Um vídeo com imagens de confrontos entre moradores e policiais ocorridos a 20 de janeiro do ano passado correu o mundo das redes sociais e levou às primeiras páginas a Rua 25 de Abril do Vale de Chicharros, conhecido por Bairro da Jamaica, na freguesia da Amora, distrito de Setúbal.
O racismo foi o substantivo mais utilizado nos dias seguintes aos confrontos, aos quais se seguiram manifestações violentas em outras zonas da Grande Lisboa de jovens, que protestavam contra a perseguição policial, mas das quais os habitantes do Bairro da Jamaica se demarcaram.
No seguimento destes eventos no Bairro da Jamaica os habitantes foram surpreendidos com a visita do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, e o Ministério Público deduziu acusação contra uma família (mãe e três filhos) e um agente da PSP.
Hoje, os incidentes são assunto de difícil abordagem para quem ainda vive naqueles prédios inacabados que começaram a ser ocupados nos anos 1990, nomeadamente por cidadãos oriundos de países africanos de língua portuguesa.
Essa dificuldade deve-se à má fama do bairro, que ficou ainda pior após as notícias dos confrontos, a qual chega mesmo a ser uma barreira na hora de arranjar emprego.
No dia em que completava 20 anos em Portugal, Manuela Pedro disse à Lusa que desde essa data que sonha com uma casa nova, lamentando as condições atuais de habitabilidade onde a humidade convive com o barulho, os ratos e as baratas.
Em 2019, o bairro assistiu à demolição de um prédio após o realojamento de 62 famílias, que foram as primeiras a receber uma casa e a deixar a Rua 25 de Abril. Restam 183 famílias, entre as quais a de Manuela Pedro, 33 anos, que elege o convívio com os moradores como uma das coisas boas do bairro.
Sobre os incidentes de há um ano, congratula-se com o facto de agora a presença policial ser menor, pois antes “vinham por tudo e por nada”. Mas da má fama os moradores não se livram e agora mais que nunca.
“Quando vou a entrevistas de emprego e descobrem que a minha morada é a Jamaica eu sou rejeitada. Eles anexam-me àqueles comportamentos que são isolados. Nunca tinha havido um incidente desses”, disse.
Mas o caso também teve consequências positivas: “Ajudou imenso a revelar os problemas dos moradores. Muita gente desconhecia que em Portugal ainda vivem pessoas nas condições em que nós vivemos. E ainda há quem viva pior, quem não tenha sequer teto. Nós ainda temos um teto. É mau, mas temos um teto”, disse.
Salim Mendes, presidente da Associação de Desenvolvimento Social de Vale de Chicharros, irrita-se quando julgam o bairro sem o conhecer: “O bairro é sempre calmo, desde o início até hoje, apesar dos acontecimentos de há um ano”.
“Trabalhamos quase todos e contribuímos muito para o desenvolvimento deste país”, afirmou, sublinhando que se o bairro não fosse pacífico o Presidente da República não tinha feito uma visita surpresa acompanhado apenas por dois seguranças.
Salim Mendes congratula-se com o realojamento em curso, pois “é bom para a integração destes cidadãos que, com uma nova morada, já não serão postos de parte devido à fama do bairro”.
Este guineense que ainda não perdeu a esperança de um dia voltar ao seu país, de onde saiu há 25 anos para uma estada de um ano, entende bem as saudades que sente quem parte.
“Mesmo vivendo em condições péssimas, quando se sai sente-se vontade de regressar para passear, porque faz parte na nossa história. Aqui é que concentramos as culturas dos PALOP. Temos são-tomenses, guineenses, cabo-verdianos, angolanos, moçambicanos - poucos - e da comunidade cigana”, disse.
E as famílias já realojadas voltam sempre que podem para dois dedos de conversa e para apreciar gastronomia africana ou para admirar a horta com produtos “genuinamente africanos”.
Mas voltam sobretudo para sentir o outro. “Essas pessoas têm muitas saudades da convivência porque nos prédios novos ninguém fala com ninguém. É estranho morar 20 anos com pessoas e não se falarem. Não é bom para o ser humano”, disse.
Para perpetuar esta ligação de décadas, Salim Mendes planeia criar uma associação de antigos moradores para que, pelo menos uma vez por ano, convivam e relembrem a vida no Jamaica.
Até lá, as festas são mais rijas nas datas das independências dos países de origem dos moradores, com comida e música tradicionais.
Desde 1994 no bairro, Neide Jordão, 35 anos, não esconde que foi feliz no Jamaica, onde agora cria os dois filhos.
“O bairro tem fama que é um bairro problemático, com muita violência, mas não é verdade, muito pelo contrário. As pessoas são trabalhadoras, é só mesmo uma fama má”, disse à Lusa.
Menos bem fala das condições das casas: “Moramos dentro de água. É água que nunca mais acaba. Limpamos e passados cinco minutos já tem água. Temos problemas respiratórios e nos ossos por causa da humidade”.
Por isso, prevê para o dia em que receba a nova casa um sentimento contraditório. Por um lado, vai finalmente viver numa habitação condigna, mas por outro vão ficar as saudades.
“Grande saudade. Saudades mesmo, porque aqui é um bairro onde nós encontramos um bocadinho da nossa África. Vivemos aqui, temos várias culturas, etnias – Cabo Verde, Angola, Guiné, São Tomé… encontramos a nossa África aqui. É um ponto de encontro de África em Portugal”.
