A 11 de outubro, véspera do primeiro dia grande da última peregrinação aniversária do ano, que assinala o término das aparições de Nossa Senhora aos pastorinhos — e aquela em que se deu o chamado Milagre do Sol —, tudo parece diferente. A primeira, a de maio, aconteceu num recinto quase deserto. Como será esta? O plano de contingência estipulou que só cerca de seis mil peregrinos poderão assistir às celebrações, como lembram as marcas no pavimento.
A semana passada, o reitor do Santuário, Pe. Carlos Cabecinhas, dizia aos peregrinos que não devem correr “o risco de vir a Fátima”. “Pedimos que se associem a nós, que façam a peregrinação pelo coração, através dos meios virtuais, que o Santuário disponibiliza diariamente”, apelou.
Mas há os que não conseguem ficar em casa. Os que vêm até à Cova da Iria, de mais ou menos longe. Uns vêm de carro, outros arriscaram e vieram a pé, em grupos mais reduzidos do que habitualmente. Mas fizeram-se ao caminho. Em frente à Capelinha das Aparições, a tarde de domingo foi de chegadas. Os coletes amarelos não enganavam: quem se propôs percorrer vários quilómetros tinha conseguido cruzar a meta.
Contrastando com o novo normal, que pede que se evitem abraços, dois peregrinos choravam juntos, esquecendo por momentos a pandemia. José Manuel Almeida e a irmã, Maria Francisca, completaram juntos “200 e poucos quilómetros”, desde o Sabugal até Fátima. Caminharam durante cinco dias. Não foi a primeira vez. Manuel conta ao SAPO24 que já aqui vem há 27 anos, Maria Francisca diz que deve vir “há mais ou menos 20”, mas já nem os conta.
“Costumo fazer esta peregrinação em maio, mas este ano foi resolvido à última hora virmos agora. Mesmo assim com a pandemia, para que a Senhora nos livre disto”, atira o peregrino, também organizador do grupo.
“Este ano, devido à covid-19, o nosso grupo foi reduzido a 10 unidades. Tínhamos mais 30 pessoas que queriam vir, mas tivemos de reduzir. Normalmente eu organizo o grupo com mais dois colegas que não vieram, devido a questões de saúde”, começa por explicar.
Maria Francisca, ainda de lágrimas nos olhos, não esconde a emoção que é chegar e conseguir vir neste grupo mais pequeno. Ainda para mais vindo de mais longe do que o Sabugal.
“Vivo na Alemanha, em Colónia, e venho muitas vezes com o meu irmão. Venho sempre de propósito para vir a pé, este ano não foi exceção. Mesmo quando puseram Lisboa em risco, não hesitei em vir à mesma. Agora estão eles em zona de risco, vamos lá ver o que aquilo vai dar”, diz.
“Esta é uma chegada diferente, porque se vê tudo com máscaras. É muito emocionante, nós trazemos os nossos pensamentos, as nossas dores, tudo… é incrível. Chegar aqui é incrível”
Maria Francisca, emigrante na Alemanha
Apesar das máscaras e dos cuidados acrescidos que este ano impõe, o que importa é chegar. No caso deste grupo, a estada é curta: optaram por chegar a 11 para evitar maiores confusões e não ficam mais nenhum dia. Mas cumpriram o propósito, como o provaram os abraços que são raros — e quase proibidos — nos dias que correm.
“Ao longo destes 27 anos a emoção cresce. Vai crescendo de ano para ano, agora não foi diferente. Nós chegamos, ali ainda fora do recinto, e a emoção é muita”, afirma José Manuel, logo completado pela irmã.
“Esta é uma chegada diferente, porque se vê tudo com máscaras. É muito emocionante, nós trazemos os nossos pensamentos, as nossas dores, tudo… é incrível. Chegar aqui é incrível”, atira convicta.
Em ano de pandemia, não se altera o motivo que faz com que se caminhe. No fim, “não se pede nada quando se chega aqui”, diz Maria Francisca. “É só um agradecimento por termos chegado. Somos 10 e todos os 10 temos motivos diferentes para vir. Uns [têm motivos] mais graves, outros menos. Mas é emotivo”.
E chegar custa. Há quase sempre mazelas. “No caminho temos as bolhas, dores musculares e outras dores. Às vezes até custa… eu, que sou da organização, costumo dizer que sou um aldrabão. Minto às pessoas, a dizer que estamos quase a chegar e não estamos… é o tal ‘já ali’! Mas quando se chega aqui parece que abalam as dores todas”, lembra José Manuel.
