se escreveres consegues pensar melhor. Vou cancelar todos os meus compromissos, decidi, escrevi emails a pedir desculpa, SMS a explicar.

De repente, o cão dá sinal e percebo que estão a entrar pessoas em casa. É a senhora da limpeza. Fiquei sem saber o que lhe dizer, mandei-a embora. Disse-me que além desta casa, faz muitas mais e que eu sou a primeira a mandá-la embora. Ficou claro que pago como se tudo tivesse sido feito. Fecho a porta e vou lavar as mãos.

Preciso de comprar mil coisas para ter em casa, por isso entro num site de um hipermercado para perceber que, além de muitos produtos com indicação de que estão esgotados, só entregam na segunda-feira entre as cinco e as sete da tarde. Tenho ovos e massa, arroz e atum, tenho fruta e legumes, não vou passar fome.

Encaro a televisão como um inimigo e sei que hoje teremos Conselho de Ministros. Talvez as pessoas se mentalizem que isto só vai lá – sendo lá um lugar com saúde pública – se ficarem em casa. Já temos um hashtag #staythefuckhome que utiliza um palavrão que considero adequado à situação. Talvez o Estado feche as instituições e, dando o exemplo, vá tudo para casa.

Um país em casa significa um país sem produzir, significa menos dinheiro. Ligo a um amigo que tem um negócio que depende do fluxo dos turistas. Está a informar-se sobre linhas de apoio governamentais, já teve muitas desmarcações, conclui que no final do mês terá perdido muito dinheiro e que os reembolsos, que os putativos clientes lhe pedem, são impensáveis. “Não tenho dinheiro para devolver a todos”.

O meu filho mais velho liga-me a saber se estou num sítio público. Não quer saber de coisas logísticas, quer que eu fique em casa. O meu filho mais novo diz que não vai deixar de fumar (isso dá vontade de o esfrangalhar, acredito que percebam porquê).

Temos um medo que não é expresso na sua dimensão verdadeira, por respeito uns aos outros. Não queremos acreditar que isto será muito pior, que isto será como Itália.

Há uns anos, escrevi um livro que se chama Por Este Mundo Acima. Lisboa está numa devastidão imensa, não há comida, não há muitos sobreviventes e a história gira à volta de um velho editor, Eduardo, que recupera “o seu mundo” através de um miúdo órfão e de uma biblioteca. Olho para os meus livros e penso que são uma riqueza extrema, penso que amo cada livro que sei ser um bom livro. Dizem-me: Tudo bem, os livros, mas tens de ter um frigorífico cheio. E precisas de ter medicamentos. Certo, é tudo verdade, os livros não nos salvarão desta pandemia, é evidente, a ficção é muito facilitadora na construção de cenários alternativos.

Este é o primeiro dia. Olho para o cão. Precisa de ir à rua. E eu regresso à internet para perceber o que acontece se for com o cão à rua. Vou com o cão à rua, evito todas as pessoas, o passeio é o mais curto da história dos passeios com o cão. Ele não parece incomodado. Não me cruzei com uma alma. Chego a casa, depois de abrir duas portas, de tocar no botão do elevador, e vou lavar as mãos. Tão estranho como lavar as mãos deixou de ser um gesto básico de higiene, lavo as mãos com consciência de que estou a fazer mais do que o básico. Retenho a respiração por dez segundos. Algures li que se aguentar a respiração sem tossir então está tudo bem. Pode ser uma grande tanga mas dou comigo a reter a respiração.


Dia 2Não me sinto ridícula por estar em casa, sinto-me segura.

Dia 3Ser europeu é também ser-se um pouco italiano

Dia 4O desespero dos artistas condensado numa voz

Dia 5Estamos juntos, todos em casa, mas juntos.

Dia 6António! Tens carne aí em casa?

Dia 7. Desistir não é uma opção

Dia 8. A ligeireza deixa-me doida

Dia 9. Escolher bom jornalismo é escolher a democracia

Dia 10. Saudades de ver a minha mãe

Dia 11. Silêncio, ouçam a poesia

Dia 12. Então, o que te faz mais falta?

Dia 13. É assustadora a perversidade humana

Dia 14. Nunca fomos tão iguais