Quando na passada noite de segunda-feira, após a goleada de Espanha à Roménia (5-0), Robert Moreno recusou comparecer na conferência de imprensa pós-jogo, ao mesmo tempo que a comunicação social dava conta da sua saída da seleção espanhola e do regresso de Luis Enrique, Iker Casillas escreveu no Twitter, em tons de ironia: “Somos uma anedota… viva Espanha!”.

Hoje, os jornais espanhóis contam que, por essa altura, Moreno estava no balneário, em lágrimas, a despedir-se dos jogadores. Também hoje, o regresso do antigo técnico do FC Barcelona foi confirmado por Luis Rubiales, presidente da Real Federação Espanhola de Futebol, e José Francisco Molina, diretor desportivo da Federação.

Rubiales revelou que a saída de Robert Moreno foi decidida pelo próprio, quando soube que Luis Enrique, treinador com quem partilhou o banco desde os tempos da AS Roma e seu amigo, queria voltar aos relvados. A Federação espanhola diz que o treinador que orientou a Roja durante a maior parte dos jogos de qualificação para o Campeonato da Europa de 2020 não queria ser um impedimento, mas a história está longe de ser só isto.

Casillas, que não soma uma internacionalização desde junho de 2016 (mas que é o segundo jogador da história com mais jogos na principal seleção espanhola, apenas atrás de Sergio Ramos), classifica aquela que é a quinta sucessão no comando técnico da seleção espanhola em pouco mais de dois anos como anedótica, mas desde que, em pelo Campeonato do Mundo de 2018, na Rússia, Julen Lopetegui deixou o comando da equipa nacional para assumir o banco do Real Madrid, que a dança no banco da seleção espanhola parece uma novela mal escrita por dois guionistas - Rubiales e Molina - com poucas certezas.

A ser uma anedota, nunca poderá ser daquelas em que um português, um espanhol e um francês entram num bar. Não, esta só tem espanhóis como protagonistas. Começa com Julen Lopetegui e termina com Luis Enrique (que entra no bar pela segunda vez).

Rússia, 2018

créditos: Rodrigo Jimenez/EPA

Ora, foi precisamente num "bar russo" - leia-se Campeonato do Mundo de 2018 -, que começou a dança das cadeira na seleção espanhola.

Depois de Fernando Hierro ter assumido as rédeas da seleção espanhola, após a saída de Lopetegui, acusado de ter ‘escondido’ as negociações com os Merengues numa altura em que se preparava para tentar recuperar o título perdido para a Alemanha em 2014, as coisas não correram bem. O lendário defesa central do Real Madrid conseguiu apenas uma vitória em todo o Mundial (1-0 frente ao Irão), tendo acabado por cair nos oitavos-de-final aos pés da Rússia, anfitriã da competição.

O episódio de desorganização envergonhava a seleção que, entre 2008 e 2012, foi dona e senhora do mundo do futebol ao vencer dois Campeonatos da Europa e um Mundial. Numa tentativa de voltar a colocar a equipa no rumo certo, Rubiales foi buscar Luis Enrique, espanhol que brilhou no comando técnico do FC Barcelona e que em Camp Nou conseguiu conquistar o triplete. Uma figura grande, reconhecida e consensual.

Luis Enrique: quando a vida é mais imprevisível que o futebol

A nova era começava de forma promissora, com uma vitória em Wembley diante de Inglaterra (1-2) e uma goleada (6-0) à Croácia, vice-campeã mundial, em dois jogos a contar para o grupo A da Liga das Nações. Porém, duas derrotas diante das mesmas seleções roubaram o lugar a Espanha na fase final da competição, que se realizou em Portugal e que a seleção portuguesa acabaria por ganhar.

No entanto, com as vitórias na fase de qualificação para o Euro 2020, uma nova Espanha começava a erguer-se, ainda a encontrar o seu caminho próprio, mais distante da herança do tiki taka do Barcelona de Guardiola mas a abrir espaço para uma nova geração de jogadores.

Acontece que a vida foi mais imprevisível do que o futebol e a 26 de março, numa situação em que ninguém quer estar, Robert Moreno é 'obrigado' a assumir o lugar de treinador principal no banco, no jogo frente a Malta, em Birzebbuga, que a Roja venceria por 0 - 2, depois de Luis Enrique ter abandonado a concentração da seleção devido a problemas pessoais.

Moreno chegava à cadeira de sonho a um preço que ninguém desejava e em conferência de imprensa antes do jogo de qualificação para o Euro 2020, dizia-o com Luis Enrique presente: “É o pior dia da minha carreira. As pessoas felicitam-me, mas não há nada para me felicitarem”.

A situação estendeu-se durante algum tempo, com Luis Enrique a trabalhar à distância e com Moreno a cumprir instruções, apesar de ter dito que o seu amigo e treinador principal sempre lhe deu autonomia para ser ele próprio. Todavia, a 19 de junho deste ano, a Federação espanhola assinou contrato com o antigo adjunto de Luis Enrique e fez de Moreno selecionador nacional de pleno direito, depois de Luis, numa carta enviada à Federação, ter dito que a sua situação pessoal não tinha sofrido alterações e que isso o impedia de continuar à frente da Roja.

