A nova polémica está relacionada com palavras de Bento XVI sobre o celibato, que noutras circunstâncias podiam ser encaradas apenas como a sua defesa como essencial ao ministério sacerdotal, mas assumem agora um peso diferente.

Bento XVI pronunciou-se sobre este tema quando é esperada a Exortação Apostólica do Papa Francisco sobre as conclusões do Sínodo dos Bispos para a Amazónia, realizado em outubro do ano passado.

Na sequência do sínodo, é esperada como possível a abertura do líder católico à possibilidade de ordenação sacerdotal de homens casados naquela região da América Latina, para suprir a falta de padres.

No livro “Das profundezas dos nossos corações” – de que o papa emérito quer ver o seu nome retirado da capa e dos textos da sua autoria que estarão na obra -, Bento XVI defende que o celibato dos padres “tem um grande significado”.

“Acredito que o celibato” dos sacerdotes “tem um grande significado” e é “indispensável para que o nosso caminho na direção de Deus permaneça o fundamento da nossa vida”, escreveu Joseph Ratzinger.

Francisco, que em março de 2017 já tinha admitido publicamente "considerar" a possibilidade de ordenar homens casados envolvidos na Igreja, veio em janeiro de 2019 – no regresso da viagem ao Panamá – a rejeitar “qualquer questionamento geral do celibato clerical” em vigor no catolicismo romano, considerado "dom para a Igreja", defendendo que não deve ser opcional.

"Pessoalmente acho que o celibato é um dom para a Igreja. Em segundo lugar, não concordo em permitir que o celibato seja opcional", declarou, na ocasião, a bordo do avião papal.

Face a este posicionamento, o livro escrito pelo cardeal Robert Sarah, prefeito da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, com a participação de Bento XVI, está a ser encarado como um instrumento de pressão para condicionar a decisão do Papa Francisco.

No livro, é defendido ser “urgente, necessário, que todos, bispos, sacerdotes e leigos, redescubram um olhar de fé na Igreja e no celibato sacerdotal que protege o seu mistério”. E, citando Santo Agostinho, Sarah e Ratzinger escrevem “Silere non possum! (Não posso ficar calado!)”.

Face à polémica levantada no início da semana, quando o jornal francês Le Figaro publicou excertos da obra, Bento XVI, através do seu secretário particular, Georg Gaenswein, anunciou que pediu a retirada do seu nome do livro.

"Posso confirmar que esta manhã [terça_feira], por indicação do papa emérito, pedi ao cardeal Robert Sarah que contactasse os editores do livro pedindo que removessem o nome de Bento XVI", disse Gaenswein.

O secretário de Bento XVI acrescentou que o papa emérito "nunca aprovou nenhum projeto de livro com assinatura dupla" com o cardeal Robert Sarah.

Gaenswein explicou numa declaração à agência noticiosa espanhola EFE que Bento XVI sabia que o cardeal estava a preparar um livro e lhe enviara o seu texto sobre o sacerdócio, autorizando-o a usá-lo, mas “não tinha aprovado nenhum livro com assinatura dupla e não tinha visto a capa".

Estas declarações provocaram uma reação dura do cardeal Robert Sarah, que afirmou no Twitter que acusá-lo de mentir eram "difamações de extrema gravidade".

"Hoje [segunda-feira] à noite, eu comprovei a minha estreita colaboração com Bento XVI para escrever este texto a favor do celibato. Falarei amanhã, se necessário", acrescentou Sarah, que publicou as fotos de três cartas que Bento XVI lhe enviou.

As cartas confirmam que Bento XVI enviou um texto sobre o sacerdócio e que o autorizou a publicar "da maneira que pretendia", mas não especificam em nenhum momento se é um livro, com uma introdução e uma conclusão assinada por ambos.

O diretor da Sala de Imprensa da Santa Sé, Matteo Bruni, por seu turno, veio a público transmitir que “a posição do Santo Padre sobre o celibato é conhecida. No (…) regresso do Panamá, o Papa Francisco afirmou: ‘Vem-me à mente aquela frase de São Paulo VI: ‘Prefiro dar a vida antes que mudar a lei do celibato’. Pessoalmente, penso que o celibato é uma dádiva para a Igreja. (...) Não estou de acordo com permitir o celibato opcional. Haveria qualquer possibilidade apenas nos lugares mais remotos’”.