Edson José da Silva, 37 anos e nascido em Angola, vive no bairro desde 1994 e não se queixa das pessoas, mas das condições das casas.
“Vivemos em paz e harmonia. Normalmente respeitam-se mutuamente. A parte má são as condições em que vivemos, a humidade…”, desabafou.
Sobre os incidentes de há um ano, remete para a Justiça, a quem cabe “resolver”, mas acredita que ajudaram a conhecer a forma como as pessoas vivem no Jamaica.
Agora, espera pelo dia em que possa receber a sua casa, um T2 para poder receber a filha que vive em Inglaterra, mas que em breve irá visitar o pai.
“Quero dar-lhe todas as condições e privacidade”, disse, mostrando orgulhoso a fotografia da filha sorridente, junto ao passaporte de cidadão português.
Na luta de Maria contra a humidade no Bairro da Jamaica nem todos os santos ajudam
Nos poucos e húmidos metros da casa de Maria Nascimento, 66 anos, cabem apertadas as recordações de duas décadas em Portugal, vigiadas por uma Nossa Senhora de Fátima que acompanha a são-tomense na vida difícil que leva no Bairro da Jamaica.
A sexagenária sobe com dificuldade o quinto andar do prédio eternamente por acabar na Rua 25 de Abril de Chicharros, conhecido por Bairro da Jamaica, distrito de Setúbal, onde há um ano se registaram confrontos entre moradores e a polícia que as redes sociais pulverizaram e se estenderam a outras zonas da Grande Lisboa.
A luta de Maria Nascimento é contra a humidade que lhe cobre as paredes de preto e se entranha nos pulmões, levando-a com regularidade ao hospital com dificuldades respiratórias.
Tal como 243 famílias, das quais 62 já foram realojadas, a família desta são-tomense mudou-se para esta casa na esperança de receber uma nova.
No final das escadas de cimento, ladeadas por placas de madeira pregadas de improviso, uma porta abre-se para um espaço que divide com outro vizinho e onde trabalha uma máquina de lavar roupa. Ao lado, com um pano africano a fazer de porta, uma casa de banho de reduzidas dimensões acolhe uma sanita, um lavatório e um polibã, em cima do qual um guarda-chuva aberto impede que a água do banho seja a que escorre das paredes, por onde a humidade corre sem obstáculos.
Uma outra porta dá para a casa de Maria: duas assoalhadas mínimas repletas de pertences espalhados por estantes e uma cama que divide com a irmã mais velha.
Neste espaço minúsculo viu os filhos crescer, os quais entretanto “já foram à sua vida”. E é com um esforço cada vez maior, que aumentou com o passar dos anos, que tenta vencer a humidade com a ajuda de tinta azul, perdendo sempre a batalha.
Junto à cama, uma mesa de cabeceira coberta por um 'naperon' de renda assemelha-se a um altar com as figuras em quem Maria do Nascimento deposita a esperança de dias melhores: Nossa Senhora de Fátima, Sagrado Coração de Jesus, João Paulo II, entre outros.
Invadidas pelo preto da humidade, as paredes do quarto seguram com dificuldade dois quadros de anjos, enquanto uma cómoda acomoda pertences e trabalhos infantis onde a palavra “parabéns” é a mais colorida da habitação.
Para Maria do Nascimento, se antes da demolição de um dos prédios do bairro a vida nas casas era difícil, agora está muito pior, pois o imóvel deixou de herança um lençol de água permanente onde os mosquitos se reproduzem e com eles os ratos e as baratas.
“Foi tirado o prédio, mas ficou a lama. Aguardamos pelo dia em que nos tirem daqui”, disse à Lusa com os olhos postos nas manchas pretas da humidade que a obrigam a andar de impermeável dentro de casa.
Maria do Nascimento diz que ficará muito contente no dia em que receber uma casa nova, com condições como as que não tem atualmente, mas acredita que ficará com saudades do bairro.
“A gente volta. Quem saiu volta para ver o Jamaica, os amigos”, afirmou, numa referência às famílias que já foram realojadas e que voltam sempre que podem para conviver com os amigos que ali deixaram.
Talvez por isso não goste de ouvir falar mal do bairro nem dos que lá vivem, nomeadamente após os confrontos entre moradores e agentes policiais no dia 20 de janeiro de 2019, que resultou na acusação pelo Ministério Público de um agente da PSP e uma família (mãe e três filhos).
“Nós que vivemos aqui temos um perfil, mas quem nos vê de fora às vezes fica com má impressão de nós”, afirmou.
Apesar de reconhecer o peso de pertencer a um bairro com má fama, Maria do Nascimento não esconde o sítio onde vive: “Que remédio tenho eu do que dizer que vivo dentro da Jamaica”.
E sobre o futuro, diz que pode bem passar por regressar a São Tomé, onde vai sempre que pode.
Até lá, Maria sobe e desce as escadas frias e sem luz que a levam de e para casa. Faz parte do grupo de moradores a receber as próximas casas novas. Vai ficar “contente”, mas vai voltar para matar saudades.
* Sandra Moutinho (texto), Hugo Fragata (vídeo) e Mário Cruz (foto), da agência Lusa
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