“Tinha um Vauxhall grande. Cabíamos até caber. Um, dois, três, quatro, sempre mais um. No primeiro ou segundo Rally de Portugal (Rally TAP, prova inaugurada em 1967), decidimos ver a prova como deve ser: cortei um número, colei nas portas do carro, acendi os máximos, parei à porta do Quartel dos Bombeiros, de onde partia o rali, passei pelos juízes e arranquei por aí fora”.

A história é recordada ao SAPO24 por José Carvalho. Antigo comandante da Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários de Góis, presidente da Mesa da Assembleia Geral da instituição e presidente da Assembleia Municipal da vila tinha, então, pouco mais que a maioridade (“Aos 18 anos era o único que tinha carro, os mais novos andavam comigo e fazia alguns disparates”, confessa a poucos metros da corporação que comandou).

“Hoje em dia seria inconcebível e impensável, mas aconteceu. Fomos por aí fora”, assegura. “Encontrei um MG que foi parar a uma valeta. Como tinha o carro cheio, saímos todos, recolocámos o carro na estrada e ali foi ele de volta ao rali. De repente, só vejo uma mão a sair da janela: atirou um molho de notas e era dinheiro por todo o lado”, recorda com um sorriso. “São tempos que já não voltam”, afirma com nostalgia.

Dentro de um todo-o-terreno dos bombeiros, o SAPO 24 percorreu os caminhos do rali em Góis. Um percurso feito em sentido contrário ao realizado pelos pilotos nas estradas de terra da serra, entre eucaliptos e árvores autóctones, como o carvalho ou o castanheiro.

José Carvalho fala de curvas e contra curvas. De segurança na estrada. De público e pilotos. Das romarias de uma população que, com antecedência, se espalha pela morfologia do terreno. E de incêndios. Naquela zona é impossível não tocar no tema. 2017 está bem vivo na memória.

A sinalização dos diversos tanques de abastecimento de água para combate a fogos florestais é assinalada pelo dedo indicador do antigo comandante dos Bombeiros. “Está ali mais um tanque”. No alto da serra, perto de uma torre de vigia com vista 360º sobre o município, aponta para uma inscrição do nome de “Góis” gravado na terra. Serve de ponto de referência aos meios aéreos.

“Para as mulheres, cada carro que passa é uma festa. São piores que os homens”

Regressa ao passado e ao ponto de partida desta história de e sobre ralis.

“Arrancavam a 20 metros da porta do quartel, da estrada que vai para a Cabreira. Existia uma mesa de controle simples”, descreve. “Dois quilómetros em alcatrão, cortavam à esquerda e entravam na estrada florestal, o troço Góis-Arganil”, informa. “Era perigoso. Não havia proteções nas estradas e havia risco de despiste. Felizmente nunca houve grandes acidentes”, garante.

Recorda o ambiente vivido. “Não cabia mais ninguém. Era a loucura total. Se deixasse cair uma agulha ela não caía ao chão”, assegura.

Nos anos 60 e 70 do século passado eram milhares espalhados ao longo do troço. "Milhares. Vinham a pé, cortejos de pessoas a subir dos bombeiros até à mata, faziam aqui a festa. Com o farnel iam para a serra com 24 horas de antecedência. Havia gente a dormir sabe Deus como”, relata.

“Noites frias e poeira, mas as pessoas gostam. Gostam de vir todos sujos”, uma realidade que permanece. “O rali para além de prova desportiva, é um convívio entre pessoas”, sublinha.

Na convivência entre a população, acrescenta um detalhe, no mínimo curioso. “As mulheres são mais expansivas e efusivas que os homens. Dizem até os nomes dos pilotos”, assegura. “Os homens sabem mais as marcas. O tipo de carro. Estão ali para verem os carros passar. Para as mulheres, cada carro que passa é uma festa. São piores que os homens, gritam e dizem adeus”, relata.

Para os bombeiros, ter o rali à porta, nem sempre é fácil. Não são dias de divertimento, muito antes pelo contrário. “Implica logística grande durante dois dias. Pedimos sempre ajuda a corporações à volta. Limpamos a estrada e fazemos o reconhecimento”.

A segurança de espectadores e pilotos é uma máxima. “Exageros sempre houve. Os mais jovens, o frio da serra é muito e para se aquecerem exageram, logo, os bombeiros têm de ir buscá-los”, sorri.

Deixa os elogios ao passado e fixa-se no presente. “Tivemos centenas de pessoas a pé a subirem a serra para ver o rali. A polícia vedou as estradas a partir das 17h00 e o primeiro carro saiu às 9h08”, detalha.

Hoje em dia, muito mudou desde o dia em que o jovem José Carvalho decidiu acelerar na serra que viria a vigiar durante anos. “Apesar de ser só de passagem, o facto de levarem o nome de Góis a todo o mundo, e da Lousã e de Arganil, é muito importante. Mexe com a vida e com a economia. E vale a pena pela divulgação do nome do concelho”, resume o antigo comandante dos Bombeiros de Góis.

20 anos de ralis em fotografias

Renato Ferreira, hoje com 49 anos, começou a ver o rali pelos olhos de uma lente aos 10 anos. Sete anos antes esticava o nariz para ver os carros passarem à porta da loja de fotografias do pai, Delfim Ferreira. “O rali passava aqui na Lousã e a assistência era à porta de casa”, relembra.