Enquanto os dois falam, os restantes elementos do grupo observam orgulhosos. Porque quando se chega, chega-se num todo. José Manuel, Maria Francisca, Luís, Miguel, Dalila, Manuel, José, Aurora, Cláudio e Pedro não deixam que se pense outra coisa.
“Tem de haver é respeito pela doença, mas medo não. Se tivermos medo não saímos de casa”
Manuel Carreiras, Campo Maior
Aos poucos, outros grupos vão chegando. Rosa Guerra e Manuel Carreiras fizeram 220 quilómetros em seis dias. Ela é de Elvas, e vem pela primeira vez, ele de Campo Maior, e já vem há 18 anos.
O grupo, que costuma ter 50 pessoas, ficou reduzido a 14 elementos. “Vieram os que tiveram coragem e não tiveram medo”, sumariza Manuel, organizador do grupo.
Rosa, estreante nestas andanças, não tem dúvidas ao dizer que viriam “mais à vontade se não fosse a pandemia”. Todavia, o importante é que chegaram bem, “com algumas bolhinhas nos pés, mas isso faz parte do percurso”.
Mas Manuel acha que não é bem assim: a covid-19 não traz assim tantas dificuldades. “Acho que isto da pandemia é tudo uma história muito mal contada. Isto a mim não me mete medo. Toco sempre na madeira, mas…”, afirma reticente enquanto aperta a cruz que leva na mão. “Tem de haver é respeito pela doença, mas medo não. Se tivermos medo não saímos de casa”, garante.
Ao contrário do grupo do Sabugal, estes 14 peregrinos que começaram a jornada em Campo Maior ficam em Fátima até dia 13 de outubro. Rosa diz não ter medo das seis mil pessoas no recinto, Manuel diz que estar naquele espaço nessa data nem é o mais importante.
“Se tivermos entrada no recinto, entramos. Se não tivermos não ficamos aqui à roda de nada [nas imediações], vamos para o quarto do hotel e vemos na televisão, sem problema nenhum. Não vale a pena andarmos na confusão”, explica o organizador.
“A peregrinação não fica a meio, porque já cumprimos a nossa missão. O meu medo era não conseguirmos chegar aqui aos pés de Maria. Já cumprimos a missão, até assistimos à missa. Ainda melhor, foi a cereja no topo no bolo. O resto está feito”, frisa.
Apesar disso, fazem falta os abraços. “É uma emoção muito forte chegar aqui, todos os anos são diferentes. Este ano é uma emoção mais fria, não há abraços. Não há o choro. Não havendo abraço há um choro íntimo. É a única diferença que eu noto, é o abracinho”, reforça Manuel.
Rosa concorda. “É muita emoção. Mesmo sem abraços há emoção. Sente-se uma alegria de chegarmos aqui, só mesmo quem passa é que sabe descrever o que é”, remata emocionada.
Mas a chegada implica também que se olhe em redor. Para Manuel, que leva mais anos de peregrinações até Fátima, chegar ao recinto e ver os lugares assinalados no pavimento levanta algumas questões — principalmente considerando os grupos que, como o seu, não deixaram de vir.
“As argolas podiam ser um bocadinho mais largas. Somos 14, viemos juntos. Não oferecemos perigo ao grupo. E quantos cabemos? Talvez dois [em cada argola]. Devia haver argolas para grupos, que já vêm juntos”, começa por dizer. “Se tivéssemos [covid-19], já tínhamos todos. E estamos sem dores de cabeça, sem tosse, sem nada disso. Só dores nos pés, e essas não contam. Uma pessoa chega aqui e elas desaparecem todas”, diz, num sorriso que se adivinha escondido pela máscara, de quem recorda todas as maleitas.
“A minha primeira experiência foi muito má. Em Tomar tiveram de me fazer uma sola dos pés nova, eu tinha os pés todos desfeitos. Cheguei aqui, comprei uns chinelos, passaram-me as dores e prometi a Nossa Senhora: ‘se me deixaste cá chegar assim, então enquanto me deixares vir eu volto’. Enquanto ela me deixar vir, eu venho aqui”, garante.
"Às vezes precisamos de alimentar a fé com a multidão. O silêncio é importante, mas precisamos da multidão, precisamos de mostrar ao mundo que estamos unidos”
Vítor Cabrita, Malveira
Mas nem todos podem vir até Fátima a pé, como habitualmente. Ou porque os grupos optaram por ficar sossegados ou porque o trabalho não o permite. Com o cair da noite e o início do terço e procissão de velas, são vários os pequenos grupos que vão surgindo. Um deles abriga-se nas arcadas do Santuário, do lado direito do altar do recinto. Estão sentados nos degraus e rezam o terço autonomamente do que se passa na capelinha.