“É um dia agridoce. Sempre pensei um dia chegar a treinador principal, mas nunca desta maneira. Levo muito anos de futebol. Desde os 14 anos que sonho em chegar ao mais alto nível como treinador. O Luís mostrou-se de acordo, apoiou-me e disse-me para ir para a frente com este desafio”, contou o técnico, de 41 anos, que fez sempre parte do ‘staff’ de Luis Enrique nas passagens pela Roma, Celta de Vigo e FC Barcelona.

O tema da saída de Luis Enrique nunca foi tornado oficial. Foi só no dia 29 deste ano, com uma publicação nas redes sociais, que o treinador revelou que a sua filha Xana tinha falecido aos nove anos, depois de nos últimos meses ter lutado contra um osteossarcoma, um cancro nos ossos.

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“Vamos sentir imenso a tua falta, mas recordar-te-emos cada dia das nossa vidas com a esperança de que nos voltemos a encontrar no futuro. Serás a estrela que guia a nossa família. Descansa, Xanita”, escreveu Luis Enrique num comunicado que publicou na rede social Twitter.

Robert Moreno, ascensão e queda

Durante estes meses, Robert nunca deixou de recordar Luis nas conferências de imprensas, sublinhando que esta não era a situação que desejava e a assumir que “se chegar a uma altura em que ele [Luis Enrique] decidir treinar novamente, ficarei feliz em me afastar e trabalhar com ele novamente”.

O fantasma estava lá, mas Moreno continuava a ser o selecionador nacional e mostrava resultados: seis vitórias e dois empates em oito jogos, e uma qualificação para o Campeonato da Europa do próximo ano garantida a duas jornadas do fim da fase de qualificação.

Robert dedicou a qualificação ao amigo Luis Enrique, mas aproveitou, também, para defender a sua posição e as críticas que lhe eram apontadas, a saber, uma má gestão dos egos no balneário e falta de consistência no jogo espanhol, ambas consubstanciadas em dois empates fora diante da Noruega e da Suécia.

"Deve ser triste que existam pessoas que querem que as coisas corram mal, porque isso seria o mesmo que querer mal à seleção. Espero que todos nos apoiem, porque agora o treinador sou eu", disse.

Por norma, e apesar das críticas, o feito da qualificação levantou questões sobre a renovação do seu contrato, naquilo que poderia ser um gesto de demonstração de confiança em Moreno e no seu projeto para os próximos tempos. O próprio admitiria-o num evento da seleção no Museu do Prado, em Madrid. “Gostava de fazer um Europeu e um Mundial”, chegou a dizer. No entanto, revelava que não tinha recebido nenhuma proposta de renovação contratual nem que a esperava “em breve”.

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“Não depende de mim e não posso controlar isso”, dizia. Rubiales adiava a decisão para uma reflexão no final dos dois jogos de apuramento para o Euro 2020, no caso de Espanha apenas serviam para cumprir calendário. A Roja venceria os dois: 7-0 frente a Malta e 5-0 frente à Roménia. Depois deste último jogo, todos conhecemos a história.

O regresso de Luis Enrique ou uma má anedota

O presidente da federação espanhola, que presidiu à conferência de imprensa de hoje, acompanhado do diretor desportivo José Francisco Molina, disse que Luis Enrique tinha sempre as “portas abertas” da seleção e que o treinador tinha formulado o desejo de regressar.

“Desde da morte da filha que falámos em três ocasiões. A primeira a 29 para lhe dar os pêsames, depois numa reunião no final de outubro e ontem”, disse Luis Rubiales, acrescentando que foi Robert Moreno que lhe tinha transmitido o desejo Luis Enrique de voltar e que o próprio colocou o lugar à disposição.

Hoje, só conhecemos um dos lados da história, o da Federação. Mas na imprensa espanhola, a palavra “traição” ecoa. Num artigo do diário espanhol AS, é dito que fontes próximas de Moreno afirmam que o treinador se sente “usado e atraiçoado” e que este poderá não ser o único prejudicado com esta decisão da Federação espanhola, uma vez que a possibilidade de Luis Enrique ter à sua disposição uma equipa totalmente nova está em cima da mesa. Adicionalmente, outros órgãos garantem que Enrique exigiu que Moreno não fizesse parte da sua equipa técnica, num claro desgaste da relação de amizade entre os dois.

O mesmo jornal conta que a ideia era que Robert se mantivesse no cargo até aos encontros amigáveis frente à Holanda e Alemanha, em 2020, para justificar ou não a continuidade do treinador, mas os eventos precipitaram-se, com os sinais de Luis Enrique (que manifestava a intenção de voltar) a somarem-se ao desconforto de um selecionador que começava a sentir que foi sempre uma solução interina, e não uma verdadeira aposta. E a quem, apesar da qualificação em primeiro lugar do grupo, eram apontados vários problemas exibicionais.

Além disso, segundo fontes do AS, a situação começava a trazer más memórias da Rússia, em que o poder de alguns jogadores muito influentes nos balneário começou a superar o do selecionador, algo que não acontecia - ou que não era tão visível - com Luis Enrique.

Apesar de tudo, o despedimento de um treinador que qualifica uma seleção para um Europeu, em primeiro lugar do grupo, requer uma explicação (ou algo mais caso a Roja não brilhe na Europa com Luis Enrique). É uma anedota, mas das más.