Desde pequeno que andava entre os grandes para ver os carros. “Antigamente passava de madrugada, de 6ª feira para sábado. Ia com os meus pais passar a noite à serra. Levava-mos mantas e comida à espera dos pilotos que passavam por lá de manhã. Os miúdos faziam umas camas e tenho ideia de dormir e os pais a conviverem. Bem, quase não dormia pela ânsia de ver os carros”, assume.

Apaixonado pelo desporto automóvel, as fotografias foram, desde cedo, a solução encontrada para ter recordações de pilotos e carros”, garante. “Foi a forma de estar no meio”, acrescenta. “Tinha facilidade de acesso ao equipamento, rolo e máquinas porque era filho de um fotógrafo”, recorda.

Com 12 anos, Renato Ferreira dá os primeiros passos na arte. Aos 19, começou a fotografar para jornais e agências de forma mais profissional. “Desde o momento em que tirei a carta de condução (1989) até 2000 não falhei um único dia um Rally de Portugal. Do princípio ao fim”, sublinha.

“Ia com amigos, uma aventura, três dias a dormir no carro, comida a bordo e o único sítio em que tomava banho em condições era na 6ª feira quando passávamos pela Lousã e íamos a casa. Era uma festa”, recupera.

Renato Ferreira abre as portas de casa, mais precisamente o estúdio onde guarda o arquivo vivo dos seus registos e passagens pelo desporto automóvel. Puxa as vitrinas de um móvel e mostra uma coleção de carros. Réplicas em miniatura de Lancia, Toyota e Ford. Os seus dedos percorrem as dezenas de credenciais. Pertencem aos mais variados ralis e estão penduradas sem ordem cronológica. Rally de Portugal, Fafe, Açores, Caramulo ... “Aos 18 anos pagava para ter uma credencial, ficava todo contente”, constata.

Tem várias edições do jornal Autosport religiosamente empilhadas. Fotografias nas paredes, negativos guardados e megabytes no disco rígido. “Todo o meu espólio está guardado. Grande parte digitalizado. Tudo impresso em papel e os negativos bem acondicionados”, frisa. “Tinha também fotografias no Hotel de Arganil. Agora não sei se lá estão, mudou de gerência”.

Ao longo da sua “carreira” usou algumas máquinas fotográficas 35mm. Na era pré-digital, gastou “4 ou 5 mil rolos. Era fácil, num rali, gastar 30 rolos”, assevera.

Folheia o computador. Aponta, com orgulho, para a foto de Michele Mouton, a piloto francesa, vencedora do 15º Rally de Portugal Vinho do Porto. As fotografias evidenciam bem a proximidade entre pilotos e mirones.

Das memórias de 20 anos de “proximidade com alguns pilotos”, destaca o “amigo Rui Madeira”. Os outros, era um “contacto normal, uns mais simpáticos que outros. Finlandeses e alemães menos simpáticos, mas queríamos era estar perto deles”, encolhe os ombros. “Nunca tive hábito de dar e mostrar as fotos. Fazia porque gostava e era para mim”, frisa.

O trabalho fotográfico da prova automobilística valeu-lhe uma Exposição na Biblioteca Municipal Comendador Montenegro. “São 80 fotos do rali na Lousã. De 1983 a 1997". Estiveram expostas nas paredes interiores do edifício municipal que tem à porta a instalação do projeto “Isto é Lousã” - um carro forrado a madeira - alusivo ao Rally de Portugal.

“Fiz algumas dezenas de vezes o troço da Lousã em alcatrão. Chegava cá em baixo com os discos em brasa”

Sempre à procura do melhor boneco, assume ter, em tempos, arriscado “um pouco”, em especial “nos antigos saltos de Arganil”, diz. “Punha-me quase no meio da estrada para apanhar o melhor ângulo. O comportamento do público era diferente. Senti que arrisquei muito durante três ou quatro vezes e não valia a pena”.

Destaca a dureza dos troços do rali na região Centro de Portugal. “O troço da Lousã chegou a ter  56 km em terra, feito de madrugada, em pleno final de inverno, chuva e nevoeiro”, recorda.

Na terra onde cresceu destaca alguns sítios icónicos. “A curva escura”, exemplifica, um local onde “milhares de pessoas” aguardavam. “Durante anos, o rali foi feito do alto da serra para a vila e a parte final tinha uma curva muito conhecida. Era um local com muito arvoredo e húmido, chamavam a curva escura. Tinha a particularidade de ser um piso que era um misto de terra com empedrado e era muito escorregadio”, pormenoriza.

Mas há mais. “Nas versões Lousã-Relvas, no planalto da serra viravam para o concelho de Miranda passavam por uma represa com água. Tinham a zona da casa do guarda florestal, a parte final era de inclinação acentuada”.

Entre as três localidades, Lousã, Góis e Arganil, elogia esta última, pelos percursos “mais longos e engraçados”, descreve. Como fotógrafo, “em termos de limpeza prefiro asfalto, em termos de fotografias a terra. O pó entra em todo o lado”, garante. Mas deixa uma confissão. “Fiz algumas dezenas de vezes o troço da Lousã em alcatrão. Chegava cá em baixo com os discos em brasa. Via o tempo que tinha demorado”, sorri.

A Região Centro de Portugal foi rainha nos 122,88 quilómetros cronometrados do Rally de Portugal, divididos por oito especiais, sete das quais nas estradas do Centro. Dupla passagem por Lousã, Góis e Arganil e um regresso: 20 anos depois, Mortágua reentra no roadbook com um novo traçado desenhado ao longo de 18 quilómetros à volta da Barragem da Aguieira.

Este artigo faz parte do dossier "Aqui, no Centro" que conta com o apoio do Turismo do Centro