Ana [nome fictício], trabalha numa empresa de contratação de serviços na área do marketing, em Lisboa. Depois de terminar a fase do teletrabalho veio a necessidade de voltar ao escritório. No regresso, percebeu que várias regras foram implementadas, inclusive a realização de teste à covid-19. Ao SAPO24, conta como foi todo o processo.

"Todos os empregados tiveram de fazer testes, exceto os que ficaram em lay-off. Foi comunicado através de um email geral, para todos. Depois a diretora de recursos humanos ligou-me para saber se eu tinha possibilidade de fazer o exame logo no dia seguinte, em vez de prolongar mais, até porque sabiam que a minha mãe é uma pessoa de risco e então pediram para fazer o mais rápido possível", começa por explicar.

"Eu estava em teletrabalho e no dia seguinte tinha de regressar ao escritório. A ideia de despachar o teste era também evitar ao máximo as filas e as pessoas que estariam no local para o mesmo. Eram mesmo muitas que o tinham de fazer, julgo que mais de 200 pessoas foram testadas. Além de pessoas da minha empresa fizeram também outras, porque é uma empresa de outsourcing", diz Ana.

Teste dá segurança?

Mas será que fazer o teste é sinónimo de segurança? "Sinceramente, não me sinto mais segura, de todo. Quando eu fui fazer o exame estavam várias pessoas no local. Claro que tínhamos medidas de segurança, como luvas, distância social, álcool gel, a máscara. Mas isso não quer dizer nada. Estive num local com muitas pessoas a passarem, durante mais de dez ou quinze minutos. A verdade é que não se sabe se tocaram nos olhos, se tocaram no rosto, se mexeram em alguma coisa onde eu, sem querer, possa também ter tocado", explica. Além disso, garante também que durante o tempo de espera "não havia desinfeção constante e os corrimões onde as pessoas tocavam também não eram limpos".

"Não me senti segura. Se não estivesse contaminada podia ter ficado nessa altura. E também podia ter ficado depois. Fiz o teste no dia 22 de maio e posso ter ficado infetada nesse dia ou depois. Posso ter estado com alguém e ficado com o vírus", afirma, referindo que não tem qualquer informação por parte da empresa de vir a repetir o teste. Quanto aos colegas mais próximos com quem falou sobre o assunto, diz que "reagiram normalmente" e "ninguém se recusou" a ser testado, mas todos referiram "que não gostaram de ter muitas pessoas no mesmo local".

Apesar de tudo, Ana concorda com a política de testes nas empresas. "Mostra que a empresa se está a preocupar, ou pelo menos dá esse parecer. Mas acho que não muda nada, porque uma pessoa pode ter ido de transportes públicos fazer o exame, estar negativo, e na volta para casa ficar contaminada. E isto pode acontecer a qualquer pessoa, em várias situações. Até numa ida ao supermercado".

As empresas podem obrigar os trabalhadores a serem testados? 

O caso de Ana é um entre tantos que acontecem pelo país, em várias empresas. Por isso, é importante perceber, ao nível legal, o que implicam estes testes em massa. Rita Canas da Silva, do Departamento de Laboral da Sérvulo & Associados, listou para o SAPO24 o que está em causa.

  • Decorre da legislação laboral que o empregador não pode, por regra, exigir aos trabalhadores a realização ou apresentação de testes ou exames médicos, de qualquer natureza, para comprovação das suas condições físicas ou psíquicas;
  • Contudo, há exceções:
    • Testes e exames médicos previstos em matéria de segurança e saúde no trabalho (exames de admissão, periódicos ou ocasionais – cf. artigo 108.º do Regime Jurídico da Promoção da Segurança e Saúde no Trabalho);
    • Hipóteses em que tal tenha em vista a proteção e segurança do/a trabalhador/a ou de terceiros;
    • Quando particulares exigências inerentes à atividade o justifiquem (cf. artigo 19.º do Código do Trabalho). Nessas circunstâncias, deverá ser sempre fornecida aos trabalhadores justificação escrita e o teste deverá ser realizado por (ou o resultado comunicado a) médico do trabalho, que apenas comunicará ao empregador se o trabalhador está ou não apto para o trabalho.
  • Dado o contexto epidemiológico, o empregador tem um dever geral de garantia de condições de segurança e saúde no trabalho, sendo este reforçado pelas orientações da Direção-Geral de Saúde e da Autoridade para as Condições do Trabalho;
  • Desta forma, é legítimo que o empregador solicite aos trabalhadores, como condição de regresso ao(s) local(is) de trabalho, a sujeição a testes, com a finalidade de prevenção do contágio, tendo, assim, em vista a proteção e segurança do/a trabalhador/a ou de terceiros;

  • A Comissão Nacional de Proteção de Dados emitiu já uma orientação em que expressamente admite a possibilidade de "o profissional de saúde no âmbito da medicina do trabalho avaliar o estado de saúde dos trabalhadores e obter as informações que se revelem necessárias para avaliar a aptidão para o trabalho";
  • Assim, desde que a empresa forneça aos trabalhadores justificação escrita para a realização do teste à Covid-19 e que este seja apresentado ao médico do trabalho, que apenas comunica à empresa a aptidão ou inaptidão do trabalhador para o regresso ao local de trabalho, não há motivo legítimo para recusa, pelos trabalhadores, à realização de tais testes.

E a medição da temperatura?

  • As entidades patronais podem medir, mas não registar a temperatura corporal dos funcionários "para efeitos de acesso e permanência no local de trabalho", segundo o Decreto-Lei 20/2020, publicado a 3 de maio;
  • O procedimento "não prejudica o direito à proteção individual de dados, sendo expressamente proibido o registo da temperatura corporal associado à identidade da pessoa, salvo com expressa autorização da mesma";
  • "Caso haja medições de temperatura superiores à normal temperatura corporal, pode ser impedido o acesso dessa pessoa ao local de trabalho";
  • Segundo a CNPD, qualquer pergunta relativa à saúde do trabalhador só pode ser feita pelo médico da medicina no trabalho.