Mas a polémica estava lançada e as divisões entre as alas mais conservadoras e progressistas da Igreja Católica adquiriam novo fôlego depois de, ainda antes do Sínodo para a Amazónia, os críticos de Francisco, incluindo alguns cardeais, terem classificado as propostas do documento de trabalho do sínodo como "heréticas" e um convite a uma religião "pagã" que idolatra a natureza e não a Deus.

Na resposta, o cardeal Claudio Hummes, arcebispo emérito de São Paulo, disse que a falta de padres levou a uma "quase total ausência da Eucaristia e de outros sacramentos essenciais para a vida cristã diária".

"Será necessário definir novos caminhos para o futuro", acrescentou, denunciando o "tradicionalismo" católico, que está preso no passado.

A Igreja Católica, que abarca quase duas dezenas de ritos diferentes, permite já sacerdotes casados nas igrejas de rito oriental e em casos em que os sacerdotes anglicanos previamente casados se convertem ao catolicismo. Se Francisco aceitar a proposta do sínodo, porém, será o início de uma nova era para a Igreja Católica de rito latino após mais de um milénio.

A possibilidade do fim do celibato obrigatório para os padres tem estado também nas preocupações de alguns setores da Igreja em Portugal.

Na terça-feira, o Conselho Permanente da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) sublinhou “a fidelidade do Papa Bento XVI ao Papa Francisco, a unidade entre dois papas e a confiança plena no Papa Francisco sobre as decisões que vier a tomar sobre esta matéria do celibato”.

Sobre o livro, porém, não foram tecidas considerações.

Em 29 de junho do ano passado, na homilia de uma cerimónia de ordenações de padres no Patriarcado de Lisboa, o cardeal Manuel Clemente dirigiu-se aos novos sacerdotes dizendo: “No vosso caso, o dom do celibato reforça a imagem de Cristo sacerdote, que assim mesmo viveu, como oferta de Deus Pai a todos, para todos oferecer consigo ao Pai”.

Meses antes, o teólogo Anselmo Borges, em entrevista ao jornal Público perguntava: “Com que fundamento se insiste no celibato?”.

“Não esqueçamos que Jesus entregou o celibato a uma opção, à liberdade; portanto, a Igreja não pode impor isso como lei”, disse Anselmo Borges.

Por sua vez, ao mesmo jornal, em 18 de junho, o dominicano Bento Domingues considerava que o Papa revelava “uma astúcia brilhante” ao “apelar às necessidades específicas da região” amazónica, “porque o que está em causa ali é o direito dos cristãos à eucaristia a que ninguém pode dizer que não”.

“Mas a crise de falta de padres é global e, estando quebrado este muro, as pessoas um pouco por todo o lado vão começar a dizer, e com razão, que a situação em que vivem é igual à da Amazónia”, disse frei Bento Domingues, admitindo que Francisco, como “não pode simplesmente impor as coisas por decreto”, está a “‘descongelar o debate’, alargando a discussão muito para lá do círculo dos teólogos malditos e eruditos, expondo as contradições diante do nariz das pessoas”.

Se Francisco terá força para impor mudanças é o que os próximos meses vão mostrar, crescendo a expectativa em relação à sua Exortação Apostólica sobre as conclusões do sínodo.

E apesar das vozes que apontam para que Bento XVI, à beira de fazer 93 anos, possa estar a ser manipulado pelos setores mais conservadores da Igreja, ou para que o Vaticano viva um “cisma não declarado”, surgem as palavras de Francisco no regresso da viagem que fez a Moçambique, Madagáscar e Maurícias em setembro do ano passado: "Não tenho medo de cismas. Oro para que não ocorram, porque a saúde espiritual de tantas pessoas está em jogo. O caminho do cisma não é cristão".

*Por João Luís Gomes, da agência Lusa