Alguns deles teriam vindo a pé precisamente nestas datas. A 11 de outubro entrariam no recinto com os pés cansados, fazendo parte do grupo de peregrinos de Monte Abraão. Neste ano de 2020 entraram com o cansaço do trabalho ou o descanso das folgas, mas as peregrinações em grupo tiveram de ficar adiadas.
Vitor Cabrita vem da Malveira, “a do Oeste”, frisa, e apresenta rapidamente o grupo que o rodeia. “Cada um vem de um sítio diferente, somos amigos mas geograficamente distantes. Somos amigos de oração e de coração, não somos vizinhos”, diz.
Nos últimos três anos, Vitor não chegou a este Santuário a pé, mas chegou a Santiago de Compostela. Nos cinco anos anteriores veio a Fátima. Este ano não é possível ir a nenhum, nos moldes habituais. Mas escolheu vir à Cova da Iria num domingo à noite, de qualquer das formas.
“Tenho sempre esta gratidão — não é uma dívida —com Maria, e sempre que posso venho. Não é porque é uma data festiva, mas às vezes a união, a quantidade de pessoas, também fomenta uma energia e uma fé diferente. Às vezes precisamos de alimentar a fé com a multidão. O silêncio é importante, mas precisamos da multidão, precisamos de mostrar ao mundo que estamos unidos”, afirma.
Olhando para os companheiros, que além de partilharem peregrinações partilham a participação no Cursilho de Cristandade, não tem dúvidas. “Mesmo com menos gente e sem vir a pé continuamos unidos. Ainda hoje [domingo], na homilia das 11h, o reitor do Santuário dizia que continuamos mais unidos do que nunca, pelo coração. E isso é verdade”, diz Vitor Cabrita.
Por isso, é preciso ver o copo meio cheio. Há uma pandemia, tudo mudou, mas faz-se o que é possível. “Sinto-me um privilegiado, porque continuo a poder vir. Se não pudesse vir é que era complicado. Há cristãos que são perseguidos, que não podem ir a lado nenhum”, começa por refletir. “Nós continuamos a poder vir, podemos estar distanciados e rezar uns pelos outros. De facto estamos em pandemia, uns estão a sofrer e outros podem vir aqui — têm a graça de vir aqui rezar pelos que estão a sofrer, pelos outros, para que nos livremos da pandemia. Não há que dramatizar”, atira.
“Passamos de um átrio cheio para um mais vazio, mas temos Mãe. Mesmo durante a pandemia”
Gonçalo Pinto, Lisboa
Com ele está também Gonçalo Pinto, enfermeiro. Seria a quinta vez que entraria nesta data no recinto do Santuário. Enquanto peregrino e profissional de saúde que também dá apoio ao longo do percurso.
Pela sua profissão, diz-se “um instrumento nesta fase de pandemia” — e também é isso que o faz voltar. “Sofremos todos por igual desde março, mas aguardei até este momento, que coincide com uma das minhas peregrinações anuais, para vir aqui com uma família reduzida, para recarregar baterias e voltar à luta ao serviço dos outros”, começa por dizer.
Contudo, a decisão de vir não foi fácil. Terminou o dia de trabalho às 19h30 e teve de se pôr a caminho. Pensou desistir, mas algo pesou mais. E só o percebeu quando entrou no recinto.
“Chegar hoje a Fátima é pensar nas vezes que achei que não valia a pena vir. A emoção é outra, é dizer ‘como é que eu pensei que não ia arriscar vir cá?’”, explica.
“Estava a trabalhar na margem sul. Uma hora e meia de trânsito não me motivou certamente, mas tendo irmãos à minha espera, coincidindo o dia com a data de chegada da minha peregrinação, disse logo que era uma graça de Deus. Há sempre uma força maior — é Deus, então vamos arriscar. E, quando em dúvida, Ele deu-me um toquezinho e lá veio o ‘estás a ver como valeu a pena? A minha mãe estava em casa à tua espera’”, diz, referindo-se a Nossa Senhora.
“E sim, aí baixo a cabeça de vergonha e digo ‘é verdade’. Vale a pena, como crente, vir ao Santuário. Mesmo com dúvidas: a carne é fraca, somos humanos. Mas vale a pena vir aqui. Se disse o Papa que ‘temos Mãe’, como é que recusamos vir à casa da Mãe?”, questiona. “Passamos de um átrio cheio para um mais vazio, mas temos Mãe. Mesmo durante a pandemia”, remata.
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