Testar trabalhadores pode ser uma forma de não "meter um pé em falso"

Filipe Froes, pneumologista e coordenador do gabinete de crise da Ordem dos Médicos para a Covid-19, explica ao SAPO24 as vantagens dos testes nas empresas, começando por referir que há que ter em conta "a dimensão da empresa, o contacto com a população, o risco dos seus funcionários e o tipo de exposição que têm com o público".

"Eu diria que deve ser ponderada a possibilidade de serem realizados testes nas empresas. Numa empresa de grande dimensão, com múltiplos profissionais — e eventualmente alguns de risco —, com prestação de serviços à população e com contactos frequentes, provavelmente poderá fazer sentido fazer testes aos seus trabalhadores",  diz.

"Estamos numa altura em que sabemos que a retoma económica favorece esses contactos e é bom para a empresa saber se tem casos ou não, até para tomar as medidas necessárias com antecipação, para prevenir que mais casos ocorram dentro da empresa e que haja o risco de transmitir a doença a pessoas", reforça Filipe Froes.

Contudo, é preciso ver que o teste dá informações apenas sobre o momento em que é feito — e "não há nenhuma recomendação de regularidade" para a sua realização nestes casos, explica o pneumologista. "Acho que deve ser uma decisão individualizada, com base nas características da atividade, tipo de exposição e de população. O teste só indica que naquele momento a pessoa não tem [Covid-19]. Portanto, obriga a que todas as medidas de prevenção da infeção se mantenham. O facto de ser negativo naquela altura não significa que não possa ser positivo no dia seguinte", justifica.

Mesmo assim, testar as pessoas de uma empresa pode ser "uma melhor maneira de começar" a retoma aos locais de trabalho, "sabendo que pelo menos naquele dia estão negativos". E, a isso, aliar tudo o que já se sabe. "As pessoas continuam a ter de cumprir e respeitar as medidas de controlo de infeção: etiqueta respiratória, lavagem das mãos, distanciamento, utilização da máscara. As pessoas têm de manter sempre isso, o facto de terem teste negativo não as liberta de nenhuma destas obrigações", acentua Filipe Froes.

Para ajudar a perceber, o médico dá um exemplo. "Imaginemos uma grande superfície. Acho que é mais seguro saber que não há ninguém infetado do que ter casos que estão infetados e que podem infetar outros colegas; podem obrigar inclusivamente ao encerramento de algumas instalações e, sobretudo, podem pôr em causa a segurança dos clientes. Até porque sabemos que existem pessoas assintomáticas, que podem ser positivas", começa por dizer.

"Fazendo o teste, sabemos que começámos do zero"

"Se eu fosse um empresário e tivesse uma fábrica, provavelmente, agora com a abertura, procuraria — para tranquilidade de todos os empregados e para segurança de todos os empregados e dos clientes — ter um teste inicial que me garantisse que ninguém naquele dia era positivo e que pudesse transmitir a colegas ou a clientes e pusesse em causa todo o fluxo de trabalho da empresa. Isto não invalida que quem é negativo não mantenha estrito controlo das medidas de controlo de infeção e de prevenção", frisa.

Mesmo na ótica do trabalhador o teste pode ser uma mais-valia, defende o pneumologista. "Tem o seu emprego. Começam a trabalhar e vêm todos. Há um que está doente e que transmite a 10 ou 15. Você leva para casa e tem um pai com 70 anos, que adoece de uma forma grave. E depois diz assim: 'fui trabalhar e apanhei isto ali'. Pelo menos, fazendo o teste, sabemos que começámos do zero. No fundo é tentar o mais possível começar do zero".

No fim de contas, "ganha-se segurança entre os funcionários, segurança para o exterior e garantia de que, não havendo ninguém infetado nesse dia e mantendo as medidas de contenção, não há risco, pelo menos ao começar, de meter um pé em falso, que pode pôr em causa toda a cadeia de produção", remata.

Empresas devem ter "atitude pedagógica". A posição da DGS

A diretora-geral da Saúde, Graça Freitas, apelou já às entidades patronais para que tenham uma "atitude pedagógica" e expliquem as medidas de segurança aos trabalhadores, incluindo os temporários, para reduzir o risco de infeção do novo coronavírus.

"Muitas vezes os trabalhadores não têm uma perceção de risco como deviam. Não conhecem o plano de contingência e, portanto, compete também ao empregador ter essa atitude pedagógica, explicar o porquê das medidas", frisou.

A diretora-geral da Saúde pediu às empresas que deem formação aos trabalhadores, nomeadamente a quem se encontra a fazer trabalho temporário, dando o exemplo de pessoas que andam na colheita da fruta.

"Eu diria mesmo que deve haver alguma supervisão por parte da entidade patronal, para ver se estão a cumprir medidas de distanciamento, de higiene, de não partilha de objetos", defendeu Graça Freitas.

A diretora-geral da Saúde sublinhou a importância de as pessoas estarem devidamente informadas.

Graça Freitas alertou ainda para a fiabilidade dos testes de rastreio, recordando que nem todos têm as mesmas características e é necessário cuidado na sua utilização, para não ser criada uma "falta sensação de segurança".

A medição da temperatura é vista pela responsável da Direção-Geral da Saúde como "mais um instrumento que pode ser útil, tal como auto-monitorização dos sintomas" e entende ser benéfico fazer essa medição antes de as pessoas irem trabalhar ou para a escola. Adotando "um conjunto de medidas", salienta Graça Freitas, reduz-se o risco de transmissão.